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China: credito social, censura & lambedores

O Leitor está pronto para ir de férias, a sua bagagem está cheia, os quartos estão reservados? Perfeito. Ou quase. Porque na verdade há um pequeno problema: o governo cancelou os seus bilhetes. Possível?

Bem possível se o Leitor morar na China. Milhões de chineses são sancionados porque a pontuação de crédito social deles foi reduzida. Um método de vigilância do qual já falámos e que temos que observar com extremo interesse: agora é a China, amanhã será aqui. O modelo chinês é utilizado pelo Partido Comunista Chinês para manter a população sob atrelado. Mas é isso mesmo: um modelo, por enquanto testado, no futuro exportado.

Exageração? Nem tanto: onde foi testado com sucesso o lockdown, o confinamento obrigatório contra o “terrível” Coronavirus, antes de ser imposto no resto do planeta?

A China é o laboratório: apropriou-se da gestão das novas tecnologias e está a tornar-se, perante os nossos olhos, um líder no âmbito. Big Data, reconhecimento facial, algoritmos de previsão já não têm segredos para os chineses; nisso tornaram-se mestres. O desenvolvimento de novas tecnologias tem por objectivo melhorar a vida das pessoas? Sim, no mundo dos sonhos ou nas publicidades de Silicon Valley. A realidade é um pouco diferente: na China, as novas tecnologias destinam-se a monitorizar a vida das pessoas em todos os cantos das suas vidas.

Pequim está a construir uma rede social gigantesca de 1.4 biliões de pessoas. Cada uma delas é avaliada de acordo com o seu comportamento na vida diária, digitalizada com o auxílio de 200 milhões de câmaras de vigilância. Os algoritmos calculam então para cada um deles o “crédito social”. E o crédito social conta: é dele que depende a aprovação ou a negação à deslocação e aos benefícios dos serviços públicos.

O credito social

O leitor está a tentar atravessar a rua quando o semáforo está verde para automóveis? O seu rosto é imediatamente reconhecido pela câmara de vigilância instalada a curta distância, e uma voz do altifalante ordena-lhe que recue imediatamente e regresse à calçada. Não se trata apenas de uma ordem para fins de segurança rodoviária. De facto, a sua “pontuação social” irá imediatamente baixar alguns pontos como resultado deste acto incivilizado.

Desde 2014, as autoridades têm vindo a experimentar o crédito social em toda a China. Cada cidadão chinês detém um capital de 800 pontos como crédito da sua pontuação social. Em qualquer momento pode perder pontos e o saldo, actualizado em tempo real, está estreitamente associado à sua identidade. Se a sua pontuação for boa, poderá circular, apanhar um avião, deslocar-se livremente, aceder aos serviços; caso contrário, ser~´ao cortados os benefícios e, nos casos mais graves, será condenado à prisão domiciliária e tornar-se-á um pária da sociedade.

Perder pontos é simples: em algumas regiões, o crédito social baixa por cometer infracções menores tais como passear o cão sem trela.

Isto acontece porque o crédito social toca todos os aspectos da vida. Na verdade, graças à magia de Big Data, os sistemas de reconhecimento visual estão ligados aos dados fiscais, financeiros, jurídicos e médicos de qualquer cidadão. Os dados são processados em tempo real por mega-servers embutidos de AI, inteligência artificial. Para ter uma boa pontuação social não basta atravessar a rua com um sinal vermelho para carros ou passear o cão com a trela: é preciso pagar as contas a tempo, fazer a recolha separada do lixo, fazer trabalho voluntário, não fumar em locais públicos, etc. A pontuação social é o resumo de toda a vida de um indivíduo.

Esta pontuação é a aprovação para obter um acesso mais fácil aos créditos ou para evitar filas de espera para os serviços hospitalares. Com cada infracção, a pontuação social diminui e com ela aumenta o risco de receber multas ou obstáculos financeiros à sua liberdade. Uma forma de ditadura numérica baseada na gestão algorítmica.

Assustador? Sem dúvida. De acordo com um inquérito da Associated Press, 17.5 milhões de bilhetes de avião foram bloqueados no ano passado por crimes ligados ao crédito social, incluindo impostos e multas não pagos, como parte de um sistema que, segundo o partido no poder, melhorará o comportamento da população.

Outros 5.5 milhões de pessoas foram proibidas de comprar bilhetes de comboio, de acordo com o Centro Nacional de Informação de Crédito Público.

O partido alega que as multas e as recompensas do “crédito social” melhoram a ordem numa sociedade em rápida mutação após três décadas de reformas económicas que viraram as estruturas sociais de pernas para o ar. Este sistema deve ser visto no contexto dos esforços empreendidos pelo governo do Presidente Xi Jinping para utilizar tecnologias que vão do processamento de dados à sequência genética e ao reconhecimento facial para reforçar o controlo.

O Partido Comunista Chinês quer alcançar um sistema nacional até o final deste ano, mas ainda não especificou em pormenor como funcionará. As sanções possíveis incluem restrições às viagens, aos negócios e ao acesso à educação. Uma publicidade está actualmente a ser repetida nos meios de comunicação social estatais: “Assim que perder a confiança que temos em você, terá de lidar com restrições em todo o lado”. Parece uma ameaça? É uma ameaça. É este o sistema que o governo escolheu para lidar com os seus 1.433.783.686 cidadãos. Mas há mais de que cidadãos: há empresas também.

As empresas

A vigilância em massa diz respeito não só aos indivíduos, mas também às empresas que também têm a sua “pontuação social”. As empresas inscritas na lista negra podem perder contratos do Estado ou o acesso a empréstimos bancários ou ser proibidas de emitir obrigações ou importar bens. De acordo com o centro de informação do governo, os crimes sancionados em 2018 como “crédito social” incluíam publicidade enganosa ou violação das regras de segurança dos medicamentos.

Um total de 290.000 pessoas foram impedidas de ocupar cargos de direcção ou de representação legal de uma empresa. Quer se trate de empresas chinesas ou estrangeiras, o comportamento é acompanhado ao pormenor.

Algumas empresas escolheram um equipamento de “vigilância emocional” para monitorizar o estado emocional dos seus colaboradores em tempo real. Sensores integrados no capacete dos trabalhadores transmitem as ondas cerebrais para um computador. Isto provavelmente funciona como um electroencefalograma, tal como referido na Revisão Técnica do MIT: os algoritmos de inteligência artificial analisam então os dados em busca de valores aberrantes que possam indicar um estado de ansiedade ou raiva.

Esta vigilância em massa não está ainda concluída mas alcançou um bom desenvolvimento: começou há 20 anos, no ano de 2000, quando o Ministério da Polícia começou a trabalhar no projecto de uma rede numérica nacional de localização de indivíduos.

E há dúvidas de que a vigilância numérica não esteja sozinha: poderia ser acompanhada por uma vigilância genética. Os activistas dos direitos humanos afirmam (mas faltam provas conclusivas) que as pessoas que vivem nas regiões muçulmanas e outras minorias étnicas foram forçadas a dar amostras de sangue para formar uma base de dados genética. Repetimos: não há provas conclusivas.

O que há é cerca de um milhão de Ouighours, Cazaques e outras minorias muçulmanas detidas em campos de educação política, de acordo com funcionários americanos e peritos da ONU. O governo não nega a existência destes campos, só afirma que são centros de formação profissional concebidos para eliminar o extremismo na região.

Faz sentido. Doutro lado, o credito social não é uma forma de controlo: é para o bem do cidadão. Como sempre.

Os Lambedores de botas

Perante este cenário, as democracias ocidentais deveriam ficar horrorizadas e falar em sanções. Seria o mínimo, dado que uma sanção não se nega a ninguém hoje em dia. Mas, curiosamente ou talvez não, não é isso que está a acontecer. Pelo contrário: há uma parte do Ocidente cuja preocupação parece ser aquela de não irritar Pequim e de fazer que o projecto estilo-Orwell possa continuar sem obstáculos.

Na plataforma Reddit, o user Lebbe publicou um lista de empresas definidas como China Bootlickers (“Lambedores de botas da China”), depois de a empresa Zoom ter desactivado as contas de destacados activistas chineses pró-democracia que vivem nos Estados Unidos. Uma lista interessante porque cada afirmação é suportada por um link de confirmação (a lista com a sligações pode ser também encontrada neste artigo de Zero Hedge).

Eis a lista:

 

Ipse dixit.