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A saída de Evo Morales

Informação Incorrecta traz azar, é oficial. Nos passados dias tinha-me prometido de estudar um pouco mais o caso da Bolívia de Evo Morales, o País protagonista dum período de grande desenvolvimento com o qual conseguiu reduzir a pobreza e limitar a desigualdade social. Nem uma semana depois, Morales anuncia as demissões. O que aconteceu? Aqui vai o resumo.

Evo Morales é um ex-apanhador de de coca e foi o primeiro boliviano de origem indiana a ser eleito Presidente. Estava no poder há catorze anos, e renunciou ao cargo ontem, pouco antes das 17:00 (horário local), após ter sido solicitado pelo comandante da polícia e pelo chefe do exército, o General Williams Kaliman. Kaliman tinha deixado claro que as forças armadas estavam prontas para intervir se as demissões não tivessem sido apresentadas: os militares tinham-se alinhado contra Morales após três semanas de violentos protestos em todo o País, confrontos começando após a divulgação dos resultados das últimas eleições presidenciais, oficialmente vencidas por Morales mas contestadas pela oposição.

Anunciando a sua demissão, Morales falou de um “golpe de estado” realizado por “forças antidemocráticas”. O vice-Presidente Álvaro García Linera também renunciou. O líder da oposição, o ex-Presidente Carlos Mesa, escreveu no Twitter que “a tirania acabou”.

Pouco antes da intervenção do exército, Morales tinha anunciado novas eleições para “pacificar o País” e tentar acalmar os protestos: a votação do passado 20 de Outubro foi considerada inválida pelas oposições e por várias organizações internacionais, incluindo a OEA, a Organização dos Estados Americanos. O anúncio de novas eleições não foi suficiente para restaurar a calma. À tarde já tinham-se demitidos o Presidente da Câmara Baixa do Parlamento, Victor Borda, depois da sua casa em Potosi ter sido queimada, o Ministro das Minas César Navarro, “para preservar a sua família”, e o Ministro dos Hidrocarbonetos, Luis Alberto Sanchez.

Na verdade, os problemas parecem ter começado já antes das últimas eleições. Após ter anunciado a participação na corrida para a quarta eleição presidencial, algo não permitido pela Constituição boliviana, Morales decidiu pedir o parecer dos cidadãos com um referendo. Em 22 de Fevereiro de 2016, o Presidente perdeu com 51% dos votos contrários, pelo que não poderia ter concorrido para um quarto mandato. Mas, apesar da derrota, Morales conseguiu fazer aprovar uma reforma constitucional, ignorando a voz dos eleitores.

Nas eleições do passado 20 de Outubro, esperava-se uma segunda volta entre Morales (no poder desde 2006) e o desafiante Carlos Mesa (Presidente de 2003 a 2005), mas no final a vitória de Morales já foi declarada no primeiro turno. Segundo os dados oficiais, Morales obteve 47.07% dos votos contra 36.51% do desafiante Carlos Mesa. Para vencer no primeiro turno, Morales precisava de mais de 50% dos votos ou 10% de vantagem sobre os seus oponentes. Com uma diferença de 10.56 pontos percentuais, Morales foi reeleito Presidente da Bolívia. Mas não sem polémicas.

Os resultados de uma contagem preliminar dos votos, diferente da oficial e organizada para dar maior transparência ao processo, davam os dois candidatos mais próximos de dez pontos. Mas então o Supremo Tribunal Eleitoral parou de actualizar os resultados durante um dia e, quando retomou, o fosso entre Morales e Mesa tinha aumentado até um pouco acima dos dez pontos, diferença depois confirmada pela contagem oficial. E isso fez nascer suspeitas.

Como já afirmado, a votação de 20 de Outubro passou a ser considerada inválida pelas oposições e por várias organizações internacionais, incluindo a Organização dos Estados Americanos, por suspeita de fraude eleitoral. Paralelamente, os defensores de Morales definiram absurdas estas vozes, uma verdadeira conspiração de matriz norte-americana. A OEA, que investigou o último processo eleitoral, publicou um relatório no qual anunciou que tinha verificado a presença de irregularidades graves e propôs convocar uma nova votação sob a responsabilidade de um Supremo Tribunal Eleitoral renovado, ressaltando todavia, que “os mandatos constitucionais na Bolívia não devem ser interrompidos, incluindo o do Presidente Morales”.

Mas nas últimas semanas os protestos tornaram-se mais intensos e generalizados e, nos últimos dias, centenas de policiais decidiram amotinar-se em várias cidades do País, desistindo de combater os manifestantes anti-governamentais depois de três pessoas ter morrido e centenas terem ficado feridas em confrontos entre manifestantes e polícia.

Morales não deixou a Bolívia, como sugeriram fontes jornalísticas locais segundos quais o destino do Presidente era a Argentina. O avião presidencial em que Morales foi visto embarcar em La Paz foi até a cidade de Chimorè, no departamento de Cochabamba, de onde o (ex) Presidente anunciou a decisão de renunciar. Morales fez uma breve declaração na qual confirmou a sua renúncia à presidência:

Tenho uma obrigação, de trabalhar pela paz. E dói-se muito que haja confrontos entre bolivianos. Dói que alguns comités e partidos cívicos que perderam as eleições tenham provocado violência e agressão. […] É por essa e outras razões que estou a desistir do meu cargo enviando a minha carta ao Parlamento.

Depois dos factos, uma pergunta: é um golpe? Do ponto de vista constitucional, Morales deveria ter ficado no cargo até o próximo Janeiro, o tempo necessário para organizar as novas eleições. Há uma clara violação das normas da Constituição, pelo que sim, é possível falar de golpe. Mas estes são aspectos técnicos, o que interessa aqui é a substância. E a substância é anómala, pois foi destituído um Presidente que governou bem, que soube trazer crescimento económico, capaz de reduzir a pobreza, que investiu de forma produtiva os empréstimos do FMI, que estabilizou a moeda: em 2019, sempre segundo o FMI, a Bolívia crescerá 4%, segundo o Banco Mundial, de 2006 para hoje, o PIB do País aumentou de 11 para 38 biliões de Dólares e a pobreza passou de 60% para 36%. Portanto, um sistema que parecia funcionar ainda há poucas semanas atrás. O quê falhou?

Falhou o respeito das regras, em primeiro lugar. Após o referendo de 2016 era evidente que Morales não tinha vontade nenhuma de abandonar o cargo: a Bolívia estava a afastar-se das regras constitucionais e da vontade popular. Segundo erro, a atitude duvidosa em ocasião das últimas eleições de Outubro: as conclusões da OEA não podem ser tomada como verdade absoluta e até agora não há provas de fraudes. Mas é claro que a atitude do Supremo Tribunal Eleitoral durante a contagem dos votos tem provocado o surgimento de dúvidas. E isso foi uma lufada de ar fresco para os movimentos de protesto. Finalmente, não podemos esquecer que se Mesa é a gora a fachada política, a verdadeira força local atrás do golpe foi o exército, sobre o qual, evidentemente, Morales não tinha o controle total, contrariamente ao que acontece na Venezuela de Cháves e Maduro. Uma situação normal numa democracia madura, mas evidentemente um pecado normal na América Latina.

Uma participação dos Estados Unidos em função anti-governamental? Muito provável, praticamente certa. Apesar da política America First de Trump, há sectores de governo fora do controle da Administração (lê-se CIA) que continuam a “tratar” do continente sul-americano, apoiando as oposições contra líderes “inimigos”. Todavia América First limita o poder das intervenções: os acontecimentos do Equador, do Chile, a vitória da Kirchner na Argentina, a aparente calma na Venezuela e até a liberdade de Lula demonstram como as intervenções da CIA no continente sul americano estão longe dos anos “melhores”.

Se o desejo for encontrar as causas da saída de Evo Morales, talvez a coisa melhor seja deixar de lado a fácil retórica do “regresso do Fascismo” e tentar perceber quais as dinâmicas que actuam no seio das sociedades, não apenas sul americanas. É o que vamos fazer no artigo a seguir.

 

Ipse dixit.