No caos da Somália

No início de Fevereiro de 2021, o mandato do Presidente da Somália Farmaajo expirou. No entanto, as eleições na capital, Mogadiscio, foram adiadas por divergências políticas, sobretudo no seio da oposição, uma coligação de governadores regionais e políticos nacionais que inclui o ex-Primeiro-Ministro e dois antigos-Presidentes. A Somália continua a ser uma terra sem paz, tal como foi descrita nestas páginas ao longo dos anos.

Culpa do sistema tribal, como reza a versão oficialmente aceite? Não. As recorrentes crises políticas entre as diferentes facções da classe dominante e entre a capital e as províncias não são o fruto do modo de vida pré-colonial: as razões devem ser procuradas na integração do País no sistema capitalista e imperialista global, especialmente desde a re-colonização neoliberal do pós-guerra. Isso sem esquecer a posição estratégica da Somália (que, de facto, controla o acesso ao Mar Vermelho) e a proximidade com a Arábia Saudita: condições que, como veremos, são absolutamente determinantes. Não acaso, outro País sem paz da região é o Yemen, posto na frente das costas somalis, também numa posição nevrálgica para o transito entre o Oceano Índico e o Canal de Suez.

O ensaio The Historical Roots of the Somali Election Crisis (As Raízes Históricas das Crises Eleitorais da Somália”) foi apresentado pela revista online Internationalist 360º, uma publicação declaradamente marxista: portanto, abundam termos pré-históricos como “burguesia compradora liberal”, “burguesia estatal popular nacional”, “burguesia compradora neoliberal” e “burguesia compradora corrupta”. Um artigo bipolar e interessante por duas razões: porque se na segunda parte apresenta a realidade duma terra infeliz, a primeira demonstra o mal que podem provocar as ideologias. Para descrever a realidade somalis não é preciso incomodar Marx ou as várias burguesias: a posição estratégica da Somália faz que este País não possa ser livre e autónomo porque posto ao longo da principal rota planetária de abastecimento de petróleo. O resto é fumaça para orgasmos politicizados.

A primeira república (1960-1969)

A chegada do imperialismo europeu às costas da Somália histórica (que incluiu a República da Somália, o Ogaden e áreas somalis de Djibuti e do norte do Quénia) trouxe consigo a subversão da estrutura política patrilinear. As autoridades coloniais britânicas e italianas nomearam uma classe de intermediários, conhecidos como Cuqaal. Os Cuqaal proporcionavam a ligação entre as autoridades e o resto da população no território. Foi esta classe privilegiada Cuqaals (no interior da qual era possível encontrar empresários e funcionários administrativos) que formou a vanguarda política da luta nacionalista, culminada na formação da República da Somália em 1960.

Como em muitos outros Países africanos, a independência política não significou “liberdade” ou “autonomia”. A corrupção e o mercado “livre” continuaram a favorecer os relacionamentos com os antigos Países colonizadores (Italia e Grã Bretanha, em medida menor a França) e a pobreza fez o resto: as “ajudas” internacionais (não só europeias) provocaram dum lado o descontentamento das massas e do outro o reforço do exército apoiado pelos soviéticos (era a época da Guerra Fria). O que culminou na crise provocada pelo assassinato do Presidente Sharmarke a 15 de Outubro de 1969. Seis dias mais tarde, no dia 21 do mesmo mês, os militares encenaram um golpe de Estado, tomando a liderança.

A República Democrática (1969-1987)

O estudo de Internationalist 360º vê na República Democrática o Paraíso em terra: a Somália era uma terra feliz que promovia apenas os interesses do Sul contra o Imperialismo, que descolonizava as mentes do povo, investindo no nacionalismo cultural, aumentando a alfabetização urbana e rural, socializando a educação, reforçando o papel das mulheres na vida social e lutando contra o apartheid. Quem não queria viver num lugar assim?

Na verdade as coisas estavam um pouco diferente: a Somália continuava a ser uma País miserável e não podemos esquecer a guerra com a Etiópia. Explica Internationalist 360º: foi um conflito nacionalista “explorado por manobras geopolíticas ocidentais”. Nada disso: tanto a Etiópia quanto a Somália eram realidades socialistas. Em particular, a Etiópia era o aliado mais fiel da URSS no continente africano: e foi com as armas soviéticas (mas também de Cuba, Yemen do Sul, Alemanha do Leste e Coreia do Norte) que conseguiu defender-se do ataque somalis. O “paraíso socialista” da Somália tinha atacado o irmão marxista-leninista de Addis Adeba. Mais uma vez, o “socialismo real” tinha parido uma ditadura, neste caso aquela de Mohammed Siad Barre. Internation 360º nem tenta explicar como é que os regimes deste “socialismo real” acabam inevitavelmente em totalitarismos com culto da pessoa.

Com o ataque contra a Etiópia (1977), o bloco soviético decide interromper as ajudas à Somália. Aparentemente pouco muda em Mogadiscio: após o fim da guerra (1978), o poder permanece nas mãos de Said Barre. Mas entretanto os Estados Unidos tinham já entrado em cena com ajudas económicas (100 milhões de Dólares) e militares. Apesar das aparências (no governo ainda estava o partido do Presidente, o Partido Socialista Revolucionário Somalis), a Somália tinha entrado na órbita ocidental. O regime de Siad Barre tornou-se cada vez mais autoritário mas enfraquecia enquanto a Guerra Fria aproximava-se do fim. O genocídio de Isaaq (1987-1988), que destruiu grande áreas de várias cidades e provocou entre 50.000 e 100.000 civis mortos (há quem aponte para um total de 200 mil vítimas) e outros episódios desencadearam movimentos de resistência, apoiados pela Etiópia também, que surgiram em todo o País e acabaram por conduzir à Guerra Civil da Somália. Barre foi retirado do poder em 26 de Janeiro de 1991 e a Somália caiu no caos.

Delírios burgueses

Intervalo, com um passo atrás: a passagem desde o bloco soviético para aquele ocidental é explicado desta forma:

A burguesia do estado popular nacional tornou-se uma burguesia do estado comprador neoliberal subserviente aos interesses geopolíticos imperialistas ocidentais, mediada pela Casa subimperial da Arábia Saudita, implementando planos neoliberais impostos ao país pelos instrumentos da recolonização, pelas instituições financeiras internacionais (IFI) e pelo Clube de Paris.

Traduzindo numa linguagem humana: em volta do ditador formou-se uma classe de privilegiados, algo típico em qualquer ditadura. As forças ocidentais exploraram a situação para inserirem-se cada vez mais em profundidade no mecanismo estatal. A intervenção do FMI foi o golpe da misericórdia, como costume.

Tal oportunismo não é explicado pela psicanálise do Presidente “ditador” Siyad Barre, mas pelo carácter duplo da burguesia estatal, tanto popular nacional como comprador. […] O pessoal político que tinha responsabilidades nos governos populares nacionais na fase anterior, […] mais tarde alinhou-se com a nova globalização na esperança de permanecer no poder e de ser tolerado pelos mestres da Tríade (América do Norte, UE e Japão).

Em linguagem normal: a classe dos privilegiados alinhou com a nova ordem na esperança de manter o poder. Não é uma questão de burguesia: aconteceu sempre ao longo da História numa fase de transição. Há reacções que não dependem do dicionário marxista e nem precisam dele: focar-se na “burguesia popular nacional” ou “compradora” pode servir para encher-se a boca com termos “cultos” e impressionar a audiência, mas o risco é aquele de não compreender que o que se passou com a ditadura de Siad Barre já tinha acontecido durante os milénios anteriores.

De facto, todo o artigo de Internationalist 360º falha no ponto central: não consegue explicar por qual razão tanto a URSS antes quanto os EUA depois dedicaram enormes esforços para o controle dum dos Países mais pobres do planeta. A Somália praticamente não tem recursos naturais. A politicização forçada da história somalis impede ver algo que é óbvio aos olhos de todos ao pegar num mapa qualquer: a Somália no Oeste e o Yemen no Leste são as portas de acesso ao Mar Vermelho.

1. Somália 2. Yemen Mapa: MarineTraffic.com

Através do Mar Vermelho transita o crude que depois atravessa o canal de Suez; o mesmo canal, no sentido contrário, permite aceder de forma rápida ao Oceano Índico e a todo o Sul Leste asiático. Não acaso é por aí que passa a Rota da Seda marítima projectada pela China: a alternativa seria circum-navegar todo o continente africano.

À questão o Internationalist 360º dedica apenas uma (1) linha quando, na verdade, é a razão central e única de toda a obra de desestabilizarão tanto da Somália quanto do Yemen. Qual burguesia? Qual marxismo? Quem controla o canal de Suez controla 7.5% do tráfego mercantil mundial. É por esta razão que tanto a Somália quanto o Yemen não conseguirão encontrar a paz: é preciso que a instabilidade domine a região para evitar que possa emergir uma força capaz de impor uma qualquer forma de controle.

Zoneamento: o caos

A segunda parte do artigo é entregue às opiniões de alguns especialistas que, felizmente, parecem ter uma ideia bem mais clara: é o caso de Samir Amin (economista, cientista político e analista de sistemas mundiais de origem egípcio-francês) e de Alain Badiou (filósofo) os quais, apesar de serem de Esquerda, conseguem manter-se ligados ao mundo real.

Badiou, por exemplo, fala de “zoneamento”, argumentando:

em vez de assumir a árdua tarefa de estabelecer Estados sob a supervisão da metrópole, ou ainda mais, directamente de Estados metropolitanos, com a possibilidade de simplesmente destruir Estados […] em certos espaços geográficos cheios de riqueza adormecida, podemos criar zonas livres, anárquicas, onde já não existe nenhum Estado e onde, como resultado, já não temos de entrar em comunicação com aquele monstro temível que o Estado é sempre, mesmo quando é fraco. Podemos proteger-nos do risco permanente de que um Estado possa preferir outro e colocar barreiras comerciais.

Este é o que está a acontecer na Somália e no Yemen, tal como aconteceu no Iraque, no Afeganistão ou na Líbia. Apaga-se simplesmente o Estado, que fica substituído por aquela que Badiou chama erroneamente de zonas “anárquicas” (na realidade: zonas caóticas, sem algum tipo de ordem).

A estratégia ocidental evoluiu neste aspecto: onde possível já não instaura Estados-fantoches nas mãos de ditadores ou de limitados grupos de poder. Mais simples arrasar qualquer estrutura e alimentar o caos que, sem bem gerido, revela-se bem mais fiável dum qualquer ditador.

A “Guerra ao Terror” na Somália foi também isso: destruição do Estado, com inúmeros civis massacrados, drones norte-americanos da AFRICOM, senhores da guerra apoiados pela CIA, tropas da AMISOM e paramilitares somalis, práticas ecocidas como a desflorestação, destruição da vida marinha por empresas de pesca transaccionais e despejo de resíduos nucleares.

Aqui é possível observar o surgimento daquela classe de indivíduos que Amin define como “compradores”: corruptos que, juntamente com o desmantelamento de tudo o que restava da estrutura estatal, o assassinato sistemático das forças intelectuais e a adição de milhões ao drama dos refugiados, “retiram riqueza da associação com os detentores do poder político imposto e os senhores estrangeiros do sistema, os representantes (especialmente a CIA) dos Estados imperialistas e oligopólios. Funcionam como um intermediário altamente pagos, beneficiando de uma renda política eficaz que é a fonte essencial da sua riqueza”.

“Compradores”, termos que poderíamos também traduzir como “vendidos” ou “traidores”, tanto faz. Infelizmente, quando acabam as intervenções dos citados especialistas, International 360º regressa aos delírios:

Independentemente do carácter superficialmente endógeno do modelo sectário federal, o sistema mantém objectivamente o país como uma zona sem Estado no sistema global capitalista-imperialista branco supremacista, gerando uma solidariedade vertical das massas a um patriarcado particular do respectivo comprador; e um antagonismo horizontal entre as massas de diferentes patriarcados, que vêem na ascensão do corrupto de outros patriarcados uma ameaça à possível recepção de “riqueza a descer”.

Mas quem é que escreve estas coisas?

Em primeiro lugar: e basta tentar enfiar o “branco supremacista” em todos os lados. Quem ganha com a destruição de inteiros Países não é o “ariano”, é toda a sociedade ocidental (negros incluídos) com os respectivos aliados que “arianos” propriamente não são (ver o caso da Arábia Saudita). Não é um problema de raça mas de sistema podre.

A seguir: a análise é incorrecta. Não existe um “carácter superficialmente endógeno do modelo sectário federal”, existe o modelo profundamente endógeno baseado na tribalidade. O modelo do patriarcado foi “actualizado”, por assim dizer, substituindo o chefe da tribo pelo “comprador”. Isso explica a “solidariedade vertical das massas” a este último: é uma questão cultural. É impossível conceber um sistema mais cínico, perverso e ao mesmo tempo funcional: a cultura local, antiga de séculos, é adaptada às novas exigências, mantida nas formas para enganar as populações com as suas próprias armas.

E como se isso não fosse suficiente, após os esforços diplomáticos (Acordo de Vinte e Seis Facções de 1997, Conferência de Paz do Djibuti de 2000, Conferência de Paz de Mbagathi de 2002 e Conferência de Paz do Quénia de 2004), quando parecia haver uma luz no fundo do túnel, eis que aparece o terrorismo islâmico. Al Qaeda, da qual conhecemos tanto a origem quanto os financiadores. Tudo serve para manter um País num estado onde qualquer forma de governação seja impossível.

Não há paz na Somália e vai continuar a não haver paz: a tragédia dos 10 milhões de somalis soma-se àquela dos 30 milhões de iemenitas. As velhas ideologias já não conseguem acompanhar a realidade: atrapalham, distraem com termos arcaicos na patética tentativa de adapatar os factos aos dogmas. O inimigo move-se num patamar bem diferente: destrói, aniquila, retira liberdades e esfomeia não porque empurrado por uma mão cheia de princípios mas simplesmente para manter o controle num mundo onde cada vez mais conta o concreto e cada vez menos contam todos os outros valores.

Não é possível combater esta realidade, constantemente actualizada e adaptada às várias situações, com esquemas do século XIX. É preciso livrar-se destas gaiolas mentais para poder enfrentar um câncer que no topo não tem pensadores mas carrascos.

 

Ipse dixit.

Imagem: Voanews/AP

2 Replies to “No caos da Somália”

  1. Precisamos de uma VACINA que acabe com o Socialismo/Comunismo, essa é a verdade

  2. Os países com amplas riquezas naturais têm sido acossados pelos predadores de sempre. O mesmo com aqueles que se situam em posições estratégicas, como é o caso da Somália.
    Eu fico pensando quando os rios artificiais de petróleo e gás, em construção pela China, e alcançando quase todo mundo, estiverem em funcionamento, o que acontecerá. Que reviravolta em termos de ataque e defesa que novos países serão envolvidos pelos predadores de sempre?
    Esperança de paz é uma utopia tão distante neste planeta! E do que muito se fala: paz e amor, é o que menos tem, ou terá.
    Líbia e Iraque são pré exemplos do estabelecimento da paz consentida.

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