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Guia: a vergonha das Eleições Europeias

Wikipedia:

Ditadura é um dos regimes não democráticos ou antidemocráticos, ou seja, governos regidos por uma pessoa ou entidade política onde não há participação popular, ou em que a participação ocorre de maneira muito restrita. Na ditadura, o poder está em apenas uma instância, ao contrário do que acontece na democracia, onde o poder está em várias instâncias, como o legislativo, o executivo e o judiciário. Ditadura é uma forma de autoritarismo.

O próximo Domingo dia 26 de Maio será o dia das eleições europeias de 2019 para eleger os membros do Parlamento Europeu. Vale a pena gastar umas palavras para lembrar justo um par de pontos.

1. Votar em covardes.

Os parlamentares europeus que delegam a elaboração de leis supranacionais (isto é, mais poderosas do que as escritas por Estados individuais e muitas vezes até inconstitucionais) aos burocratas não eleitos da Comissão Europeia em Bruxelas, não são apenas dementes, são também covardes. É o “princípio do conforto” que os guia. É confortável sentar-se na Parlamento, receber um alto salário e, depois, culpar Bruxelas pelos danos mortais que algumas das suas leis provocam. Esse princípio foi descrito por dois académicos (Epstein e O’Halloaran) num estudo de 1999 da Universidade de Cambridge:

Os legisladores têm conhecidos incentivos para delegar todo o poder aos burocratas […] incluindo o facto de evitar de serem chamados a responder aos cidadãos por escolhas duras e impopulares.

2. O poder de fazer nada

De 1979 a 2007, os parlamentares europeus ficaram tão impotentes diante da Comissão da UE que a dúvida era: o que fazem o dia todo? A coisa tornou-se tão obscena e grotesca que, no final, os super-burocratas de Bruxelas decidiram, com o Tratado de Lisboa, uma remodelação cosmética que dava a impressão de que o Parlamento poderia bloquear leis. Com os nomes de Regulatory Procedure With Scrutiny e de Art. 290 TFEU (a cosmética deve ter nomes interessantes), foi conferido ao Parlamento o poder de opor-se às leis da Comissão, tal como já podia fazer o Conselho de Ministros. Mas é uma farsa total: ver abaixo. Assim, o Parlamento da UE passou do fazer nada ao fazer praticamente nada.

3. Contestar? Um sonho

O Tratado de Lisboa, que, de facto, regula todo o funcionamento da UE, tornou praticamente impossível lidar com os custos em dinheiro dos eventuais litígios entre o Parlamento e a Comissão.

As leis da Comissão são deliberadamente escritas por mais de 300 tecnocratas com envolvimentos legais sufocantes, por isso, se o parlamentar da UE quiser entender um mínimo duma questão para debate-la, deve pagar uma equipa de técnicos, com custos muito elevados. Mas não só. Ele deve também ter meios adicionais para “instruir” toda uma Comissão Parlamentar sobre o assunto que ele quer discutir, e tudo isso apenas para começar a agir. Finalmente, deve encontrar meios para formar uma coligação que concorde com a sua ideia e também deve convencer a Conferência dos Presidentes das Comissões.

Depois há os tempos. Limite: 4 meses, durante os quais é preciso

E uma vez passados os 4 meses? Ehhhhh, lamentamos…

The Economist, ano de 2017:

O peso, os custos e os obstáculos de uma disputa contra uma lei da Comissão são quase sempre maiores do que os benefícios […] melhor para o parlamentar uma forma de troca em privado com Bruxelas.

Em outras palavras: bem melhor e mais simples procurar um acordo debaixo da mesa, com ganhos para todos os envolvidos.

Aqui estão os resultados deste mecanismo demente e democraticamente obsceno pelo qual um membro eleito do Parlamento deveria sangrar até a morte para desafiar os burocratas não eleitos da Comissão: entre 2009 e 2017, das 545 leis propostas pela Comissão, o Parlamento da UE efetivamente contestou 1.1%. As outras passaram todas, sem problemas. Obviamente.

4. E os vetos?

Portanto, o bravo parlamentar da UE que gostaria de bloquear uma super-lei da Comissão deve ter um rio de dinheiro, uma equipa de técnicos especializados, e muita paciência para convencer outros parlamentares, partidos e comissões apenas a começar a agir. Mas, para chegar a uma conclusão bem-sucedida, deve também derrotar os seguintes vetos:

Não admira que apenas 1.1 % das leis seja contestado…

5. Lobistas nas sombras

Michael Kaeding é professor de política europeia na universidade de Duisburg-Essen, além de ter outra dezena de cargos nos maiores think tanks da Europa: é um super-tecnocrata da UE, o oposto dum eurocéptico. Recentemente teve uma troca de correio com o jornalista Paolo Barnard acerca deste assunto:

Olhe, Barnard, que declarei isso publicamente em vários estudos, e cito os meus textos. Devido ao facto da Comissão Europeia, que faz todas as leis, estar ciente de ter uma legitimidade democrática bastante atenuada, tenta sempre não chegar ao confronto com os parlamentares europeus. Existe um poder de facto onde o parlamentar único negocia com a Comissão sobre certas leis ao invés de tentar um confronto. O problema é que essas negociações nem sempre são transparentes, ou são mesmo difíceis de serem descobertas.

Em outras palavras: o parlamentar da UE tem na prática zero poder para realisticamente bloquear as leis dos tecnocratas de Bruxelas, como amplamente demonstrado acima, e então pode sempre tentar agir como um lobista, nas sombras. Mas aqui entramos numa zona opaca que faz perguntar ao mesmo Kaeding:

Como funcionam as negociações informais entre parlamentares da UE e a Comissão? E têm realmente efeito? Tornam a Comissão mais democrática aos olhos dos cidadãos?

6. O Parlamento da UE: de zero para zero absoluto

Isto é surreal: o Parlamento da UE pode, de facto, chumbar tanto a nomeação do Presidente da Comissão da UE como a lista de Comissários da UE. Então o que acontece? Acontece quanto aconteceu nos bastidores com a nomeação de Jean Claude Juncker: Presidente e Comissários são apresentados novamente, quase idênticos ou, na melhor das hipóteses, com correções cosméticas para salvar a face dos parlamentares que protestam.

Mas imaginemos que um hipotético heroico Parlamento recuse a farsa: o que acontece então? Acontece que entramos no labirinto da chamada crise constitucional, de acordo com o Tratado de Lisboa (que, na prática, é a verdade nova Constituição da UE introduzida em segredo em 2007 apesar dos chumbos referendários franceses e holandeses). A crise institucional não é resolvida pelo Parlamento da UE e nem pelo Conselho Europeu: tudo é colocado nas mãos do Tribunal Europeu de Justiça, que é ainda menos eleito do que a Comissão da UE. Resultado: a possibilidade de intervir de forma decisiva na nomeação de Presidente e/ou Comissão Europeia passa do “zero” para o “zero absoluto”.

7. Os Tratados: volta o zero absoluto.

As leis da Comissão Europeia põem o nariz em qualquer lugar, desde a papa para os bebés até as regras de acesso às comunicações via satélite; desde o chocolate até as lâmpadas de néon; ou privacidade, ou como irrigar um campo, etc. Mas o que esta Europa trouxe de forma mais devastadora foram os Tratados. Até aqui, neste artigo, temos falado sobre o poder grotesco e inexistente do Parlamento da UE acerca das leis supranacionais da Comissão, as chamadas “Leis Secundárias”. Depois há as “Leis Primárias”.

A “Leis Primárias” na Europa são os Tratados, como aquele de Maastricht, de Lisboa ou o Fiscal Compact. Contra as Leis Primárias, o bom parlamentar europeus tem um poder nulo. Não “escasso” mas nulo mesmo.

O Tratado de Lisboa, com o art. 48, afirma que para mudar um Tratado europeu existem quatro procedimentos. Em cada um deles, o papel do Parlamento da UE é muito limitado. Destes quatro, três são os procedimentos fundamentais:

  1. o Procedimento Ordinário,
  2. o Procedimento Simplificado
  3. o Procedimento Passerelle (em francês).

Para poder aplicar estes três procedimentos, os intervenientes que devem participar, ser consultados, coordenados, informados e, finalmente, convencidos a alterar um Tratado são:

Este é apenas o princípio. Agora vamos resumir os três procedimentos fundamentais.

O Procedimento Ordinário: a proposta de alteração de um Tratado pode partir dos Estados da UE, da Comissão ou do Parlamento e deve ser dirigida ao Conselho Europeu. Nessa altura, deve ser instituída uma Convenção Europeia em que devem ser convidados: representantes de todos os governos, representantes dos parlamentos nacionais, da Comissão e do Parlamento da UE. Em seguida, será convocada uma Conferência dos Governos Europeus que decidirá sobre as propostas de alteração do Tratado em questão. Se a Convenção falhar, todo o procedimento falhará. No final, tudo volta aos parlamentos nacionais que terão de votar “sim” ou “não”, mas o veto de um só destes parlamentos poderá bloquear tudo.

O Procedimento Simplificado: a proposta de alteração de um Tratado pode começar pelos Estados da UE, pela Comissão ou pelo Parlamento e deve ser dirigida ao Conselho Europeu. O Conselho Europeu e o Conselho de Ministros consultam a Comissão e o Parlamento da UE, mas não há nada vinculativo por parte destes. Então o Conselho aprova a mudança, mas mais uma vez é preciso voltar em todos os Estados-Membros para um “sim” ou um “não” e, como sempre, o veto dum único Pais tem o poder de bloquear tudo.

O Procedimento Passerelle. É uma espécie de atalho super-técnico para a alteração dum Tratado. Por exemplo, permite ao Conselho Europeu autorizar o Conselho de Ministros a ignorar os Tratados, alterando o voto da maioria necessário para determinadas decisões (passando assim desde unanimidade para maioria qualificada). Ou pode autorizar o Conselho de Ministros a mudar o modo de legislar na UE de “especial” para “ordinário”, mesmo quando os Tratados impõem o método “especial”. Contudo, para adoptar o atalho Passerelle, o Conselho Europeu deve chegar a um voto unânime. Mas, como sempre, é preciso voltar em todos os Estados-Membros para um “sim” ou para um “não” e, já sabem, um único veto pode bloquear tudo.

Resumo: alterar um Tratado com um destes Procedimentos é virtualmente impossível, sobretudo se a mudança parte “de baixo” (do Parlamento).

8. A vitória dos eurocépticos

Para poder dominar o Parlamento Europeu, os “populistas” eurocépticos deveriam aumentar os seus votos 100 vezes. E dos 12 partidos chamados “populistas” na Europa de hoje, somente a Lega deverá ter um sucesso acima da média, os outros aumentarão em 2 ou 3 ou talvez 4 assentos. Não é mal, mas não será suficiente para controlar o Parlamento. Todavia será um sinal, e bastante claro até. Melhor do que nada.

9. Então votar para quê?

A União Europeia é um mecanismo kafkiano, auto-preservante, muito bem estudado, no qual os representantes dos eleitores não têm poder. Na verdade, chama-lo “Parlamento” é um exagero: mais apropriado seria falar em comissão consultiva. A inevitável vitória dos euro-cépticos não será suficiente para mudar algo já, mas representará mais um passo no caminho da definitiva decomposição dum estrutura que há muito cortou os laços com a sociedade civil. A dúvida não é “se” a União Europeia desaparecerá mas “quando”. E não é uma questão secundária: enquanto por aqui estamos a perder o nosso tempo com esta caravana alucinada, o resto do mundo avança e a Europa não tem a capacidade de tomar decisões dignas deste nome. O máximo que consegue é saltitar entre as ordens de Wall Street, da Nato e da dupla Soros-Rothschild, todo misturado com interesses particulares.

Então volta a eterna questão: votar ou não votar? Votar para um Parlamento cujos legisladores não podem legislar e que, de facto, não podem opor-se a leis poderosas feitas por pessoas que ninguém elege, significa tornar-se cúmplices intencionais de uma ditadura. Porque isso deve ficar extremamente claro:

quando as leis são feitas por indivíduos que ninguém alguma vez elegeu e quando as mesmas leis não podem ser democraticamente avaliadas pelos representantes dos eleitores, então é lícito falar em ditadura.

Um ditadura soft, sem generais com estrelinhas ao peito, ofuscada no meio duma selva de normas que escondem a sua verdadeira natureza, camuflada de triunfo democrático. Mas sempre ditadura é.

 

Ipse dixit.

Fontes: Paolo Barnard, Wikipedia (versão portuguesa)