Morte dum sommelier

Lorenzo Orsetti era chefe de profissão, sommelier (“escansão” em bom português), e trabalhava em Firenze. Ficou interessado na luta do povo curdo contra o Estado Islâmico: conheceu Paolo Andolina, activista e anarquista italiano que lutou contra o Isis ao lado dos curdos do YPG. Em Setembro de 2017, Lorenzo viajou para a Síria, onde recebeu treino militar das unidades do YPG. Aí fez amizade com vários voluntários italianos que estavam a lutar ao lado dos curdos.

Após terminar o treino, juntou-se às fileiras dos combatentes na batalha de Afrin contra o exército turco e os jihadistas.

Lorenzo foi morto em ação na manhã de Segunda-feira, 18 de Março de 2019, na aldeia de Baghouz, na Síria. Encontrava-se naquela localidade empenhado na batalha de Baghuz Fawqani contra o último bastião do Estado Islâmico na Síria. Caiu numa emboscada com um colega e a sua morte foi anunciada pela media do Isis.

Por qual razão uma pessoa decide abandonar a sua profissão de sommelier para entrar numa guerra? Por qual razão um rapaz ocidental, com um bom trabalho, num certo ponto da sua vida decide pisar o deserto, tornar-se um atirador, abater o maior número de radicais islâmicos?

Eu entendo Lorenzo. Não partilho a sua escolha porque acho que matar não pode ser a solução, assim como não adianta fazer o papel de “dispensável” num jogo decidido por outros. Mas entendo a opção dele. Até consigo entender os combatentes estrangeiros que, ao contrário, foram lutar nas fileiras do Isis. O que eles tentam preencher é o vazio que foi criado no mundo ocidental: um vazio total, no meio do qual não há nada que possa funcionar como ponto de apoio. Um fenómeno que está ligado a outro, os dos jovens que praticam desportos radicais: bungee jumping, volcano boarding, crocodile bungee, limbo skating, wing-walking, escalar um arranha-céu com as próprias mãos. Adrenalina. Todos precisamos de adrenalina, em particular os mais jovens, e se não conseguirmos canaliza-la na defesa de valores comuns, então criamos as ocasiões para senti-la crescer em nós. Como essa vida é uma rotina muito aborrecida, podemos correr o risco de perder a sensação da descarga adrenalinica unida à emoção de fazer algo “bom”, de participar em algo para o qual vale a pena correr o risco.

Como Nietzsche previu na segunda metade do século XIX, com algum avanço porque ele era um génio, Deus morreu na consciência do homem ocidental. Foi substituído pelas ideologias nascidas do Iluminismo. E o Iluminismo assassinou Deus. Mas depois de dois séculos, até as ideologias estão mortas. O que resta para nós? A Democracia.

Problema: a Democracia não é um valor em si. É um sistema de regras e procedimentos, uma caixa vazia que deve ser preenchida com conteúdo. Infelizmente nós, no Ocidente, preenchemos esta caixa apenas com conteúdos materialistas e quantitativos: para dizer como Fukuyama, com “a disseminação de uma cultura geral de consumo” conjugada com “um capitalismo numa base tecnológica”. Em suma, a Democracia ocidental foi apenas uma maneira para transformar o homem em consumidor. Mas o o homem não é apenas consumidor, precisa de mais: precisa de acreditar em algo para dar um sentido à sua própria vida. Retiramos ao homem a religião, o Estado, a família, a segurança, a privacidade, a responsabilidade, a paz, o respeito, a honestidade, os relacionamentos, a compaixão, até a saúde: o que sobra dele? Esta será a razão que levará à queda do actual sistema. Mas a queda é o futuro: o presente é feito de vazio.

Então não me parece nada estranho que os mais jovens, ou pelo menos alguns deles, rejeitem essa degradação. Podemos não concordar com as escolhas deles; e pessoalmente não concordo com a ideia de procurar algo na guerra ou no terrorismo, porque ambos são absolutamente negativos, sempre e sem excepções. Isso sem considerar que, ao abraçar guerras ou terrorismo, estas criaturas tornam-se peões nas mãos daquelas forças que reduziram a nossa sociedade ao que é hoje.

Mas não podemos ignorar que na base das escolhas deles há uma reacção. Ainda há alguém que decide não ficar parado, que quer fazer algo para que o mundo possa tornar-se um lugar melhor e que está disposto a sacrificar-se para isso. Ou seja: ainda há esperança.

 

Ipse dixit.

One Reply to “Morte dum sommelier”

  1. Dizem que entre os ricos e remediados há proporcionalmente mais suicídios que entre os pobres. É provável porque os pobres lutam para viver, subsistir, os demais lutam para não morrer, para mais aquinhoando, garantirem que não lhes tirem o que consideram deles. Há um impulso de biofilia entre os pobres, o esforço de quem se agarra ao que der para subir uma montanha. Entre os demais uma pulsão necrófila de quem se agarra para não descer ladeira abaixo. Estes últimos, quando se consideram garantidos, nada mais há o que fazer, senão consumir e jogar com a vida de multidões. Até isso cansa, perde o sentido para alguns que acabam com a própria vida. Este tipo de relações humanas gera em todos, como dissestes,Max, um vazio de sentido porque desprovido de solidariedade, de empatia pelo outro. Não vamos nos esquecer que o bicho homem era para ser social, mas as relações sociais estão bloqueadas. Para dar sentido a sua vida, busca negociar o sentir-se parte de um grupo tornando-se conveniente, atrativo, necessário para o grupo, e ser acolhido.
    Nosso amigo provador de vinho, suicidado, na verdade, jogou com a sua vida em nome da justiça para os curdos, mas no fundo trata-se, como quase sempre, da necessidade vital de ser acolhido. Resumo da ópera: desigualdade social, cada vez maior, que coloca todos contra todos, numa competição de vida ou morte, e profundo isolamento.

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