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John Pilger: excepcionalismo estadunidense impele mundo para guerra

Excepcionalismo Estadunidense Impele Mundo Para Guerra – John Pilger

de Finian Cunningham

 

Nascido na Austrália, John Pilger vem trabalhando há mais de cinco décadas como repórter e cineasta documentarista, cobrindo guerras e conflitos em todo o mundo. Na entrevista a seguir o jornalista premiado diz que o mundo possivelmente encontra-se em conjuntura geopolítica mais perigosa do que mesmo durante a Crise dos Mísseis Cubanos de 1962 e o ápice da Guerra Fria. Isso porque o “excepcionalismo” estadunidense – que, destaca ele, reverbera o da Alemanha nazista – entrou em fase de hipercanalhice(*). A incansável difamação da Rússia pela mídia estadunidense e do Ocidente mostra que há poucas redlines(**) remanescentes capazes de restringir agressão a Moscou, ao contrário do que acontecia, pelo menos, durante a passada Guerra Fria. A recusa de Rússia e China de se curvarem diante das imposições de Washington está enfurecendo o aspirante estadunidense a domínio supremo e frustrando seu plano de domínio zero-sum(***) do mundo.

(*) hyper-rogue – Desbragadamente rogue. Rogue é pessoa desonesta ou sem princípios. O sinônimo mais próximo é scoundrel, pessoa desonesta ou sem escrúpulos. Lexico powered by Oxford

(**) redline – Divisa ou limite que não deve ser cruzado. Lexico

(***) zero-sum – Relacionado com ou denotando situação na qual o que é ganho por uma parte é perdido pela outra. Lexico

John Pilger também apresenta seus pontos de vista abrangentes acerca da sistemática deterioração do jornalismo mainstream(*) do Ocidente, o qual passou a funcionar como matriz escancarada de propaganda em favor do poder e do lucro. Ademais, ele condena a perseguição e tortura, em curso, de seu compatriota australiano o editor Julian Assange, que está sendo mantido em prisão britânica de segurança máxima comumente usada para manter presos culpados de assassínio em massa e condenados por terrorismo. Assange está sendo perseguido por dizer a verdade e por desmascarar crimes enormes cometidos por Estados Unidos – US e Grã-Bretanha, diz Pilger. É aviso sinistro de que guerra secreta está sendo conduzida contra o jornalismo independente e a liberdade de expressão e, mais agourentamente, indicativo de deslize rumo a fascismo de estado policial nas assim chamadas democracias do Ocidente.

(*) mainstream – Como adjetivo, significa pertencente ao ou característico do mainstream. Mainstream, substantivo, é as ideias, atitudes ou atividades compartilhadas pela maior parte das pessoas e vistas como normais ou convencionais. Lexico

Entrevista

Pergunta: Em seu filme documentário, The Coming War on China (2016)(*) [A Guerra Vindoura com a China], você avalia que os US estão em rota de colisão estratégica com a China com vista ao controle da região Ásia-Pacífico(**). Você ainda acredita em ameaça de guerra à espreita entre as duas potências?

(*) https://vimeo.com/277975923 (with english subtitles)

(**) https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81sia-Pac%C3%ADfico

John Pilger: A ameaça de guerra poderá não ser imediata, mas sabemos ou deveríamos saber que eventos podem mudar rapidamente: cadeia de incidentes e passos malcalculados pode provocar guerra que se pode alastrar de maneira imprevisível. Os cálculos não são objeto de disputa: o “inimigo” tem apenas 12 minutos para decidir se e onde ordenar retaliação nuclear.

Pergunta: Recentemente o Secretário de Estado dos US Mike Pompeo acusou a China de ser “verdadeiramente hostil aos interesses dos Estados Unidos”. O que, de acordo com sua opinião, está motivando as preocupações dos US em relação à China?

John Pilger: O Departamento de Estado no passado declarou: “Buscar menos do que poder preponderante seria optar por derrota.” Na raiz de grande parte da insegurança da humanidade estão, é digno de nota, a autoconfiança e o autodelírio de uma nação: os Estados Unidos. A noção que os Estados Unidos da América têm de si próprios é amiúde difícil para os restantes de nós compreendermos. Desde os dias do Presidente Teddy Roosevelt a “missão sagrada” consiste em dominar a humanidade e seus recursos vitais, se não por intimidação e suborno, então por violência. Nos anos 1940 “intelectuais da guerra” estadunidenses, tais como o diplomata e historiador George F Kennan, descreviam a necessidade de domínio estadunidense da “Grande Área”, que é a maior parte do mundo, destacadamente a Eurásia, e especialmente a China. Não estadunidenses deveriam ser moldados à “nossa imagem”, escreveu Kennan; os Estados Unidos eram o exemplo a ser seguido. Hollywood tem refletido isso com impressionante precisão.

Em 1945, essa visão, ou mania, ganhou remodelação moral com a derrota da Alemanha nazista. Hoje, muitos estadunidenses acreditam que seu país é que ganhou a Segunda Guerra Mundial e que eles estadunidenses são os seres humanos “excepcionais”. Essa mitologia (reminiscente da propaganda nazista) vem tendo há muito tempo preensão evangélica nos US e constitui o pilar central da necessidade de dominar, que não pode prescindir de inimigos e medo. A longa história de racismo dos Estados Unidos em relação à Ásia e sua humilhação histórica do povo chinês tornam a China o inimigo atual perfeito.

Deve ser acrescentado que “excepcionalismo” não é adotado apenas pela direita estadunidense. Embora possam não admiti-lo, muitos liberais acreditam nessa noção, e bem assim aqueles que se descrevem como “de esquerda”. Ela é a ova da ideologia mais rapaz do mundo: o americanismo. O fato dessa palavra ser raramente pronunciada é parte de seu poder.

Pergunta: Acha você anomalia estranha a administração Trump ter adotado política agressiva em relação à China e, nada obstante, o presidente estadunidense parecer buscar relações mais amigáveis com a Rússia?

John Pilger: Dividir China e Rússia com o objetivo de enfraquecer ambas é venerável jogo estadunidense. Henry Kissinger praticou-o. Quanto a Trump, é impossível saber o que ele pensa. Independentemente de seus acenos convidativos a Putin, os US têm agressivamente subvertido a Ucrânia e militarizado a fronteira ocidental da Rússia, e representam ameaça mais imediata à Rússia do que à China.

Pergunta: Acredita você que o processo de impeachment em andamento contra Trump equivale a golpe do Deep State(*) para livrar-se dele por causa da posição relativamente benevolente dele em relação à Rússia?

(*) Deep State – Grupo organizado de pessoas, especialmente membros influentes de órgãos do governo e da instituição militar, o qual, acredita-se, está envolvido na manipulação secreta ou no controle secreto da política do governo. Lexico

John Pilger: É uma teoria; não sei ao certo. A eleição de Trump em 2016 abalou sistema tribal tipo Máfia de back-scratching(*), que os Democratas dominam. Hillary Clinton era a Eleita; como é que Trump se atreveu a confiscar-lhe o trono! Muitos liberais estadunidenses recusam-se a ver sua heroína corrupta como porta-estandarte de Wall Street, incitadora de guerra e emblema da política de gênero desvirtuada(**). Clinton é a personificação de um sistema venal, Trump é uma caricatura.

(*) back-scratching – Backscratching é o empréstimo recíproco de ajuda ou apoio, geralmente de maneira secreta/desonesta/por baixo do pano ou ilícita. ‘Ou talvez seja simplesmente caso de sórdido backscratching no seio da poderosa elite das Nações Unidas.’ Lexico

(**) hijacked – O verbo to hijack significa apossar-se de algo e usá-lo para propósito diferente. ‘Não deveríamos permitir que organizações racistas hijacked nossa bandeira nacional.’ Lexico

Pergunta: Você trabalhou por mais de cinco décadas como repórter de guerra e cineasta de documentário no Vietnã, em outras partes da Ásia, na África e na América Latina. Como vê você tensões internacionais atuais entre US, China e Rússia? Acha que o perigo de guerra é maior hoje do que em épocas anteriores?

John Pilger: Pode ser que, em 1962 , tenhamos todos sido salvos pela recusa de oficial naval soviético, Vasili Arkhipov, em disparar torpedo nuclear contra navios dos US durante a Crise dos Mísseis Cubanos. Estaremos em perigo maior hoje? Durante a Guerra Fria, havia linhas que o outro lado não se atrevia a cruzar. Hoje há poucas linhas, se é que as há; os US circundam a China com 400 bases militares e singram águas chinesas com seus navios de baixo calado e invadem com seus drones(*) espaço aéreo chinês. Forças da OTAN lideradas pelos estadunidenses aglutinam-se na mesma fronteira russa que os nazistas cruzaram; o presidente russo é insultado como questão de rotina. Não há contenção, nem nada da diplomacia que manteve fria a Guerra Fria. No Ocidente, aquiescemos em ser apenas espectadores em nossos próprios países, preferindo olhar para o outro lado (ou para nossos smartphones/telefones inteligentes) em vez de libertar-nos do pós-modernismo que nos emaranha com suas especiosas distrações de “identidade”.

(*) drones – Drone é avião ou míssil não tripulado operado por controle remoto. Lexico

Pergunta: Você viajou extensamente nos US durante os anos da Guerra Fria. Testemunhou o assassínio do candidato à presidência Robert Kennedy em 1968. Parece que a obsessão da Guerra Fria do “comunismo como malignidade” foi substituída por igualmente intensa russofobia em relação à Rússia dos dias de hoje. Vê você continuação da fobia dos dias da Guerra Fria até hoje? O que explica essa postura mental/mentalidade?

John Pilger: Os russos recusam-se a curvar-se diante dos Estados Unidos, e isso é intolerável. Desempenham papel independente, na maior parte das vezes positivo, no Oriente Médio, a antítese das subversões violentas dos Estados Unidos, e isso é insuportável. Como os chineses, eles têm forjado alianças pacíficas e frutíferas com pessoas do mundo todo, e isso é inaceitável para o Chefão estadunidense. A constante difamação de todas as coisas russas é sintoma de declínio e pânico, como se os Estados Unidos tivessem trocado o século 21 pelo século 19, obcecados com visão de proprietários do mundo. Nessas circunstâncias, a fobia que você descreve dificilmente é de causar surpresa.

Pergunta: Como o jornalismo noticioso, especificamente em estados do Ocidente, mudou no curso de sua carreira? Você já ganhou múltiplos prêmios por seus escritos e filmes e, no entanto, hoje em dia raramente é possível ler artigos seus na mainstream media(*), embora você continue a trabalhar ativamente como jornalista, como declarado em seu próprio website.

(**) mainstream media – O conjunto dos veículos de transmissão/difusão e publicação tradicionais ou estabelecidos. Lexico / Formas de mídia, especialmente formas tradicionais tais como jornais, televisão e rádio, mais do que a internet, que influenciam grande número de pessoas e representam crenças e opiniões aceitas de maneira generalizada. Cambridge

John Pilger: Quando comecei, o jornalismo não era corporativo. A maior parte dos jornais na Grã-Bretanha era fiel reflexo dos interesses do que era conhecido como o Establishment(*), mas também podiam ser idiossincrásicos. Quando cheguei à Fleet Street(**) em Londres no início dos anos 1960, então conhecida como a “Meca dos jornais”, o tempo era de otimismo, e os mais direitistas jornais toleravam, estimulavam até, mavericks(***), que amiúde são os melhores jornalistas. O Daily Mirror, à época o jornal de maior circulação do mundo com exceção do People’s Daily(****), era o jornal dos soldados durante a Segunda Guerra Mundial e tornou-se, para milhões de britâncios, o seu jornal. Para aqueles de nós no Mirror, era espécie de ideal sermos os agentes e defensores do povo, não do poder.

(*) Establishment – Grupo, na sociedade, que exerce controle e influência em assuntos de políticas, opinião ou gosto, e visto como resistente a mudanças. Lexico

(**) https://pt.wikipedia.org/wiki/Fleet_Street

(***) mavericks – Maverick é pessoa não ortodoxa ou de mente independente. Lexico

(****) http://www.people.com.cn/

Hoje em dia, mavericks de verdade não têm nenhum lugar na mainstream media. A força real atuante no jornalismo moderno é as relações públicas corporativas. Veja a maneira de as notícias serem escritas: praticamente tudo é evasivo. Escrevi por muitos anos para o Guardian; meu último artigo foi há cinco anos, após o que recebi telefonema. Eu havia sido expurgado, juntamente com outros autores independentes. O Guardian hoje promove ficção acerca da Rússia, obsessivamente; os interesses dos serviços de inteligência da Grã-Bretanha, de Israel, do Partido Democrático dos US, imperativos de gênero/sexo burgueses e visão excessivamente lisongeira de si próprio. A caça às bruxas do jornal contra Julian Assange – parte de campanha à qual o Relator das Nações Unidas – UN para Tortura refere-se como “mobbing(*)” – inclui invenções de tipo antigamente associado à imprensa direitista de Murdoch; certamente, a crueldade por elas revelada em relação a Assange é blasfêmia em relação aos valores liberais que o jornal afirma defender.

(*) mobbing – Fluxo infindável de declarações humilhantes, degradantes e ameaçadoras na imprensa. Vide nota em RT: The lies about Assange must stop now (by John Pilger)

Pergunta: Você tem sido proeminente apoiador de Julian Assange, o editor fundador do WikiLeaks, atualmente preso na Grã-Bretanha esperando julgamento de extradição para os US no ano que vem a partir de acusações de espionagem. O que realmente está por trás da prisão de Assange?

John Pilger: Julian Assange é o que os jornalistas deveriam ser e raramente são: incansável e intimorato contador da verdade. Ele revelou, em vasta escala, a vida criminosa secreta das grandes potências: de “nossos” governos, suas mentiras e violência em nosso nome. Há dez anos, o WikiLeaks vazou documento de Ministro da Defesa britânico que descrevia o jornalismo investigativo como a maior das ameaças ao poder secretive(*). Jornalistas investigativos recebem nota mais alta na escala de ameaças do que “espiões russos” e “terroristas”. Assange e WikiLeaks podem reivindicar esse laurel. Se os estadunidenses puserem as mãos nele e o encarcerarem em condições infernais, virão no encalço de outros, inclusive daqueles jornalistas que simplesmente fazem seu trabalho. E virão no encalço dos editores e publicadores respectivos, também.

(*) secretive – Dito de pessoa ou organização: inclinado a ocultar sentimentos e intenções ou a não revelar informação. Lexico

Pergunta: Você diz que Assange deixa envergonhada a mainstream media do Ocidente porque o Wikileaks publicou informações condenatórias revelando crimes de guerra cometidos pelos US e pelos aliados respectivos da OTAN em Iraque, Afeganistão e alhures, enquanto a mainstream media ignorou tais crimes ou proporcionou a eles escassa cobertura. Será que isso explica por que essa mídia está ignorando as agruras de Assange?

John Pilger: Há, por fim, crescente percepção de que a profunda injustiça contra Assange provavelmente acontecerá no tocante a outras pessoas. A recente declaração da União dos Jornalistas da Grã-Bretanha é sinal de mudança. Se os jornalistas quiserem recuperar sua honra, o silêncio precisará ser quebrado.

Pergunta: Você recentemente visitou Assange na prisão de segurança máxima da Grã-Bretanha de Belmarsh, onde ele é mantido em confinamento solitário. Como descreveria você a condição física e mental dele? Você diz que ele está sendo sujeitado a julgamento de fachada. É esse tratamento indevido comparável ao que a mídia do Ocidente condenaria como perseguição, fosse dispensado em ditaduras?

John Pilger: O último comparecimento de Julian a tribunal em 21 de outubro foi na prática controlado por quatro estadunidenses da Embaixada dos US que se sentaram atrás do promotor e passaram suas instruções por escrito a ele manualmentge. A juiza viu esse absurdo e permitiu que continuasse. Ao mesmo tempo, tratou os advogados de Julian com desprezo. Quando Julian, que está doente, lutou para dizer o próprio nome, ela caçoou. A diferença em relação a julgamento de fachada da Guerra Fria foi que a coisa agora não foi transmitida na televisão estatal; a BBC elidiu as cenas.

Pergunta: Com a prisão de Julian Assange e de outros jornalistas independentes como Max Blumenthal nos US, que revelou os crimes de mudança de regime dos US na Venezuela, e dada a silenciosa indiferença da mídia do Ocidente, acha você fazer sentido real preocupação de que os US estejam resvalando para fascismo de estado policial?

John Pilger: Algumas pessoas diriam que esse deslize já aconteceu

 

Nota: Os pontos de vista de cada contribuinte não necessariamente representam os de Strategic Culture ou de Informação Incorrecta.

Artigo original: Strategic Culture Foundation

Tradução by zqxjkv0