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O tubarão do rio

Uns dias no Alentejo, a nadar num rio. Não há tubarões, mas se houvesse um? Um tubarão de rio: assustador.

O tubarão enfrentaria o pobre Max, equipado com o seu bonito fato de banho: Max acabaria mal? Muito provável, praticamente certo. Mas o que interessa é que, independentemente do resultado da luta, nas capas dos diários do dia seguinte o tubarão seria o mau da fita, enquanto Max, vitorioso ou derrotado, continuaria a ser o bom, a pobre vítima.

E isto apesar do tubarão estar a nadar no seu ambiente natural, em vez de vestir-se com um fato de banho e entrar na casa do Max. O tubarão ataca o pobre Max por instinto, por necessidade de sobreviver e não por um capricho. Em suma, é Max que invade terras que não são suas, que força as regras da sua própria natureza e provoca a luta com as suas escolhas unilaterais. Esta é a verdadeira diferença entre o tubarão e Max: os seres humanos têm consciência de si próprios, têm (ou deveriam ter) autoconsciência.

Tal é a natureza do homem, que não apenas viola todos os contextos aos quais tem acesso, como também decide ser o bem, o norte da bússola ética.

Atenção: este processo não mudaria mesmo que Max evitasse a luta, cantasse os louvores do tubarão ou fizesse mea culpa pela intrusão humana. É sempre o homem que define o significado dos acontecimentos, onde estão o certo e o errado, o que se deve aprender com a história, como é melhor ou pior avaliar as circunstâncias e qual o papel que os protagonistas têm. Tudo isto continua a estar no poder sempre e só do homem, nunca do tubarão.

E esta é a trágica realidade da autoconsciência: não pode evitar de forjar a realidade de acordo com as suas próprias necessidades. Seja qual for essa necessidade: decidir sentir-se um heróico guerreiro glorificando o seu próprio poder ou, em vez disso, descrever-se como um mesquinho invasor, celebrando um amor vago pelo universo e nutrindo o seu próprio sentimento de culpa.

É faculdade e inevitável condenação do ser humano decidir o sentido das coisas, dobrando-as constantemente para que assumam um sentido que justifique o nosso papel. Isso é assustador, muito mais do que um tubarão de rio: podemos actuar, mesmo com acções más e depois podemos justificar as nossas escolhas com a nossa ética unilateral. É um grande poder e é preciso ter uma enorme sentido de responsabilidade para fazer sempre a escolha certa, para nós e para os seres que nós rodeiam.

E é uma faca de dois gumes porque perceber isto é o passo essencial para assumirmos verdadeiramente a responsabilidade e o poder sobre as nossas próprias vidas também. Mas aqueles que não conseguem entende-lo, que não estão conscientes dos processos que definem a realidade e a identidade, são inevitavelmente escravizados. Há acções “boas” ou “más”? Interessa? Deveria interessar, mas como podemos avaliar algo com uma ética de sentido único? O resultado é que há pessoas que são responsáveis das suas acções (“boas” ou “más”) e legiões de escravos.

Nota: no rio não havia tubarões.