Alemanha: juiz declara lockdown ilegal

Mesmo ontem, nestas páginas, a notícia dos “campos de acolhimento” da Alemanha, destinados àqueles que recusam dobrar-se perante a lógica do confinamento obrigatório; hoje, sempre da Alemanha, chega um veredicto dum juiz que questiona e condena toda a política de encerramento. Um caso sério, ao ponto da revista Focus (edição alemã) tratar disso.

Na decisão de 24 páginas, o juiz distrital Matthias Guericke analisa até ao último pormenor a portaria anti-covid emitida na Primavera de 2020.

Como comenta a advogada Beate Bahner:

Este é o primeiro julgamento que, de uma forma muito completa e com grande compreensão da Lei Básica, do princípio do Estado de direito e do princípio da proporcionalidade, mostra de uma forma excelente porque é que esta proibição de contacto é inconstitucional.

O caso é simples: um homem que teve de ser multado por violar a proibição de contacto por celebrar o seu aniversário com pelo menos sete outras pessoas, originárias de oito famílias. Seis convidados a mais de acordo com a Portaria do Coronavírus da Região da Turíngia. Mas o juiz absolve o arguido e condena a portaria: inconstitucional e fundamentalmente inaceitável.

O veredicto analisa a situação legislativa alemã, da qual não vamos tratar aqui sendo um caso específico; mas é muito mais abrangente do que isso, observando o quadro pandémico geral, avaliando prós e contras das decisões tomadas pelas instituições.

Com a proibição do contacto, o Estado – embora com boas intenções – ataca os fundamentos da sociedade impondo uma distância física entre os cidadãos (“distanciamento social”). Até Janeiro de 2020, quase ninguém na Alemanha podia imaginar que o Estado pudesse proibir o convite dos nossos pais para casa com a ameaça de uma multa, a menos que se enviassem outros membros da família para fora de casa durante o tempo em que lá os pais estivessem. Quase ninguém podia imaginar que três amigos pudessem ser proibidos de sentar-se juntos num banco dum jardim. Nunca antes o Estado tinha considerado a possibilidade de utilizar tais medidas para combater uma epidemia.  Não é sequer considerada na análise de risco “Pandemia devido ao vírus Modi-SARS” (BT-Drs. 17/12051), que afinal descreveu um cenário com 7.5 milhões de mortes, uma proibição geral de contacto (bem como o recolher obrigatório e o encerramento extensivo da vida pública). No que diz respeito às medidas anti-epidémicas, para além da quarentena das pessoas em contacto com pessoas infectadas e do isolamento das pessoas infectadas, apenas são mencionados o encerramento de escolas, o cancelamento de grandes eventos e as recomendações de higiene (BT-Drs. 17/12051, p. 61f). Entretanto, a maioria das pessoas quase se resignou ao Novo Normal.

Segundo o juiz, porém, o que antes era interpretado como uma vida “normal” é agora reinterpretado como um delito criminal:

Embora pareça ter havido uma mudança de valores durante os meses da crise do Coronavírus, com o resultado de que acontecimentos anteriormente considerados absolutamente excepcionais serem agora vistos por muitas pessoas como mais ou menos “normais”, o que, naturalmente, também muda a perspectiva da Lei Básica, depois do que foi dito, não deve haver dúvidas de que com uma proibição geral de contacto o Estado constitucional democrático viola um tabu – até agora considerado como completamente óbvio.

Além disso, e como um aspecto a ser considerado separadamente, deve notar-se que com a proibição geral de contacto para efeitos de protecção contra o contágio, o Estado trata cada cidadão como um risco potencial para a saúde de terceiros. Se cada cidadão for considerado como um perigo do qual os outros devem ser protegidos, fica ao mesmo tempo privado da possibilidade de decidir a que riscos se expõe, ou seja, de uma liberdade fundamental. Se o cidadão vai a um café ou bar à noite e aceita o risco de infecção com um vírus respiratório por desejo de sociabilidade e joie de vivre, ou se é mais cauteloso porque tem um sistema imunitário enfraquecido e por isso prefere ficar em casa, já não lhe cabe decidir quando se aplica uma proibição geral de contacto”.

Portanto: estamos a falar de liberdade. Liberdade de “infectar os outros ” e de “espalhar a doença”? Não: liberdade de proteger-se ou de enfrentar o risco. E esta decisão não cabe ao Estado mas ao indivíduo. Chegámos a um ponto no qual é preciso decidir: pode a liberdade individual ser limitada em prol do interesse da maioria? Atenção com a resposta, pois as implicações são profundas.

Hoje o “interesse da maioria” é evitar o vírus, mas se o mesmo princípio for implementado (como está a ser) e reconhecido também no mundo do Direito, amanhã poderá envolver bem outras decisões. Não esquecemos que o “interesse da maioria” é o que encontramos muitas vezes na base dos totalitarismos. Qualquer “interesse da maioria” assim como eventuais limitações à liberdade que não sejam claramente estabelecidos e aprovados directamente pelos cidadãos através de votações pode constituir um álibi para a implementação de medidas coercitivas. É por esta razão que na Suíça o confinamento obrigatório e outras medidas ” de contenção” serão avaliadas através dum referendo.

Além disso, o juiz analisa os danos colaterais das decisões de confinamento, algo que está a tornar-se cada vez mais evidentes (páginas 18 e 19):

  1. Perdas de lucros/perdas de empresas/artesãos/freelancers que são consequências directas das restrições de liberdade que lhes são dirigidas
  2. Perdas de lucros/perdas de empresas/artesãos/freelancers que são consequências indirectas das medidas de encerramento (por exemplo, perdas de lucros de fornecedores de empresas directamente afectadas; perdas de lucros resultantes da interrupção das cadeias de abastecimento e que conduzem, por exemplo, a perdas de produção; perdas de lucros resultantes de restrições de viagens).
  3. Perda de salários e vencimentos devido a trabalho a tempo reduzido ou desemprego
  4. Falências/destruição de meios de subsistência
  5. Custos consequentes de falências/destruição de meios de subsistência

O Estado ajuda do ponto de vista económico? na Alemanha, por exemplo, fala-se “Escudo Corona”:

A maioria destes danos será bastante identificável. São certamente gigantescos no agregado. Podemos ter uma ideia da sua dimensão considerando os montantes que o Estado está a injectar no ciclo económico como ajuda contra o Coronavirus. O chamado “Escudo Corona” decidido pelo governo federal inclui 353.3 mil milhões de Euros em subvenções e outros 819.7 mil milhões de Euros em garantias, ou um total de mais de 1 trilião de Euros. Este é, como diz o governo federal, o maior pacote de ajuda na história alemã. A isto acrescenta-se a ajuda dos Estados federais. Uma vez que a ajuda estatal é em grande parte sob forma de empréstimos ou garantias de empréstimos, não é necessariamente acompanhada por perdas igualmente grandes no sector privado. Por outro lado, as perdas privadas serão em qualquer caso muito superiores à indemnização estatal ou aos montantes pagos como fundos perdidos.

Nunca antes na história da República Federal da Alemanha foram registaram perdas económicas desta magnitude causadas por uma decisão estatal. Ao avaliar os danos causados ao sector privado e às famílias, deve ter-se em conta que as perdas foram ou serão parcialmente compensadas por benefícios estatais. Os benefícios do Estado reduzem, portanto, os prejuízos económicos para as entidades económicas privadas. Contudo, não reduzem os danos económicos globais porque sobrecarregam os orçamentos públicos e, por conseguinte, em última análise, os contribuintes. Estes custos não devem ser esquecidos ao calcular as consequências do confinamento.

Como outras consequências, o juiz enumera (páginas 19 e 20):

  1. Aumento da violência doméstica contra crianças e mulheres.
  2. Aumento da depressão devido ao isolamento social.
  3. Psicose/ansiedade devido ao Coronavirus.
  4. Ansiedade e outras perturbações mentais/ sobrecarga nervosa devido a problemas familiares/pessoais/profissionais como resultado do bloqueio.
  5. Aumento dos suicídios, por exemplo, como resultado do desemprego ou de falência.
  6. Danos para a saúde como resultado da falta de exercício.
  7. Omissão de operações e tratamentos hospitalares porque os leitos hospitalares são reservados aos pacientes do Coronavirus.
  8. Omissão de operações, tratamentos hospitalares, consultas médicas porque os pacientes temiam infecção com Covid-19.

A conclusão do juiz é muito dura e menciona também os danos causados em muitos Países do Sul do planeta que dependem economicamente da Alemanha:

Com base no que foi dito, não há dúvida de que as mortes atribuíveis às medidas da política de encerramento excedem em muitas vezes o número de mortes evitadas pelo encerramento. Só por essa razão, as normas a serem avaliadas aqui não satisfazem o requisito de proporcionalidade. Além disso, existem as restrições directas e indirectas à liberdade, os gigantescos prejuízos financeiros, os imensos prejuízos para a saúde, e os prejuízos intangíveis.

A palavra “desproporcional” é demasiado imprecisa para sequer dar uma ideia da escala do que está a acontecer. A política de bloqueio seguida pelo governo regional na Primavera (e agora novamente), na qual uma proibição geral de contacto foi (e é) uma componente essencial, é uma decisão política catastroficamente errada com consequências dramáticas para quase todas as áreas da vida das pessoas, para a sociedade, para o Estado e para os Países do Sul Global.

Há vários pontos neste veredicto que é preciso reter, mas dois em particular: “liberdade” e “proporcionalidade”.

Da primeira já foi dito, inútil repetir. E da “proporcionalidade”? Este é um assunto que a maioria dos defensores das “medidas de contenção” tende a ignorar, mas existe um ditado português que bem resume o conceito: “pior a emenda que o soneto”. Como é óbvio, cada resposta tem que ser proporcionada ao relativo input: se a resposta provocar mais prejuízos do que a doença em si, então algo não bate certo. É esta a nossa situação, tal como atesta o juiz.

Tudo lícito perante a necessidade de “poupar vidas”? Raciocínios que não têm em conta os mortos? Bem pelo contrário: é mesmo através da “conta dos mortos” que podemos afirmar que algo não bate certo. Como já relatado há meses, há doenças que matam anualmente milhões de pessoas e contra as quais não é tomada nenhuma medida de confinamento, obrigatoriedade das máscaras ou distanciamento social. As infecções respiratórias provocaram em 2017 e em todo o mundo mais de 3.2 milhões de mortos. Escolhi o ano de 2017 por apresentar não previsões mas dados já assumidos. E 2017 não foi um ano “especial”, foi um ano absolutamente “normal”.

Confrontando a situação actual, podemos observar como no caso do Coronavirus, segundo o site World O Meter, até hoje morreram no planeta 2.140.517 pessoas por causa da Covid-19. Na verdade, trata-se dum número particularmente inflacionado: só para ter uma ideia, as zaragatoas não conseguem distinguir entre Coronavirus, Influenza A e Influenza B (é de poucas semanas atrás a patente dum novo teste capaz de efectuar a distinção). Mas, mesmo admitindo que o valor esteja certo (e de certeza que não está), como justificar as medidas de confinamento perante a Covid-19 e, ao mesmo tempo, a ausência de medidas perante uma das principais causas de morte no planeta? Por qual razão a cruzada contra o Coronavirus e não, por exemplo, contra a pneumonia e as outras infecções virais respiratórias? 3.2 milhões de óbitos não justificam medidas de prevenção?

Um exemplo simples e imediato: sabendo que o fumo dos cigarros constitui uma forte causa de predisposição nas doenças infecciosas (e nem falamos do câncer), por qual razão os Estados não apenas não proíbem a venda de cigarros como até continuam a ganhar com isso através dos monopólios? Onde fica a lógica? E, sobretudo, onde ficam aqueles que hoje gritam em prol das medidas de contenção contra a “pandemia”? Falamos de 8 milhões de mortos por ano, de imensos recursos públicos gastos para o tratamento dos doentes, de camas de hospitais ocupadas, meios de diagnósticos utilizados… curioso porque aqui é reconhecida ao cidadão a liberdade de escolha: fumar ou não fumar é uma opção só do indivíduo, não da comunidade.

“Salvar vidas”? Bom, se a ideia for esta então por qual razão não falar das doenças não infecciosas que seria possível limitar ou até erradicar com esforços conjuntos e que, pelo contrário, são ignoradas ou quase (diarreia, água contaminada, etc.)? Ah, não, desculpem: estas são coisas da África, de alguns Países asiáticos… que se desenrasquem, justo? É diferente quando a ameaça ficar mais próxima: as perspectivas mudam, e com que rapidez! Mas faz sentido ficarmos preocupados (“pelos outros!”) e pôr em jogo até a nossa liberdade só quando o perigo estiver de perto?

 

Ipse dixit.

One Reply to “Alemanha: juiz declara lockdown ilegal”

  1. Olá Max: quem é esse juííz ? Os interesses dele coincidem com os meus. Seu linguajar é simples, perfeitamente entendível, não caracteriza o palavrório dos juízes em geral, que não dão duas palavras sem uma ser em latim, nem deixam de citar leis e cláusulas e mais emendas a cada parágrafo. Pelo menos os juízes brasileiros. Daí provém a curiosidade, como também saber se a sentença é definitiva, ou passa por outros tribunais, se pode ser revogada.
    Mesmo que tudo isso venha a acontecer, é válida e inédita a sua posição.

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