Afeganistão: os EUA anunciam a retirada

Parece que é desta.

Num discurso na Casa Branca, o Presidente dos EUA, Joe Biden, anuncia o fim das operações no Afeganistão:

É tempo de acabar com a guerra mais longa da América.

Como relata a BBC, Washington continuará a apoiar o Afeganistão após a retirada de todas as tropas norte-americanas, mas não “militarmente” prometeu o Presidente.

Nas intenções, a retirada deve coincidir com o 20º aniversário dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001: 20 anos de guerra e ocupação. Pelo menos 2.500 tropas norte-americanas (mas segundo dados não oficiais o total fica mais próximo de 3.500) serão repatriadas; e como é lógico, pouco depois (ou até na mesma altura) será a vez da restante missão da NATO, mais de 7.000 homens.

Afirma o Presidente dos EUA:

Não podemos continuar o ciclo de alargamento ou expansão da nossa presença militar no Afeganistão na esperança de criar as condições ideais para a nossa retirada, esperando um resultado diferente. Embora não envolvidos militarmente no Afeganistão, o nosso trabalho diplomático e humanitário continuará, vamos continuar a apoiar o governo do Afeganistão.

ZomBiden também compromete-se a continuar a prestar assistência às forças de defesa e segurança afegãs, incluindo 300.000 pessoas que “continuam a lutar corajosamente em nome do seu país e a defender o povo afegão, com grandes custos”.

O acordo assinado em Fevereiro de 2020 afirmava que os EUA e os seus aliados da NATO retirariam todas as tropas até Maio de 2021. E agora os Talibãs querem saldar as contas: após não terem permitido que Al-Qaeda ou outros grupos operassem em áreas controladas, os Talibãs ameaçam retomar as hostilidades contra as tropas estrangeiras ainda no País a partir do próximo dia 1 de Maio. E Biden é claro: “Precisamos de nos concentrar nos desafios futuros” disse, citando a ameaça de ataques cibernéticos e o aumento das tensões com a China.

A retirada é uma derrota. O conflito de 20 anos no Afeganistão, que começou em 2001 sob o pretexto de combater a Al-Qaeda, conseguiu:

  • 65.596 mortes entre as forças de segurança afegãs.
  • 3.562 mortos entre as forças da NATO (dos quais 2.420 militares norte-americanos)
  • 3.937 mortos entre os contractos (antigamente conhecidos como “mercenários”)
  • entre 67.000 e 72.000 mil mortos talibãns
  • mais de 2.000 mortos nas fileiras de Al-Qaeda
  • mais de 2.400 mortos nas fileiras do ISIS
  • mais de 38.480 civis mortos oficialmente reconhecidos como vítimas da guerra.

No total, mais de 180 mil mortos “oficiais”. Mas outras fontes, como o estudo Costs of War da Brown University (Providence, EUA), apontam para uns adicionais 360.000 vítimas indirectas.

E não podemos esquecer que, desde 2001, o País voltou a ser o principal produtor mundial de ópio. Em 2009 o Afeganistão já produzia 93% de todo o ópio comercializado no mundo e, como mostrado pela ONU no World Drug Report de 2016 (pág. 143), o País passou dos 7.606 hectares de produção em 2001 para 123.000 em 2009 e para 224.000 em 2014. Em 2015 (últimos dados disponíveis) houve uma ligeira queda (183.000 hectares), mas o Afeganistão continua a ser a fonte de 80% da produção ilegal de ópio.

A retirada é uma derrota porque o governo é “amigo” mas o País dividido.

Washington conseguiu implementar um regime amigo em Kabul: o Presidente é Ashraf Ghani Ahmadzai, antigo docente das Universidades de Berkley e Johns Hopkins (EUA), que também frequentou os programas de liderança na Harvard-INSEAD e na Escola de Pós-Graduação do Banco Mundial em Stanford (EUA), tendo também trabalhado no Banco Mundial entre 1991 e 2002.

Eleito após um processo eleitoral problemático (o segundo turno das eleições presidenciais de 2014 aconteceu no dia 14 de Junho, os resultados estavam previstos para o dia 2 de Julho mas foram anunciados apenas no dia 7; no dia 12 do mesmo mês o Secretário de Estado norte-americano John Kerry anunciou uma auditoria da ONU a qual confirmou a suspeita de fraudes eleitorais mas proclamou Ahmadzai qual vencedor), o Presidente não consegue controlar a totalidade do País e até o processo de reconstrução procede entre escândalos: de acordo com um processo instaurado em Dezembro de 2019 no Tribunal Distrital de Washington, contratantes norte-americanos envolvidos em projectos de reconstrução do Afeganistão (Grupo Louis Berger e Development Alternatives Incorporated) pagaram a “protecção” aos Talibãs.

Como curiosidade: entre 1998 e 2010, a empresa Louis Berger pagou subornos no valor de 3.9 milhões de Dólares a funcionários governamentais na Índia, Indonésia, Vietname e Kuwait para conseguir negócios (17.1 milhões de Dólares de coima em 2015); em Novembro de 2010, Louis Berger concordou em pagar um montante de 69.3 milhões de Dólares para liquidar as acusações de fraude contra o governo do Afeganistão.

Por seu lado, a Development Alternatives Incorporated significa Comissão Europeia, Departamento da Defesa dos EUA, Banco Mundial, Bill & Melinda Gates Foundation, etc.

Nada disso admira: a reconstrução é um negócio de pelo menos 30 biliões de Dólares, a maior parte dos quais originários dos EUA.

A retirada é uma derrota porque, após 20 anos de guerra, os EUA não conseguiram fazer do Afeganistão um sólido “posto avançado” entre as fileiras inimigas: fronteiras partilhadas com Rússia, Irão e China, o Afeganistão é bomba relógio. Ainda no ano passado (Fevereiro), algumas frases infelizes do Presidente enfureceram a população uzbeque do País (9% dos afegãos são uzbeque), que saiu em protesto nos quais participaram também Abdul Rashid Dostum, ex-vice-presidente do Afeganistão, e o Movimento Nacional Islâmico. Tensões constantes num território partilhado pelas etnias Pashtun (48%), Tajik (22%), Hazara (9%), Uzbeka (9%), Aimaq (3%), Turcomenos (3%), Baloch (2%) e outras (4%).

Mas o Afeganistão é estrategicamente muito importante (não acaso é um dos pontos quentes do planetas há décadas, muito antes da ocupação americana) e, na luta contra as “potências de terra” (Rússia e China), os EUA precisam desesperadamente dele. Pelo que é lícito duvidar não tanto da retirada (foi anunciada, é verosímil que aconteça) quanto do alcance temporal desta decisão: os EUA ficariam apenas a olhar caso a influência russa ou chinesa se tornasse mais pressionante sobre o País? (em princípio vamos excluir uma significativa influência iraniana dado que os muçulmanos do Afeganistão são na esmagadora maioria – 90% – sunitas).

Seja como for, pegamos no que de bom está a chegar: esta fase da guerra no Afeganistão parece estar a chegar ao fim, em qualquer caso as forças militares de ocupação abandonam o terreno que nunca foi a casa delas.

 

Ipse dixit.

3 Replies to “Afeganistão: os EUA anunciam a retirada”

  1. Isso é sinal de que estão a tramar uma outra guerra pelo mundo agora, em minha opinião , será nas americas mesmo, mais barata pois é mais perto de casa, em pouco tempo saberemos.

  2. Grande Max,

    Boas notícias sem dúvida. Eu penso que as mentes pensantes no US estão a começar a perceber que a política de guerras clássicas é cada vez mais desadequada para continuar a manter o controlo mundial. No futuro vão querer guerras mais eficientes, eu diria mesmo guerras personalizáveis na mesma óptica de medicina personalizável. Antes era impossível mas agora com a inteligência artificial passarão a ser comuns.

  3. Olá Max e todos: penso que o que mudou não foi a retirada parcial das tropas e com isso o fim da guerra. Mudou o tipo de guerra, um tipo de guerra híbrida que não depende de tropas no terreno.
    Este país é por demais estratégico para os inimigos maiores que os EUA consideram.

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: