Evergrande, a Lehman Brothers chinesa

Fala-se de “Lehman Brothers chinesa”, para lembrar o que aconteceu com a crise dos subprimes em 2007/2008: na altura, o incumprimento do gigante americano foi o começo da pior crise antes financeira e depois económica das última décadas, algo cujas consequência fizeram-se sentir um pouco por todo o planeta. O “caso” Evergrande tem o potencial para ser uma nova Lehman Brothers? Sim, tem. Mas vamos com ordem.

O Grupo Evergrande (anteriormente Hengda Group) é o segundo maior promotor imobiliário na China, classificado em 122º lugar na Fortune Global 500 (a classificação das 500 empresas mais “ricas” do planeta). Fundada em 1996 por Xu Jiayin, de facto em 2018 tornou-se a empresa imobiliária mais valiosa do mundo.

Mas Evergrande não é apenas uma imobiliária: ao longo dos anos, Xu Jiayin quis diversificar os interesses da empresa que agora abrangem turismo, desporto, produção de automóveis eléctricos, saúde, mundo do entretenimento, comida, finança. Evergrande é de facto um gigante.

Problema: as dívidas. É normal que uma empresa, para crescer, contraia dívidas. E as dívidas têm que ser pagas mais cedo ou mais tarde. Ontem, por exemplo, a Evergrande deveria ter reembolsado 83.5 mil milhões de Dólares de juros. Mas os credores não viram um cêntimo: tecnicamente, a Evergrande já está insolvente.

A ausência de comunicações oficiais, combinada com rumores contraditórios, não ajuda a esclarecer a questão. O Wall Street Journal relatou que as autoridades governamentais alertaram os funcionários locais para a “possível tempestade” que poderia deflagrar na eventualidade do colapso de Evergrande, avisando-os de que qualquer intervenção só teria lugar para evitar um “efeito domino”. Por outro lado, Bloomberg revela que as autoridades financeiras estão a pressionar a empresa para que sejam cumpridos os compromissos para com os investidores offshore, mas não é claro se foi concedida ajuda ao grupo, nem se foi feito algo para impor as perdas aos credores.

Este último foi o estratagema utilizado na passada Quarta-feira para chegar a um acordo com investidores chineses (“corte” sobre os juros e adiantamento dos prazos de pagamento) que esperavam 232 milhões de Yuan (cerca de 36 milhões de Dólares). O acordo não é uma boa notícia para os investidores internacionais mas pode ser a única forma de evitar a falência do grupo que até o final do ano teria que desembolsar 640 mil milhões de Dólares.

Embora o presidente do grupo, Hui Ka Yan, tenha assegurado que “a empresa tentará retomar o trabalho e a produção”, Evergrande está em graves dificuldades, tendo falhado no pagamento dos salários de Agosto da sua filial de automóveis eléctricos. E o segundo parceiro da Evergrande, a Chinese Estates Holdings, despede-se: prepara-se para vender a sua quota do Grupo.

Mas atenção porque a crise da Evergrande é apenas a ponta do icebergue. Os investidores vendem os títulos ligados ao sector imobiliário chinês: o Grupo Sinic Holdings (SHG), com sede em Xangai, suspendeu a contratação das suas acções na Bolsa de Hong Kong após ter assistido a uma perda de valor na casa de 87%. Zhang Yuanlin, o presidente da empresa viu o seu património líquido cair de 1.3 mil milhões de Dólares para 250.7 milhões dum dia para outro, literalmente.

Agora todos os olhos estão postos em Pequim para ver se haverá, e quão extensa será, a intervenção do governo no caso Evergrande, dado que Xi Jinping não pode permitir que a situação se deteriore ainda mais: o risco de contagio é real e as consequências iriam muito além das fronteiras chinesas. Já na passada Segunda, por exemplo, as Bolsas entraram em território negativo por causa das notícias acerca do Grupo. Na Terça já tudo voltou à normalidade, mas o que aconteceu foi um claro aviso do potencial devastador.

Pergunta: mas é apenas um problema de dívida ligado ao crescimento? Sim e não. Tentamos perceber.

As bolhas, sempre elas…

Quando uma empresa quer expandir o volume dos seus negócios, apresenta-se no mercado financeiro e emite obrigações. O investidor compra as obrigação da empresa porque sabe que, passado um determinado período, aquela obrigação irá gerar um ganho (no geral concordado previamente, na altura da compra). Desta forma todos ficam felizes: a empresa obtém dinheiro líquido (com o qual financia os seus projectos) e o investidor ganha com os juros. Uma maravilha: o que pode correr mal?

Pode correr mal o seguinte: chega o prazo estabelecido para o reembolso e a empresa não tem dinheiro. É o caso da Evergrande que com as obrigações arrecadou biliões mas que agora não tem dinheiro para reembolsar os investidores ou até para pagar os seus funcionários. Embaraçoso, não é? Pois é.

Mas por qual razão a Evergrande não tem dinheiro? Afinal o seu fundador é um pequeno génio, a empresa tinha projectos, está envolvida em muitos negócios e as coisas sempre correram bem.

O problema chama-se “bolha”. Nos últimos anos, o mercado imobiliário chinês inchou e fez subir o custo da habitação para níveis muito elevados. Demasiado elevados. Isso significa que, durante o mesmo período, investir no imobiliário gerava boas receitas e, de facto, os investimentos no sector também aumentaram, não só por parte de investidores institucionais mas também por parte de cidadãos e trabalhadores chineses.

Já sabemos: o que faz uma bolha? Explode. Mais cedo ou mais tarde os valores voltam à normalidade: o que ontem tinham um valor “inchado” de 100, de repente fica com um valor de 50 ou ainda menos. Uma desvalorização que abrange o inteiro sector e que provoca a fuga dos investidores; ao ponto que o mesmos sector não apenas deixa de ser rentável como até gera perdas. De repente, uma empresa como a Evergrande fica com entre as mãos valores que não rendem mas, ao mesmo tempo, ainda tem que pagar as dívidas contraídas antes (com as obrigações, por exemplo). Esta é uma “bolha”: aconteceu com a Lehman Brothers, acontece agora com a Evegrande.

A escolha de Xi

O fundador, Xu Jiayin, continua a tranquilizar afirmando que a nossa prioridade é ajudar os investidores, pelo que a empresa vai tentar retomar o trabalho e a produção. Mas a empresa dele, sem dinheiro e com dívidas milionária, deve entregar pelo menos 1.3 milhões de apartamentos já pagos pelo mesmo número de chineses. Esta é a bomba relógio “interna”, pois além dos investidores internacionais há também os problemas de quem decidiu pôr todas as suas poupanças na compra duma casa.

Xi Jinping irá ordenar o resgate da Evergrande, renegando assim a sua promessa de pôr fim ao “crescimento desordenado do capital” (e da dívida)? Ou irá correr o risco duma agitação social entre os milhões de chineses que emprestaram dinheiro ao bilionário da construção ou que compraram apartamentos inacabados? O Grupo Evergrande tem quase 3.000 projectos imobiliários em curso, que envolvem cerca de 300 áreas metropolitanas na China.

Xi Jinping tem os meios para resolver a situação. A dúvida é: quer resolve-la? A resposta não tem sido tão clara até agora.

Um pouco de agitação interna poderia ser um preço aceitável para lançar um sinal a todos os jovens capitalistas chineses: o triste destino de Xu Jiayin ficaria como “exemplo” para todos os colegas bilionários. Mas isso teria um outro custo também, de proporções potencialmente devastadoras: o sinal lançado seria recolhido também pelos investidores estrangeiros que, de repente, começariam a ver as empresas chinesas como um risco. Ao mesmo tempo, entraria em sofrimento a moeda chinesa, o Yuan, e o seu processo de internacionalização tão desejado por Pequim. Os rios de dinheiro que agora fluem para o comparto chinês da produção e dos serviços sofreriam um forte abrandamento: e a China precisa daquele dinheiro todo.

Doutro lado, pagar daria também um forte sinal interno no sentido contrário: “invistam, cresciam, arrisquem e se algo correr mal aqui vem o Governo com o dinherinho”. Uma situação também insustentável, o exacto contrário do que Xi disse desejar.

Solução mais provável? Reestruturação da dívida. Ou seja: devedores e credores sentados à mesa para renegociar e reduzir o valor da dívida e/ou alterar os prazos dos pagamentos. Uma falência nua e crua parece improvável tendo em conta o risco sistémico ligado à dimensão da empresa e aos numerosos actores envolvidos (200.000 trabalhadores directos e 3.8 milhões indirectos). Em caso de reestruturação, o governo chinês poderia intervir como mediador, assegurando um tratamento semelhante entre credores chineses e estrangeiros, tranquilizando assim os investidores internacionais com um discurso do tipo “há crise, o Governo não paga mas vigia e encontra a solução melhor”.

Moral

A moral é simples: seja em molho ocidental, seja em molho oriental, o mercado funciona sempre da mesma forma e sofre sempre dos mesmos males. Não existe uma “via chinesa” neste sentido: quando abres as portas ao “livre” mercado, os resultados não mudam e pouco importa se gostas de definir-te “democrático” ou “comunista”.

Longe de auto-regulamentar-se, o “livre” marcado degenera segundo um esquema que nesta altura deveria ser claro:

crescimento > financiarização > bolha > crise

E se nem uma realidade hiper-controladora como aquela chinesa consegue alterar este percurso, então isso só pode significar que problema não fica nas ideologias que servem de suporte mas neste mesmo “livre” mercado feito de apostas e abutres. Ámen.

 

Ipse dixit.

Nota: Obrigado ao Felipe por ter realçado o assunto! 🙂

3 Replies to “Evergrande, a Lehman Brothers chinesa”

  1. Se o governo chinês facilitar as coisas para os milionários, resgatando de alguma maneira as suas dívidas, estará aberta a porta para que outros milionários atuem da mesma forma com as suas empresas, tal qual no mundo capitalista. Sendo assim, adeus capitalismo a moda chinesa, adeus possibilidade de diminuir a desigualdade social na China, tal como declarou recentemente Xi, na maior assembleia interna da governança chinesa.

    1. Olá Maria, só existem milionários na China porque o PCCh permitiu. O governo lá controla tudo e todos, não há livre mercado.
      Se for do interesse do governo ele “salvará” empresas inadimplentes. Se nao, usará como exemplo. Além do mais, na minha opinião, nunca houve a intensão de melhorar a qualidade de vida das pessoas. É simplesmente o poder como objetivo final, o que ocorre no meio do caminho é um efeito colateral, que pode ser positivo ou negativo.
      Abraço

  2. E se em vez de intervir como mediador na reestruturação da dívida, o governo chinês decidir “tomar as rédeas”?
    Decidindo que investidores sairão em desgraça (falidos), e quais ficaram (sobre controlo).
    Ou, refraseando, expulsando os indesejáveis (ocidentais pró-Soros &Co)… restantes sob “prisão domiciliária”.
    Alguém já descobriu por onde anda o “Jack Ma”?

Obrigado por participar na discussão!

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