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É o Neoliberalismo que está a queimar?

Tenho mais pontos na boca eu de que a Sampdoria em classifica após 11 dias de campeonato. Tá bom, nada de podcast e para distrair-me vamos ler o que diz um dos meus “guias” espirituais. Porque é assim: na internet há pessoas que escrevem e das quais partilho muitos pontos de vista, são aqueles raros indivíduos que parecem ter entendido como funciona o mundo e não têm medo de escreve-lo. Um deles é (ou era…) Pepe Escobar.

Eis o artigo dele, publicado no site Strategic Culture ao longo da semana passada.Aqui vai a tradução:

Queima, Neoliberalismo, queima!

O Neoliberalismo está a queimar, literalmente. Do Equador ao Chile, a América do Sul, mais uma vez, aponta o caminho. Contra a cruel e única receita da austeridade do FMI, que utiliza armas de destruição económica em massa para esmagar a soberania nacional e promover a desigualdade social, a América do Sul finalmente parece pronta para recuperar o poder de forjar a sua própria história.

Três eleições presidenciais estão em jogo. A da Bolívia parece ter sido resolvida no Domingo passado, mesmo com os suspeitos de costume que gritam “Fraude!”, Argentina e Uruguai no próximo Domingo.

A reacção contra o que David Harvey concebe esplendidamente como acumulação por desapropriação é e continuará a ser uma prostituta. Finalmente chegará também ao Brasil que, como está, continua a ser despedaçado por fantasmas pinochetistas. O Brasil, depois da imensa dor, ressurgirá. Afinal, os excluídos e os humilhados em toda a América do Sul estão finalmente a descobrir que carregam um Coringa dentro deles.

O Chile privatiza tudo

A pergunta colocada pelas ruas chilenas é gritante: “O que é pior, evitar impostos ou invadir o metro?” É tudo uma questão de fazer a matemática da luta de classes. O PIB do Chile cresceu 1.1% no ano passado, enquanto os lucros das maiores empresas cresceram dez vezes mais. Não é difícil intuir por coisa seja provocado a enorme diferença. As ruas chilenas enfatizam como a água, a electricidade, o gás, a saúde, a medicina, o transporte, a educação, as salinas em Atacama e até os glaciares foram privatizados.

É o acumulo clássico por desapropriação, pois o custo de vida tornou-se insuportável para a esmagadora maioria dos 19 milhões de chilenos, cujo rendimento mensal médio não excede os 500 Dólares.

Paul Walder, director do portal Politika e analista do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE), observa como menos de uma semana após o fim dos protestos no Equador, aquele que forçou o abutre neoliberal Lenin Moreno a evitar um aumento no preço do gás, o Chile entrou num ciclo de protestos muito semelhante.

Walder define correctamente o Presidente do Chile, Sebastian Piñera, como o peru num banquete de longa duração que envolve toda a classe política chilena. Não é de admirar que as ruas chilenas louca como o inferno não faça diferença entre governo, partidos políticos e polícia. Piñera, previsivelmente, criminalizou todos os movimentos sociais; enviou o exército para as ruas para reprimir sem piedade; e instalou um recolher obrigatório. Piñera é o 7º bilionário mais rico do Chile, com activos avaliados em 2.7 biliões de Dólares, entre companhias aéreas, supermercados, televisões, cartões de crédito e futebol. Ele é uma espécie de Moreno com carga turbo, um pinochetista neoliberal. O irmão de Piñera, José, era na verdade um Ministro sob Pinochet e foi o homem que implementou o sistema de assistência social privatizado no Chile, uma fonte essencial de desintegração social e de desespero. E está tudo interligado: o actual Ministro das Finanças do Brasil, Paulo Guedes, um Chicago Boy, morava e trabalhava no Chile na época, e agora quer repetir o experimento absolutamente desastroso no Brasil.

O ponto principal é que o “modelo” económico que Guedes quer impor no Brasil entrou em colapso total no Chile.

O principal recurso do Chile é o cobre. As minas de cobre, historicamente, eram de propriedade dos EUA, mas depois foram nacionalizadas pelo Presidente Salvador Allende em 1971; eis, portanto, o plano do criminoso de guerra Henry Kissinger de eliminar Allende, que culminou no 11 de Setembro original, em 1973.

A ditadura de Pinochet mais tarde privatizou novamente as minas. A maior de todas, Escondida, no deserto de Atacama, que responde por 9% do cobre do mundo, pertence ao gigante anglo-australiano Bhp Billiton. O maior comprador de cobre nos mercados mundiais é a China. Pelo menos dois terços do rendimento gerado pelo cobre chileno não se destinam ao povo chileno, mas às multinacionais estrangeiras.

O desastre argentino

Antes do Chile, o Equador estava semi-paralisado: escolas fechadas, falta de transporte urbano, falta de alimentos, especulação desenfreada, sérios distúrbios nas exportações de petróleo. Sob o fogo da mobilização de 25.000 indígenas nas ruas, o Presidente Lenin Moreno de forma covarde deixou o poder vazio em Quito, transferindo a sede do governo para Guayaquil. Os povos indígenas assumiram o governo em muitas cidades importantes. A Assembleia Nacional ficou sem governo por quase duas semanas, sem a vontade de tentar resolver a crise política.

Ao anunciar um estado de emergência e recolher obrigatório, Moreno estendeu um tapete vermelho para as Forças Armadas e Piñera repetiu o mesmo no Chile. A diferença é que, no Equador, Moreno aposta no Divide et Impera os movimentos dos povos indígenas e o resto da população. Piñera recorre à força bruta.

Além de aplicar as mesmas velhas táctias de aumentar os preços para obter mais fundos do FMI, o Equador também exibiu uma clássica articulação clássica entre um governo neoliberal, as grandes empresas e o embaixador americano, neste caso Michael Fitzpatrick, ex-secretário assistente do Hemisfério Ocidental, chefe da região andina, Brasil e Cone Sul até 2018.

O caso mais claro de falha neoliberal total na América do Sul é a Argentina. Há menos de dois meses, em Buenos Aires, vi os efeitos sociais cruéis do Peso em queda livre, inflação de 54%, uma emergência alimentar de facto e o empobrecimento de sectores sólidos da classe média. O governo de Mauricio Macri queimou literalmente a maior parte do empréstimo de 58 biliões de Dólares do FMI e ainda há 5 biliões a chegar. Macri está pronto para perder as eleições presidenciais, mas serão os argentinos que terão que pagar o seu imenso projecto de lei.

O modelo económico de Macri não podia deixar de ser o mesmo de Piñera, na verdade de Pinochet, onde os serviços públicos são administrados como um negócio. Uma importante conexão entre Macri e Piñera é a ultra-neoliberal Freedom Foundation, patrocinada por Mario Vargas Llosa, que pelo menos pode orgulhar-se de ter sido um decente romancista há muito tempo.

Macri, um milionário, discípulo de Ayn Rand e incapaz de demonstrar empatia por alguém, é essencialmente um automa, pré-fabricado pelo seu guru equatoriano Jaime Duran Barba como um produto robótico de mineração de dados, redes sociais e grupos focais. Uma hilariante análise das suas inseguranças pode ser encontrada em La Cabeza de Macri: Como Piensa, Vive y Manda el Primer Presidente de la No Politica, livro de Franco Lindner.

Entre outras, Macri está indirectamente ligado à fabulosa máquina de lavagem de dinheiro do HSBC. O presidente do HSBC na Argentina era Gabriel Martino. Em 2015, quatro mil contas argentinas no valor de 3.5 biliões de Dólares foram descobertas no HSBC na Suíça. Esta espectacular fuga de capitais foi projectada pelo banco. No entanto, Martino foi essencialmente salvo por Macri e tornou-se um de seus principais conselheiros.

Cuidado com os empreendimentos de abutres do FMI

Todos os olhos agora devem estar na Bolívia. Até a altura em que este artigo foi escrito, o Presidente Evo Morales venceu as eleições presidenciais de Domingo no primeiro turno, obtendo, por uma pequena margem, a margem de 10% necessária para um candidato vencer mesmo que não tenha obtido 50% mais um dos votos. Morales ganhou essencialmente no final, quando os votos das zonas rurais e do exterior foram totalmente contados, e a oposição já tinha começado a sair às ruas para pressionar. Não surpreende que a OEA [a Organização dos Estados Americanos, com sede em Washington, ndt], escrava dos interesses dos EUA, tenha proclamado “falta de confiança no processo eleitoral”.

Evo Morales representa um projecto de desenvolvimento sustentável, inclusivo e crucialmente autónomo das finanças internacionais. Não é de admirar que todo o aparato do Consenso de Washington o odeie. O ministro da Economia, Luis Arce Catacora, foi directo ao dizer: “Quando Evo Morales venceu a sua primeira eleição em 2005, 65% da população tinha um baixo rendimento, agora 62% da população tem acesso a um rendimento médio”.

A oposição, sem nenhum projecto, excepto as privatizações violentas e nenhuma preocupação com as políticas sociais, é deixada a gritar “Fraude!”. Mas isso poderia acabar mal nos próximos dias. Nos subúrbios no sul de La Paz, o ódio de classe contra Evo Morales é o desporto favorito: o Presidente é chamado de “índio”, “tirano” e “ignorante”. Os cholos do Altiplano são habitualmente definidos pelas elites brancas proprietárias de terras como uma “raça do mal”.

Nada disso muda o facto de que a Bolívia é agora a economia mais dinâmica da América Latina, como destacou o principal analista argentino Atilio Boron.

A campanha para desacreditar Morales, que se tornará ainda mais dura, faz parte da guerra imperial do 5G, que, segundo Boron, ignora totalmente “a pobreza crónica que a maioria absoluta da população sofreu por séculos”, um estado que sempre “manteve a população sob uma total falta de protecção institucional” e “pilhagem da riqueza natural e do bem comum”.

É claro que o fantasma dos empreendimentos dos abutres do FMI não desaparecerá na América do Sul como um encanto. Mesmo que os suspeitos de costume, segundo os relatórios do Banco Mundial, agora pareçam “preocupados” com a pobreza; os escandinavos oferecem o Prémio Nobel de Economia a três académicos que estudam a pobreza; e Thomas Piketty, em Capital and Ideology, tenta desmontar a justificativa hegemónica da acumulação de riqueza.

O que ainda permanece absolutamente fora dos limites para os guardiões do actual sistema mundial é realmente investigar o Neoliberalismo como a primária causa da hiper-concentração da riqueza e da desigualdade social. Já não basta oferecer Band-Aids. As ruas da América do Sul estão iluminadas. Agora a revolta está em pleno vigor.

E eu fico triste, porque este deveria ser um dos meus “guias”. Mas perante uma análise tão superficial, o quê dizer?

Os Leitores mais antigos talvez ainda se lembrem duma velha ideia publicada nestas páginas há anos: a ideia segundo a qual a América do Sul no futuro poderia ser o berço (ou um dos berços) duma nova forma de encarar a nossa sociedade, uma forma revolucionária. Não mudei de ideia. Mas não estamos perante isso e verifica-lo é simples.

No Equador o Presidente ainda é Lenin Moreno. Fez algumas concessões? Sim, fez. Mas daí? O Equador é um País “novo”? Não, não é. Moreno fez algumas concessões, o mínimo para acalmar a praça e manter o comando. Ponto final.

Na Argentina Macri perdeu as eleições, algo amplamente previsto, e ganhou o grupo de Cristina Kirchner. Sempre gostei daquela mulher, acho que tem boas ideias na cabicinha: mas não é uma revolucionária, não pretende fundar uma Argentina com bases afastadas do “livre mercado”, quer é que o mercado seja gerido de forma mais justa, de maneira que não haja apenas uma elite favorecida. Louvável, que fique claro, mas ficamos muito longe duma “nova visão”. E esta “nova visão” é imprescindível se o desejo for abalar os alicerces da nossa sociedade e exportar o modelo.

O Chile? Provavelmente o tempo de Piñera acabou, e ainda bem, depois haverá…quem? Uma força de Esquerda no poder? Esta força terá a coragem de abandonar o “livre mercado”, de tornar-se um farol para todos os restantes Países do globo? Ou será algo ao estilo de Lula, algo que fará coisas boas, sem dúvida, mas que permanecerá no jogo neoliberal? Porque uma coisa deve ser extremamente clara: ficar neste “livre mercado” significa ficar no jogo neoliberal. Não pode haver nenhuma “revolução” sem abandonar um mercado que de livre nada tem e que responde apenas à lógica do lucro.

Isso sem esquecer que o maior País da América do Sul está nas mãos de Bolsonaro, acerca do qual até é supérfluo falar; e que na Bolívia Morales teve não poucas dificuldades para ganhar, apesar dos resultados obtidos ao longo dos anos.

“A América do Sul, mais uma vez, aponta o caminho”. Esquecemos aquele “mais uma vez” porque já aí haveria espaço para boas gargalhadas. Mas qual seria o caminho que está a apontar este continente onde tudo parece ser permitido às elites? Chegar ao ponto do desespero antes de, finalmente, decidir fazer algo para evitar a extinção? E qual seria o projecto inovador? Uma viragem à Esquerda no velho e gasto teatro bipolar, algo que naufragará com a chegada das primeiras dificuldades económicas, tal como aconteceu no passado? Os caminhos não estão a ser apontados pela América do Sul, como não estão na Europa, na América do Norte, na África ou na Oceánia. Se o desejo for ver algo (relativamente) novo, temos que olhar para a China.

O que se está  a passar na América do Sul na minha óptica não tem nada de “revolucionário”: é o velho jogo das partes. Já vimos isso antes, quando Chávez tomou o poder na Venezuela (a propósito, Escobar parece ter-se esquecido deste “pormenor” ou da vizinha Colômbia), Lula no Brasil, Kirchner na Argentina. Uma vaga popular (não “populista”) principalmente de Esquerda que trouxe alívio para as classes mais desfavorecidas, mas que não construiu as bases para algo durável e que desmoronou perante a primeira flexão do mercado internacional. Repito: perfeitamente lógico quando participamos num jogo do qual não podemos mudar as regras.

Acerca da actual situação, acho importante realçar dois pontos:

O que a política America First de Trump viabilizou também foi autêntico assalto às riquezas da América Latina, um assalto conduzido pelas elites locais que, todavia, não têm subtileza de actuação, nem a experiência necessária num mundo profundamente conectado qual é o nosso, nem a “almofada” fornecida por uma política globalista de Washington, nem os biliões necessários para alimentar uma eficiente máquina repressiva. Um assalto conduzido pelos caudillos dos mercados locais: com algumas ligações internacionais (óbvio, é o que “livre” mercado exige), mas sempre caudillos ignorantes, suportados por um FMI que quando o objectivo for sacar dinheiro não olha na cara de ninguém.

É esta uma elite que portou-se como se não houvesse travões ou limites, actuando de maneira particularmente obtusa. As revoltas destes últimos meses não são “o amanhecer duma nova sociedade”, são a fisiológica reacção perante os abusos duma elite incapaz dum mínimo de planeamento e que levou os povos até a exasperação. Mas não é possível encontrar por aqui um desenho, além da imediata derrota do tirano de turno, não há uma ideia mais complexa; os novos governos irão satisfazer as necessidades mais urgentes dos cidadãos, como é justo que seja, sem todavia poder tentar algo mais.

Como exemplo podemos pegar no caso do Brasil. Mais cedo ou mais tarde Bolsonaro irá ser derrotado, como é óbvio. O que acontecerá? Voltará o PT no poder, Lula será libertado e santificado, mas depois? O Brasil envergará num caminho realmente “novo” ou continuará na senda do “livre” mercado que, como vimos, é exactamente o jogo do Neoliberalismo? Ao continuar no tabuleiro do “livre” mercado, o PT ou qualquer outra força no poder de facto aceitará a sua submissão ao neoliberalismo, abdicando da soberania do País.

Obviamente espero estar enganado, espero que as actuais revoltas consigam trazes algo realmente novo na América do Sul e, consequentemente, no resto do mundo, porque precisamos desesperadamente disso. Espero que Pepe Escobar, que contrariamente a mim sabe o que escreve, tenha toda a razão: espero que, como já escreveu recentemente, a retirada americana da Síria seja a madrugada do “novo mundo” e espero que das revoltas da América do Sul possa nascer algo realmente inovador. Mas até ver, continuam a valer as velhas regras do jogo.

 

Ipse dixit.

Fonte: Strategic Culture