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Os cinco erros da democracia

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Nota: na última hora, no podcast, decidi não inserir uma eco mas uma mudança de tom que acho facilita a audição. Nada de músicas pois o resultado final é já demasiado longo assim…

 

Antes de começar, uma pergunta para os Leitores e os Ouvintes: estão interessados em investigações acerca do caso Epstein, as ligações dele com os serviços secretos dos Estados Unidos e a classe política? Pergunto isso porque:

  1. de Esptein já tratamos no blog e as pessoas poderiam pensar “Boh, afinal já foi dito o essencial”;
  2. trata-se de investigações bastante compridas, pelo que os relativos podcasts e artigos escritos seriam compridos também.

Pensem nisso e digam algo, obrigado desde já para responder.

Para já mudamos de assunto a vamos tratar de Democracia porque encontrei um velho artigo (“velho” por assim dizer, é do ano passado) do diário económico Il Sole 24 Ore. O diário fala de Democracia, realça os fracassos deste sistema político e até sugere algumas soluções. Vamos ler? E vamos. Aliás, no caso do podcast vamos fazer assim: eu leio, vocês ouvem.

Mas é preciso não esquecer algo: Il Sole 24 Ore é um diário económico, órgão oficial da Confindustria, a Confederação Geral da Indústria Italiana, a principal organização representativa das empresas italianas de fabricação e serviços. Portanto, deixem de lado a vossa edição do Capital de Marx, hoje vamos ler o que diz a parte contrária.

Os cinco erros da Democracia e porque focar no mérito significa salvá-la

 A Democracia corre o risco de sucumbir. A ideia de que a Democracia seja o único sistema possível (e o autoritarismo fique ultrapassado) perdeu plausibilidade. Mesmo as democracias mais consolidadas – com problemas na luta para gerir globalização, desigualdade e imigração – estão em risco de sobrevivência. O mundo está em “recessão democrática”.

Ascensão e declínio

A Democracia, por cinquenta anos considerada um ponto de chegada. Em 1941, apenas 11 Países do mundo estavam organizados de acordo com princípios democráticos. Considerada o sistema de governo ao qual aspirar, após a Segunda Guerra Mundial, espalhou-se rapidamente. Em 2000, 116 Países (69% do total) eram consideradas democracias.

Mas na última década, começou a perder terreno. A tendência começou em 2006: nos últimos doze anos, muitos Países tornaram-se menos democráticos. A crise de 2008 acentuou a tendência. No final de 2017, 97 dos 167 Países eram democracias (58% do total).

E hoje está em crise. Hoje, a sobrevivência da Democracia liberal é posta em causa por:

  1. transferência para decisões de tipo supranacionais;
  2. aumento das desigualdades;
  3. corrupção;
  4. fraqueza dos partidos políticos, tendo fracassado na tarefa principal que era tornar as pessoas capazes de liderar a res publica (a coisa pública, o Estado democrático);
  5. a rejeição da competência e da autoridade por quem vota;
  6. as tendências autoritárias do assim chamado populismo.

Em cheque, em todo o mundo

No mundo, a Democracia é legitimada top-down (de cima para baixo) pela elite e bottom up (de baixo para cima) pelos cidadãos. Durante décadas, as classes dominantes tradicionais têm:

  1. ocupado as principais instituições (por exemplo: os tribunais, os media e as forças armadas);
  2. acabado com funções de controle e garantia;
  3. governados em benefício próprio;
  4. fugido da meritocracía e atingido um grau de mediocridade que provoca reacções antidemocráticas.

Como resultado, os cidadãos não se sentem representados nem protegidos, convencidos de que: o poder está à venda para aqueles que têm dinheiro para poder comprá-lo (Democracia propensa à plutocracia) e que a vontade popular tornou-se secundária à vontade dos mercados e às instituições internacionais (Democracia propensa à globalização).

Nos Países industrializados, o sistema democrático parece briguento e inconclusivo. A anti-política é galopante. Os partidos tradicionais, ricos em privilégios e recursos públicos, perderam a legitimidade social e o pulso da situação. Os cidadãos estão confusos, não se sentem representados e votam “contra” e não “a favor”. Os sistemas eleitorais não conseguem agregar preferências individuais e a Democracia é incapaz de construir um consenso.

As coligações resultantes (muitas vezes incoerentes, frágeis e desgastadas) levam a impasse político e paralisia, fortalecendo facções nacional-socialistas cujos ramos mais extremos são intransigentes, antidemocráticos e xenofóbicos. O assim chamado populismo, prometendo soluções simples para problemas complexos, mina ainda mais o debate político e desperta os desejos de um “homem forte”.

Muitos cidadãos estão convencidos de que isso não funciona. A Democracia, prisioneira de dinâmicas demográficas desfavoráveis ​​para os jovens, administrou mal a evolução da sociedade. Apesar de viverem em Países ricos e pacíficos, os cidadãos estão descontentes, preocupados com a perda dos seus empregos e identidades devido à globalização e às mudanças tecnológicas.

A divisão entre quem tem garantias e quem não tem garantias é dilacerante: alguns são remunerados mesmo que não gerem recursos (ou seja, independentemente da sua produtividade), enquanto outros, expostos sem garantias ao mercado, sofrem a desaceleração da economia. Os políticos locais fazem promessas sobre tópicos que respondem à dinâmica global e, portanto, impossíveis de manter.

Em muitos Países emergentes, os regimes autoritários ganham terreno. Os Países onde o poder está concentrado nas mãos de poucos parecem mais eficientes e modernos. Na Ásia, a China e o Vietname, ao atingir taxas de crescimento mais altas que os Países ocidentais, mostraram que não é necessário haver uma Democracia para poder desenvolver-se.

No Médio Oriente e na Europa Oriental, a passagem do tempo mostrou que a expulsão de um ditador não implica o advento da Democracia. Isso, de facto, pode gerar instabilidade: frequentemente o governo não consegue trabalhar, a economia sofre e o País deteriora-se rapidamente. Na Europa, o populismo nacional autoritário de Viktor Orbán [Presidente da Hungria, ndt], considerado até alguns anos atrás uma excepção, agora é considerado um precursor.

Frequentemente a Democracia legitima regimes autoritários, especialmente quando:

  1. o sufrágio é universal desde que o vencedor seja decidido antes;
  2. a “vontade popular”, especialmente se for plebiscitaria, justifica e fortalece o homem forte;
  3. os espaços para manifestação de dissidência existem apenas formalmente, reduzidos ao mínimo.

Limites sérios, responsabilidades importantes

É difícil definir a Democracia. Em Novembro de 1947, num discurso na Câmara dos Comuns, Winston Churchill deu uma definição que ficou famosa: “A Democracia é a pior forma de governo, excepto todas as formas experimentadas até agora”.

A promessa essencial da Democracia é que os eleitores controlem a política real. No entanto, conseguir regras de votação que respeitem essa promessa é quase impossível. A política é influenciada pelo acesso desigual à informação, pelo controle de media, lobby e troca de votos, especialmente em contextos socioeconómicos caracterizados por:

  1. assimetrias de poder pré-existentes;
  2. divisões étnicas e religiosas;
  3. instituições inadequadas.

No processo democrático:

  1. a maioria tende a oprimir as minorias
  2. as minorias, especialmente se poderosas (por exemplo: as lobbies), fazem o possível para subjugar e explorar a maioria, concentrando os benefícios em si mesmas e distribuindo os custos (nas massas)

Como sistema de governo, a Democracia tem responsabilidades importantes. A lista de erros não é curta. Continuemos a ler o artigo de Il Sole 24 Ore e vamos ver estas culpas, em ordem de gravidade:

1. Mostrou-se incapaz de fazer previsões e não promoveu a sustentabilidade.

  • Sacrificou sistematicamente o “amanhã” em prol do “hoje”.
  • Não representou as gerações futuras, especialmente em Países onde a população envelhece.
  • Não planeou o geriu os recursos cada vez menores em relação ao aumento da população.
  • Não impediu a insustentabilidade económica, social e ambiental.

2. Não seleccionou estadistas valiosos, líderes visionários capazes de tomar decisões para o bem comum.

  • Não exigiu a competência dos candidatos, antes ou depois das eleições, e enviou amadores ao governo.
  • Permitiu a “escalada ao poder” daqueles que não têm interesse no País.
  • Permitiu a eleição daqueles que prometem “tudo para todos” e não desqualificou aqueles que assumiram compromissos irrealizáveis sem preocupar-se com as consequências.
  • Deu aos políticos incentivos enganosos, em ciclos eleitorais muito curtos: os governantes estão focados em “serem reeleitos” e nas necessidades dos seus eleitores apenas na duração do mandato eleitoral.
  • Pediu aos eleitores que assumissem responsabilidades políticas por referendo.

3. Não regulou o Capitalismo, não administrou a globalização, não evitou crises económicas e não puniu os responsáveis.

  • Favoreceu, e legitimou com as eleições, a oligarquia e a plutocracia.
  • Aceitou a transformação do processo eleitoral em clientelismo e não impediu o crescimento do poder dos grupos de pressão sobre a política, mas favoreceu os interesses das lobbies.
  • Aceitou a perda da soberania nacional e das identidades locais e, portanto, aceitou o seu próprio enfraquecimento.
  • Não foi capaz de lidar com a ultrapassagem económica por parte de nações não democráticas, principalmente a China.
  • Acumulou dívidas sem investir, sem preocupar-se em gerar os recursos para pagá-las, colocando-se à mercê dos mercados globalizados.
  • Aceitou que importantes decisões políticas fossem tomadas por “especialistas não eleitos” na ausência de um debate político aberto.
  • Não protegeu os direitos, não protegeu as conquistas do estado de welfare (estado de bem-estar) e não deu garantias a quem não possuía este welfare.
  • Não impediu que os direitos (de todos) fossem transformados em privilégios (de poucos) e permitiu o aumento de disparidades sociais, desigualdade socioeconómica e marginalização política.

4. Não foi capaz de gerir o progresso tecnológico;

  • Não impediu a diminuição da privacidade.
  • Não regulamentou o advento da robotização e da nanotecnologia, para que não fosse gerado desemprego.
  • Não administrou a perda de relevância da Democracia representativa e não regulamentou a Democracia directa.

5. Institucionalizou o impasse da decisão e aumentou a desilusão e o desapego dos cidadãos em relação à política;

  • Não impediu que instituições importantes fossem controladas pela elite e grupos de poder em concorrência entre si.
  • Aceitou o aumento do poder das entidades sem responsabilidade eleitoral (por exemplo: instituições transnacionais, bancos centrais, órgãos reguladores) e a falta de transparência da sua complexa governação.
  • Sobrecarregou os governos, cujas burocracias não conseguem lidar com o “excesso de Democracia”, com pedidos de comunidades locais, regiões autónomas, órgãos e poderes menores como ONGs e lobistas.

O diário pergunta: o que fazer? E é uma boa pergunta,de facto. Vamos quais as respostas são oferecidas:

Concentrar-se no mérito para salvar a Democracia

Desafios épicos estão a ser preparados:[…] globalização, riscos geopolíticos, integração na economia global, turbulência nos mercados financeiros, erosão de direitos, possíveis crises sociais, poluição do ar e da água e degradação ambiental. Quem desejamos no poder? A pergunta não pode ser considerada provocatória: requer uma classe política com as habilidades necessárias e uma visão de longo prazo, políticos e estadistas poderosos devem esforçar-se para repensar a Democracia, combinando-a com a globalização.

Portanto: Il Sole 24 Ore considera a globalização como algo impossível de evitar. Continuemos:

A Democracia tem os germes do seu desaparecimento. Se afundada pelas prevaricação da elite e pelo desprezo dos cidadãos, a Democracia cai no autoritarismo precisamente através do sufrágio universal. A Democracia morre na votação que promove governos inadequados, políticas medíocres, enfraquecimento das instituições, perda de certezas da classe média, percepção da elite como uma casta privilegiada e corrupta, distância entre instituições e cidadãos, baixa participação política, medo do futuro, despertar de tendências autoritárias. Para que o sistema vigente permaneça, as classes dominantes devem ser:

  1. competentes (e para que sejam, aqueles que votam também devem ser);
  2. legitimados pelo reconhecimento popular.

A agenda é conhecida, as prioridades são bem conhecidas:

  1. reduzir os monopólios e os privilégios destas posições;
  2. fortalecer as funções de controle e garantia;
  3. melhorar o sistema judicial e a eficiência da administração pública, com especial atenção aos serviços públicos (ou seja: educação, saúde, água, resíduos, energia, transporte, especialmente no nível local);
  4. e, muito mais difícil, favorecer a meritocracía.

Agora, temos aqui um problema: as receitas oferecidas pelos diário não são verdadeiras receitas, são princípios. O diário não explica, por exemplo, como “fortalecer as funções de controle e garantia”, limita-se a dizer que é preciso fazer isso.  Assim como,mas na frente, afirma que é preciso “exigir competência dos responsáveis”: mas como?

Mais preciso é o diário num ponto, algo que está em circulação há uns tempos e que já encontrámos no blog. Vamos ver o que Il Sole 24 Ore Diz::

Nas democracias com sufrágio universal, todos os cidadãos podem eleger quem legisla e governa. De fato, a “propriedade” do direito de voto (igualdade formal) implica “competência” em exercê-lo (igualdade substancial). De facto, a atribuição do direito não implica a capacidade de usá-lo: a maioria dos eleitores não é capaz de reconhecer o melhor candidato ou a melhor política.

Nas palavras de Harry Emerson Fosdick: “A Democracia é baseada na crença de que existem possibilidades incomuns nas pessoas comuns”. O resultado é um enfraquecimento do sistema: se quem escolhe não possui as habilidades necessárias, a pessoa eleita geralmente não é capaz de gerir problemas colectivos. Para fortalecer a Democracia, deveria ser reconhecida a diferença de valor devido à fadiga individual (desigualdade substancial). Para escolher os governantes, uma preparação política elementar, garantida pela limitação do sufrágio a um nível mínimo de educação, deve ser necessária como já acontece em casos específicos (por exemplo: menores).

“Casualmente”, o diário consegue apresentar uma medida bastante precisa num só caso, no caso do sufrágio universal.

Nestes dias estou a ler o livro de Giulio Sapelli, economista, histórico e académico italiano, cujo título é Oltre il Capitalismo, (“Além do Capitalismo”). Não concordo com tudo o que Sapelli escreve, todavia há alguns pontos na análise dele muito importantes e, se o Leitor/Ouvinte concordar, nos próximos podcasts podemos aprofundar o assunto acerca da Democracia doente e de como tentar cuidar dela.

Para já consideramos o seguinte, Il Sole 24 Ore esquece de pôr no centro do problema uma questão absolutamente central: as regras democráticas foram literalmente assaltadas pelo Capitalismo, reescritas e utilizadas para favorecer unicamente a oligarquia. E isso propõe uma questão, esta: podem conviver Democracia e Capitalismo? No meu entender não.

Numa Democracia capitalista sempre chegará uma altura em que a classe dominante privada tentará reduzir os direitos dos cidadãos, eliminar os órgãos de controle, modificar as regras do jogo para ampliar os seus lucros. É exactamente isto que estamos a ver hoje: tudo o resto é secundário, é apenas uma consequência deste choque entre sistema político e sistema económico, porque as duas coisas não são divisíveis.

Não podemos pensar que possa existir um modelo político independentemente do modelo económico: ou as duas coisas vão de mãos dadas ou, mais cedo ou mais tarde, uma das duas irá prevalecer à custa da outra.

Mas disso vamos falar no próximo podcast/artigo, pode ser? Bom fim de semana!

 

Ipse dixit.

Fonte: Il Sole 24 Ore