Vida e morte do Petrodólar

Diz Wikipedia, que tudo sabe:

Petrodólares são as divisas (em geral, dólares) originárias da exportação de petróleo.

E, meus senhores, desta vez Wikipedia acertou.

Em 1973, com a crise do petróleo e a súbita elevação do seu valor, os países exportadores desse produto receberam um crescente fluxo de divisas. Dadas as limitações de suas economias internas, estes países utilizaram essas divisas no mercado financeiro internacional, gerando um período de grande liquidez financeira, o que tornou popular o termo.

Eh?  Que raio de explicação é esta? Ok, ok, vamos pôr um pouco de ordem. Pegamos num artigo do Professor Valentin Katasonov (Doutor em Economia, Presidente da Sociedade Económica Russa S.F. Sharapova), publicado no pouco imparcial Fondks; juntamos um artigo da também pouco imparcial Reuters; um de Zero Hedge (que alterna coisas boas a coisas… assim) e acrescentamos dois neurónios, por acaso os últimos ainda em actividade. Meus senhores: abram as asas ao Petrodólar!

O berço do Petrodólar

Primeiro de tudo: Jamaica, Ano do Senhor de 1976. Na cidade de Kingston, onde sempre bate o sol (acho, nunca lá fui), na Conferência Monetária e Financeira Internacional dos Países membros do FMI, é decidido passar do padrão-ouro para o Dólar de papel, completamente desconectado do metal amarelo. Escolha obrigatória, dado que o presidente americano Nixon tinha já desligado o Dólar do precioso metal poucos antes.

E agora: salto temporal, mas para trás, até a Arábia Saudita do Ano do Senhor de 1974. Após a guerra árabe-israelita de 1973 e a crise energética global (com o preço do petróleo que quadruplicou em poucos meses), as negociações entre o então Secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger e o Ministro das Finanças, William Simon, com o Rei saudita ficam concluídas. É alcançado um acordo entre os Estados Unidos e a Arábia: esta última aceita vender o petróleo apenas em troca de Dólares. O que ganha com isso? Simples: Washington promete colocar esse dinheiro árabe no sistema bancário dos EUA. Grandes lucros no horizonte. E, como bónus, os americanos prometem também fornecer armas à Arábia Saudita e não permitir nenhum ataque de israel contra Riad. Ah, pois: a antiga guerra entre Arábia e israel, os bons tempos idos…

Após o sucesso em Riad, os americanos falam com os líderes de outros Países produtores de petróleo no Médio Oriente e arredores. O acordo é sempre o mesmo: vender petróleo só em Dólares em troca de lucros fabulosos. É o fim duma época: o velho cartel petrolífero das “Sete Irmãs” (cinco empresas petrolíferas americanas e duas europeias) é substituído por um novo cartel com o acordo intergovernamental entre os Países produtores e exportadores de petróleo, a OPEP. Esta organização torna-se assim uma parte importante do novo sistema monetário mundial: a OPEP tem a permissão de transformar o Dólar de papel em Petrodólar.

Comentário: genial. Mas genial de verdade. O Dólar acabava de perder o seu valor em ouro e eis que ganha um novo valor como única moeda admitida nas transacções de petróleo, o ouro negro. E todo o planeta precisa de ouro negro, pelo que: precisa de Dólares para compra-lo. Não sei quem imaginou isso, mas chapéu.

Depois: se os americanos não tivessem tido sucesso em Riad em 1974, não haveria uma Conferência na Jamaica em 1976. O que significa isso? Não faço ideia, mas não importa pois a História não é feita com os “ses”. A seguir, e bem mais importante: a transicção para o Dólar em papel (estabelecida na mesma conferência) na verdade foi feita para o Petrodólar. Porque a moeda americana já era a mais utilizada nas trocas comerciais globais e era necessário que tivesse as “costas quentes”, com um valor estabelecido não apenas pelo governo dos Estados Unidos. Com a utilização exclusiva nas compras de petróleo, o Dólar ganhava poder como nenhuma outra divisa. Um poder não escrito, mas evidente: a partir daí, o mercado global de petróleo gerou continuamente procura para Dólares e as impressoras da Federal Reserve nunca pararam.

Despetrodolarizar o mundo

Este sistema monetário mundial, baseado no Dólar americano (mais precisamente no Petrodólar), ainda existe hoje: está em andamento a sua quinta década. Envelheceu, apareceram as primeiras rugas. Até que alguém começou a entoar o canto fúnebre. E bem pode ser que este alguém esteja certo: a época do esplendor do Petrodólar fica atrás, a procura para um sistema alternativo de pagamento aumenta cada vez mais. O Petrodólar é um doente terminal? Provável. Mas quando começou esta doença?

Começou após a crise financeira global de 2008-2009. A necessidade de abandonar o monopólio do Dólar americano foi repetidamente assumida pelo então Director Executivo do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn. Que depois ficou envolvido numa história esquisita de violência sexual. Mais ou menos na mesma época, o líder líbio Khadafi disse que o seu País passaria dos Dólares americanos para o Euros nos pagamentos do petróleo exportado. E Khadafi morreu.

Corolário nº 1: quem põe em dúvida o papel do Petrodólar é atingido por uma maldição tipo aquela de Tutankhamon.

Mas isso foi o passado, agora as coisas mudaram: apenas os preguiçosos não falam sobre a necessidade de “despetrodolarizar” a economia mundial. Por exemplo, o Presidente francês, Macron, fez pelo menos uma dúzia dessas declarações e ainda não lhe aconteceu nada. Infelizmente.

Corolário nº 2: os servos dos banqueiros Rothschild parecem imunes à maldição de Tutankhamon. Infelizmente outra vez.

Isso significa que a elite (pelo menos a vertente “progressista”) já decidiu ir além do Petrodólar? Sim, sem dúvida. E as razões são múltiplas. Uma entre todas: o redimensionamento dos Estados Unidos em prol dum mundo “multipolar”. Nós aqui ainda a contar os Petrodólares enquanto outros já desenham o futuro. Paciência.

Agora, sigam o raciocínio. Segundo o FMI, em 1995, o Dólar dos EUA representava 59% das reservas de moeda mundial. E, no ano passado, a moeda americana atingiu 63%.

E agora eis os dados do sistema SWIFT acerca das transacções dos pagamentos: no início de 2012, o Dólar representava 29.7% de todas as transacções e no início de 2019 atingiu o 39.1%.

Pelo que surge a dúvida: mas onde raio fica esta “despetrodolarização”? Em vez que perder quota, o Dólar aumenta.

Corolário nº 3: quando alguém falar de iminente “despetrodolarização”, podem cuspir-lhe na cara. Sobretudo se a falar for Macron, pois não gosto nada dele.

É verdade que o Petrodólar será eliminado, mas até lá ainda alguma água terá que passar debaixo das pontes. É um processo que requer alguns tempos, passo após passo. Por exemplo: aparentemente agora algo aconteceu. No início de Abril, a Arábia Saudita divulgou uma declaração bastante importante sobre a possível “desdolarização” como uma medida em reacção às acções de Washington. Diz a Arábia: se o Congresso dos EUA aprova a lei NOPEC, a Arábia Saudita vai recusar o acordo de 1974, aquele que prevê a venda de petróleo exclusivamente em troca de Dólares.

NOPEC? No party!

Dúvida: o que é esta NOPEC? O significado da sigla é No Oil Producing and Exporting Cartels Act, que quer dizer o seguinte: a NOPEC deseja remover o escudo de imunidade para permitir que o cartel internacional do petróleo, a OPEP e as suas companhias petrolíferas nacionais, sejam processadas pela lei dos EUA com a acusação de tentativas  anti-competitivas para limitar a oferta mundial de petróleo e o consequente impacto sobre os preços do petróleo. Uhiiiiiii! Esta é uma coisa séria. Na prática, os EUA reconhecem que o cartel da OPEP faz o que mais lhe apetecer em relação ao petróleo, criando enormes dificuldades às economias de todo o mundo.

Uma nova ideia de Trump? Nada disso: o projecto de lei NOPEC vem de longe, é coisa de 2006, quando na Casa Branca estava sentado G. Bush (o filho degenerado) e tinha sido apresentado pelos Democratas. E formas variadas da NOPEC tinham visto a luz ainda antes, desde o ano de 2000 (Presidente Bill Clinton), apesar da veementemente oposição da indústria do petróleo.

Agora, o projeto NOPEC é formalmente dirigido contra os cartéis do petróleo; no entanto, hoje existe apenas um cartel deste tipo, a OPEP. Tradução: o projecto de lei americano visa destruir ou pelo menos neutralizar a OPEP e todos os seus Países membros, que controlam cerca de 2/3 das reservas mundiais de petróleo e representam cerca de metade das exportações mundiais de petróleo. Estão a ver as profundíssimas implicações deste projecto? O eixo EUA – Arábia deixaria de ter sentido: debaixo dos sorrisos de circunstancia voam as facas entre os aliados. A potência de Washington sempre foi e ainda é condicionada pelo poder da OPEP: além dos tons triunfalistas acerca da independência petrolífera, os EUA sabem que com fracking não é suficiente no longo prazo, sabem de depender ainda do petróleo árabe. E querem mudar as regras do jogo.

A Arábia Saudita ocupa uma posição-chave na OPEP com cerca de um terço da produção total de petróleo. No final de 2018, a Saudi Aramco, empresa de petróleo estatal da Arábia Saudita, teve vendas de 356 bilhões de Dólares e um lucro líquido de 111.1 bilhões. Isso excede os resultados do líder petrolífero americano, a Exxon Mobil, em várias vezes.

A Arábia entende o projeto NOPEC como um ataque directo ao seu endereço. E tem toda a razão. Sorte dela: na América este projecto ainda não conta com o suporte de todos e provavelmente não receberá o apoio do Congresso. Mesmo assim, é uma campainha de alarme: as coisas estão a mudar. Como afirmado: a morte do Petrodólar está escrita, só requer alguns tempos.

As relações entre os EUA e a Arábia Saudita estão longe de serem o que eram nas últimas décadas do século XX: as contradições crescem. Riad mostrou os dentes mais de uma vez nos últimos anos. Por exemplo, quando o Congresso dos Estados Unidos tentou impor a responsabilidade à Arábia Saudita pelo acto terrorista em New York em 11 de Setembro de 2001. Uma responsabilidade não apenas política e moral, mas também financeira: foi dito que Riad deveria ter reembolsado os danos causados ​​pelo acto terrorista, incluindo pagamento de indemnizações aos parentes das vítimas. Então os sauditas ameaçaram Washington: retirar os seus activos dos Estados Unidos, cerca de 1 trilião de Dólares. Um assunto bastante convincente. Agora aqui está a nova ameaça: abandonar o Dólar americano como moeda de pagamento do petróleo.

China, Europa e Arábia: morte ao Petrodólar!

Fantapolítica: outros Países poderiam utilizar a ameaça de abandonar o Dólar como uma arma política?

Por exemplo, a China. Pequim poderia seguir o exemplo de Riad e ameaçar Washington de abandonar o Dólar caso os EUA continuem a sua política proteccionista contra os bens e os investimentos chineses? Não, não poderia. Ou melhor: poderia, mas seria um suicídio. Porque quase 100% das exportações chinesas para os Estados Unidos são pagas em Dólares. Depois de deixar de aceitar Dólares, de um dia para o outro a China ficaria privada de todas as exportações para os Estados Unidos: mais ou menos metade de todas as exportações da República Popular chinesa. Definitivamente não seria uma boa ideia.

Talvez a Europa? Imaginem… A cambada de burocratas de Bruxelas seria bem feliz de obstacular a Administração de Trump e satisfazer os patrões “progressistas” mas, mais uma vez, a mercadoria que viaja até os Estados Unidos é paga em Dólares. Recusar o bilhete americano significaria abdicar de 100 bilhões de Dólares por ano. De trocas comerciais? Não, de lucros: a União Europeia é o primeiro partner comercial dos Estados Unidos e o segundo que mais exporta.

Nesse sentido, a posição da Arábia Saudita é mais vantajosa. Se os bens chineses ou europeus, depois de terem sido privados do gigantesco mercado americano, não podem ser transferidos para outros mercados, a situação relativa ao petróleo é bem diferente. A América está a aumentar a sua produção de petróleo, reduzindo as importações: e, apesar do fracking sair caro, os sauditas hoje fornecem mais petróleo para a China, o Japão, a Índia do que para os Estados Unidos. Síntese: os interesses económicos da Arábia Saudita estão a abandonar lentamente a América em favor de outras partes do mundo. Além disso, o petróleo é uma commodity com grande procura em muitos Países. Se a Arábia Saudita rejeitar os Dólares como forma de pagamentos, perderá o mercado americano mas poderá transferir o petróleo extraído para outros mercados.

Então: solução viável desde já? Opinião pessoal: não. Não existe apenas o mercado e nesta altura a Arábia precisa desesperadamente do apoio dos aliados americano e israelita. O inimigo comum é o irão, a vertente xiita do islamismo. A Arábia sunita quer tornar-se o centro de todos os muçulmanos do globo. Mas sozinha não pode: nem uma nulidade militar como o Yemen consegue derrotar, imaginem o Irão. Então terá que continuar a engolir amargo e trocar petróleo por Dólares. Por enquanto. No futuro será diferente, talvez.

O Petrodólar nasceu na Arábia Saudita há 45 anos. Se quiserem encontrar o local da sua sepultura, continuem a ter debaixo do olhos o mesmo País.

 

Ipse dixit.

Fontes: Wikipedia, Fondsk, Reuters, Zero Hedge

5 Replies to “Vida e morte do Petrodólar”

  1. Estimado Max, como vc posicionaria a Venezuela nesse contexto ? Já que é o país com uma das maiores reservas de petróleo do mundo.

  2. Também por isso, a enorme importância de RETOMAR a Venezuela, que não só, tem as maiores reservas mundiais, mas faz parte da OPEP. Haja Geopolítica e nisso a Russia é muito boa.
    Abç

  3. Nota: Max de mini-férias até Domingo. Mas o blog nunca pára!

    Não percam os artigos programados e automaticamente publicados:
    – hoje, Quarta-feira: um inútil artigo acerca dos homens mais ricos do mundo!
    – amanhã: a guerra entre os big da tecnologia, Gugel, Eppol e Feisbuc!

    Entretanto, o bom Max vai ver como estão as coisas na Galiza, Espanha. E aproveita para acompanhar Leo na peregrinação até a Catedral de Santiago de Cãompostela, da qual é muito devoto. Enfim, fraquezas caninas…

    Até já! 🙂

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