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O mundo das multinacionais: as “profecias” de Cefis

Muito provavelmente o nome de Eugenio Cefis nada dirá aos Leitores de Informação Incorrecta. Pouco mal: até em Italia, pátria do Cefis, a maioria da população não conhece o sujeito. Normal: Cefis, apesar de desenvolver uma actividade de primeiro plano no âmbito da economia internacional, era uma daquelas pessoas que ficavam longe dos holofotes. Não precisava de publicidade, bem pelo contrário, evitava-a.

Um passo atrás e um curto resumo. Anos ’40, logo após a Segunda Guerra Mundial: Enrico Mattei tomas as rédeas da Agip, a empresa do Estado que gere petróleo e gás. Ideia de Mattei: tornar a Agip um dos principais actores mundiais na exploração e comercialização do crude. Mattei não é estúpido e no prazo de poucos anos consegue contractos exclusivos com os Países do Médio Oriente. Mais: catapulta a Agip na química avançada, abre ao nuclear, constrói infraestruturas. A Agip está realmente a tornar-se “algo grande”.

As multinacionais observam e, numa primeira fase, tentam com Mattei os métodos usuais: ameaças anónimas, circulação de ficheiros construídos para demolir politicamente o alvo (chega-se a afirmar que Mattei tem simpatias comunistas, ele que sempre tinha sido um cristão praticante)… mas Mattei ignora. Até que, em 1962, Mattei é eliminado fisicamente: uma bomba no seu avião. Mas só em 1994 a verdade será descoberta: as “Sete Irmãs” (Royal Dutch Shell, actualmente Shell; Anglo-Persian Oil Company, hoje BP; Standard Oil de New Jersey e de New York, hoje ExxonMobil; Texaco, Standard Oil California e Gulf Oil, hoje ChevronTexaco) tinham contactado a Mafia siciliana que concluiu a operação com a instalação duma bomba no aeroporto de Catania (Sicilia).

É aqui que aparece a figura de Eugenio Cefis, Cavaleiro da Grande Cruz da Ordem de Mérito da República Italiana, Grande Oficial da Ordem de Mérito da República Italiana, Cavaleiro do Trabalho, próximo do partido de governo Democracia Cristiana (emanação italiana da Administração de Washington), afiliado da loja maçónica P2 (da qual foi também um fundador). Após a morte de Mattei, Cefis tomas as rédeas da Agip e assim começa o processo de “normalização”, com a empresa italiana que volta no lugar de subordinada perante as Sete Irmãs. A carreira de Cefis (cujo nome apareceu não poucas vezes nas investigações sobre o atentado contra Mattei, sendo hoje evidente uma sua participação na operação) continuará ao longo das décadas seguintes, sempre longe dos holofotes mas sempre em empresas de primeiro plano com amplas ligações internacionais.

E é em 1972 que Cefis discursa perante os militares da Academia Militar de Modena (Italia), encontro no qual esteve presente o psiquiatra e psicanalista Elvio Fachinelli que transcreveu o discurso. Mais tarde, Fachinelli doou o discurso de Cefis a Pier Paolo Pasolini, o qual utilizou no livro Petrolio (1975) para descrever o iminente nascimento das finanças multinacionais e o declínio das economias nacionais.

A seguir alguns excertos do discurso de Cefis. Lembrem-se da data e do contexto: estamos em 1972 e quem fala provavelmente não faz parte da elite supranacional mas está em contacto com ela. Nada de “profecias” por aqui: o que Cefis diz entre as linhas é “foi estabelecido que o mundo será assim; e, portanto, assim será. Adaptem-se a essas directrizes implacáveis, caso contrário serão atropelados”. É o programa do qual hoje podemos observar a plena implementação.

 

Excertos de “A minha pátria chama-se Multinacional”

(número 6 do bimestral L’Erba Voglio, Junho/Julho 1972)

página 8: “Mesmo nas suas decisões de investimento, as empresas atribuíram uma importância secundária às fronteiras nacionais, escolhendo o local para as novas instalações que poderiam parecer mais rentáveis, independentemente de estarem num estado ou noutro”.

p. 9: “os mesmos estudiosos prevêem que em 2000 … mais de dois terços da produção industrial mundial estarão nas mãos das 200/300 maiores empresas multinacionais”.

p. 11: “enquanto o nosso continente estiver fragmentado em vários Estados, enquanto a multinacional puder ser identificada com um ou dois países de origem, ou seja, com os países das empresas-mãe, as iniciativas das filiais da multinacional terão sempre de combater um certo clima de desconfiança devido ao facto dos seus centros de decisão mais importantes escaparem ao controlo do poder público local”.

p. 12: “pode por vezes acontecer que alguns governos nacionalizem unidades de produção individuais pertencentes à empresa multinacional. Mas é difícil para um tal governo resistir à pressão política que as multinacionais podem exercer”.

p. 13: “é muito difícil que um país que ainda é pobre e atrasado possa dar-se ao luxo de tomar iniciativas políticas que desencorajem o investimento estrangeiro. Os direitos que são pagos ao país de acolhimento, a moeda derivada das exportações, os salários com que a mão-de-obra local é paga, são factos económicos de tal importância que ofuscam os problemas de autonomia e prestígio político”.

p. 15: “há uma tendência crescente para a identificação da política com a política económica”.

p. 15: “se os controlos estatais criarem restrições excessivas ao investimento e às operações num país, a empresa multinacional pode ainda agir reforçando as suas actividades noutras áreas geográficas e desinvestindo do país em que se sente demasiado contrariada”.

p. 16: “é suficientemente fácil para a filial de uma empresa multinacional provar às autoridades fiscais que está sempre com prejuízo e, ao mesmo tempo, criar um bom negócio para a empresa-mãe”.

p. 16: “os estados nacionais nas suas relações com as empresas multinacionais parecem muitas vezes como os jogadores de uma equipa de futebol forçados por um regulamento absurdo a jogar apenas na sua própria área das grandes penalidades, deixando os seus adversários livres para se movimentarem à vontade no campo”.

p. 16: “mesmo dum ponto de vista militar, a única resposta possível é aumentar a dimensão do poder político, pelo menos a nível continental”.

p. 16: “a defesa do próprio país é cada vez menos identificada com a defesa do território e é provável que cheguemos também a uma modificação do próprio conceito de Pátria … o conceito de Pátria é um conceito que se transformou tanto ao longo do tempo que, mesmo na época do Risorgimento, muito poucos eram os cidadãos que sabiam serem italianos e não se consideravam simples habitantes do Reino das duas Sicílias ou do Grão-Ducado da Toscana”.

p. 16: “não se pode pedir às empresas multinacionais que parem e esperem que os estados elaborem uma resposta”.

p. 17: “os grandes centros de decisão já não estarão no Governo ou no Parlamento, mas na gestão de grandes empresas e sindicatos, este também destinados a uma coordenação internacional”.

p. 17: “os exércitos nacionais baseados no alistamento obrigatório poderiam ser destinados a dar novamente lugar a aparelhos militares profissionais semelhantes ao que aconteceu há séculos atrás; aparelhos militares não diferentes na sua tecnicidade de uma organização produtiva moderna”.

p. 18: “o sentimento de pertença do cidadão ao Estado está destinado a desaparecer e, paradoxalmente, poderia ser substituído por um sentimento de identificação com a empresa multinacional com a qual se trabalha”.

p. 18: “é evidente que se a Itália é um mercado demasiado pequeno para uma grande empresa, a Europa é, em vez disso, o maior mercado do mundo. Se houvesse um interlocutor a nível europeu capaz de exercer controlo político sobre as multinacionais, com poderes muito para além da Comunidade Económica Europeia, as iniciativas das multinacionais poderiam contribuir mais facilmente para a resolução dos desequilíbrios económicos em vez de os agravar. Esta hipótese, contudo, pode ser concretizada quando os estados-nação individuais renunciam, pelo menos em parte, à sua soberania”.

 

E, abracadabra!, aqui está o nosso mundo, visualizado já há quarenta anos. Uma massificação implacável a ser organizada segundo um sistema inexpugnável de poder, liquidamente estendido por todo o planeta; um feudalismo de facto invencível que existe em razão de sua própria força de persuasão diabólica. Europa e Euro, a dissolução dos Estados soberanos, a reorganização dos exércitos numa base privada em defesa do capital, a impossibilidade de países individuais combaterem efectivamente as corporações, o poder político e a direcção económica subsumida no poder financeiro global.

1972: nas ruas os demonstrantes levantavam bandeiras avermelhadas e gritavam “poder ao povo!”, havia tiroteios, havia bombas. Nas sedes das multinacionais fechavam-se as janelas, o barulho ficava de fora; ligava-se o ar condicionado e, calmamente, projectava-se o futuro. Ou talvez não: não é tudo isso apenas o fruto dos teóricos das conspirações?

E Cefis? Em 1977 retirou-se da cena político-económica para estabelecer-se em Lugano, nas margens do lago suíço do Ceresio, onde viveu tranquilamente até a morte em 2004.

 

Ipse dixit.

Nota: o discurso integral de Cefis pode se descarregado neste link (cortesia do Blog de Alceste, um dos sofisticados em italiano mas de não fácil leitura), com as notas de Pier Paolo Pasolini: todavia é a versão original, portanto inteiramente em idioma italiano.