MMT: nos Estados Unidos avança

Na América, a economia não vai mal: crescimento de 2.7% do PIB e desemprego nos mínimos históricos. Certo, os Estados Unidos têm problemas: as infraestruturas precisam de investimentos, há amplas faixas da população que sobrevivem numa condição de pobreza. Mas uma economia que trabalha é o primeiro passo para a recuperação. Washington apresenta um deficit público de 900 bilhões de Dólares: assustador? Não: ninguém entre republicanos e democratas parece preocupado. Enquanto aqui na Europa isso seria encarado como uma espécie de Apocalipse, na terra do Tio Sam acontece o contrário: a ideia que está a ganhar espaço é aquela de aumentar o deficit ainda mais.

Como é possível ler nas páginas de Bloomberg, há muita discussão sobre uma visão alternativa no dilema entre dívida ou aumento dos impostos perante os deficits do governos. Pode parecer loucura: um executivo já mergulhado numa deficit de 900 biliões de Dólares pensa em aumentar a ainda mais o passivo?

Os Leitores de Informação Incorrecta já sabem do que estamos a falar: MMT, Modern Money Theory, algo que está a ganhar forma em vista das eleições: os novos líderes democratas, candidatos para as presidenciais do próximo ano, patrocinam as ideias da MMT, lançada há vinte anos por Warren Mosler. Por exemplo: Alexandria Ocasio-Cortez, o novo rosto dos progressistas no Congresso, apoia a MMT e propõe maiores deficits para investimentos ecológicos; isso enquanto outras correntes do Partido Democrático propõem que o governo garanta um emprego para todos aqueles que desejam trabalhar. Pleno emprego com fundos estatais: sempre uma ideia da MMT. Quatro senadores (Cory Booker, Kirsten Gillibrand, Elizabeth Warren e Bernie Sanders) já assinaram ambas as iniciativas que, lembramos, seriam financiadas na integra com um aumento do deficit.

Do outro lado do Atlântico é o silêncio. Aqui no burgo a sigla MMT nada diz e não poderia ser de forma diferente pois, se discutida, cairiam duma só vez os dogmas da austeridade, da contenção do deficit a qualquer custo e seriam postos em em realces os papeis criminosos tanto da União Europeia quanto do Banco Central Europeu.

A MMT explica que o deficit público não é um problema para um Estado que tenha a sua própria moeda e um seu banco central: sempre poderá pagar a dívida pública criando dinheiro. Somente quando ocorre uma situação de alta inflação o deficit deve ser contido. No entanto, como todos no mundo industrializado sabem, inflação e taxas de juros são muito baixas: então a MMT argumenta que evidências empíricas mostram que grandes deficits públicos podem agora ser mantidos para financiar programas sociais, incentivos fiscais ou criar e melhorar infraestruturas.

Agora olhamos para o Wall Street Journal, o Washington Post, o New York Times, Forbes, Bloomberg, blogs de economia como aquele de Paul Krugman, e todos estão a discutir isso, o interesse explodiu: a pesquisa no Google pelo termo “Modern Money Theory” aumentou mais de 100 vezes.

O facto macroscópico e difícil de ignorar é que com Bush, Obama e agora com Trump, os Estados Unidos aumentaram a dívida pública de 8.000 para 22.000 bilhões de Dólares nos últimos dez anos. Com Trump, que teoricamente seria um conservador, o deficit foi aumentado para cortar os impostos e estimular a economia (que este ano voltou a crescer). Como já lembrado, isso perfaz um deficit de 900 bilhões e uma dívida pública de 22 bilhões milhões de Dólares. Segundo a teoria económica clássica, nesta altura os EUA deveriam estar mergulhados numa inflação arrepiante e preocupados com uma iminente desvalorização do Dólar, tal como previsto pela maioria dos economistas. Juntamos também outro “pormenor”: o papel do Dólar como única moeda no comércio do petróleo está em risco, pois vários Países já decidiram utilizar outras moedas para este negócio. Portanto, a ideia de que “os EUA podem fazer o que lhe apetecer pois por causa do petróleo o Dólar ficará sempre forte” já não vinga e no futuro será sempre pior neste aspecto.

Mas, apesar disso tudo, os Estados Unidos mostram um deficit de cerca de 900 bilhões e o valor do Dólar soube; na União Europeia o deficit geral é de 150 bilhões por ano e o Euro cai porque o mercado premia o crescimento do PIB. Como é natural que seja.

Tendo em vista a eleição presidencial de 2020, candidatos e líderes democráticos, ao invés de atacar Trump no campo do deficit, aumentam a dose e propõem planos de investimentos públicos e de apoio ao emprego que implicam deficits cada vez mais elevados (mais de 4% do PIB ), algo que iria horrorizar os nossos tecnocratas de Bruxelas. Tanto da Direita quanto da Esquerda, na América querem estimular a economia com deficits que na UE seriam sancionados pela Comissão de Bruxelas. Tudo isso é soberanamente ridículo.

A MMT é a teoria económica que tinha claramente previsto que esses deficits não teriam elevado a inflação ou provocado a desvalorização da moeda (veja-se o caso do Japão) e é por isso que agora os líderes políticos norte-americanos a englobam nas suas propostas. Como afirma o seu criador, Mosler, mais do que uma teoria a MMT é uma descrição da maneira como funciona o sistema monetário moderno, algo que poucas pessoas entendem. Mas mesmo que estas não entendam, a simples verdade é que 97% do dinheiro em circulação é pura dívida, porque o dinheiro é criado pelos bancos ao fornecerem um empréstimo: uma vez o dinheiro era valor (antigamente até havia moedas feitas com metais preciosos, pelo que o valor nominal era o valor real), hoje o dinheiro não é valor. Na realidade, não há diferença no nosso sistema monetário entre ter dinheiro numa conta bancária ou ter títulos de Estado: ambos são dívida e funcionam como dinheiro porque nós confiamos que o Estado, em caso de necessidade, possa pagar esta dívida com os impostos que arrecada (marginalmente) e com a emissão de nova moeda (maioritariamente).

No sistema monetário moderno, ter na conta bancária 100 mil em dinheiro ou 100 mil em Títulos de Estado é funcionalmente a mesma coisa: ambos são activos líquidos e, repetimos, o valor de ambos está baseado na confiança que temos em relação ao Estado porque, tecnicamente, o que temos na conta não passa de números de computadores, registros contabilísticos. Confiamos nos bancos porque há o Estado por trás deles e não é coincidência o facto que todos os Estados tenham dobrado a Dívida Pública após a crise de 2008: foi feito para garantir que os bancos (públicos e privados) não entrassem em colapso.

Até seria mais razoável e seguro ter Títulos de Estado e não simples dinheiro na conta. O Estado paga os Títulos, o banco, especialmente se privado, pode até não pagar (entrando num processo de insolvência). Sem mencionar que quando “emprestamos dinheiro ao Estado” comprando os Títulos, ajudamos o nosso País (marginalmente, pois o Estado nem precisaria de emitir Títulos. Ver abaixo) e, ao mesmo tempo, não desistimos da liquidez porque em caso de necessidade o banco empresta quase a mesma quantia entregando os Títulos como garantia. (Nota: obviamente este discurso todo vai por água abaixo numa altura como esta, em que os Títulos rendem zero aqui na Europa…).

Se depois falamos de instituições financeiras com bilhões para administrar, estas usam os Títulos do governo como moeda de troca entre eles: quando um fundo compra 1 bilhão de Títulos de Estado, depois passa este bilhão em Títulos ao banco em troca de liquidez (atenção: sempre liquidez feita com números de computadores, não dinheiro físico!); a seguir, o banco entrega os mesmos Títulos como garantia a outro banco (ou fundo). Os Títulos de Estado são “hipotecados” até três vezes. Porquê? Porque o Estado paga, sempre, todos sabem isso e todos aceitam os Tìtulos como uma garantia na qual confiar.

Mosler explica que quando o Estado emite Títulos, presta um serviço ao público e aos investidores que querem um rendimento seguro. Mas na verdade, como antecipado, o Estado não precisa de emitir Títulos, poderia simplesmente emitir dinheiro: 100 Euros em notas em vez de 100 Euros em Títulos. Há Países como Singapura que nunca têm um deficit porque são ricos: mas têm uma Dívida Pública que é 100% do PIB porque emite Títulos para fornecer aos poupadores algo em que investir. Depois há o caso da Austrália, que tinha eliminado a Dívida Pública: o mundo financeiro reclamou pois faltava algo em que investir, então o governo voltou a fazer deficits ao emitir Títulos.

A ideia de que o Estado precisa de endividar-se para poder gastar é falsa, porque o Estado pode obter dinheiro do seu banco central: é só imprimir. Para o Estado, ao contrário de uma família, o endividamento é um opcional mas, infelizmente, o mundo das finanças conseguiu espalhar uma cortina de fumaça para esconder essa verdade.

Obviamente falamos de Países industrializados, capazes de financiar deficits atraindo capital como os EUA, o Reino Unido; ou Países que não têm deficits externos como o Japão ou a Itália (se não pertencesse à União Europeia…). Pelo contrário, Países como a Argentina ou a Grécia, com deficits crónicos com o exterior e que não atraem capital “de fora”, têm problemas porque são obrigados a importar muito. Isso significa que o dinheiro criado pelo Estado sai do País, não as financia infraestruturas ou o bem estar dos cidadãos, não estimula a economia, não cria lugares de trabalho: serve apenas para pagar as dívidas para com o estrangeiro. Mas a grande maioria dos Países asiáticos e ocidentais exporta e atrai investimentos: ter um deficit de 3%, 5%, 7% do PIB ou até mais não é um problema.

Moral: nos Estados Unidos a MMT é objecto de debate enquanto em outras partes do mundo a regra é o silêncio. Parte da Finança (por exemplo aquela europeia) engana os cidadãos, ocultando o real funcionamento do sistema económico-financeiro, criando um mostro que não existe. As razões deste engano são complexas mas podem ser resumidas assim: com o actual sistema, baseado no férreo controle da Dívida Pública, os Países são obrigados a impor um regime de austeridade enquanto são também levados a privatizar (isso é: vender) serviços e bens públicos. Com o perene susto provocado pelo mostro-Dívida, a Finança mantém a supremacia perante a política: é a política que tem que adequar-se às leis da Finança e não o contrário. Com um Estado livre de imprimir dinheiro para financiar-se, esta supremacia cairia e, no caso da Europa, com ela todas a mentiras do Banco Central Europeus e da União Europeia.

 

Ipse dixit.

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5 Replies to “MMT: nos Estados Unidos avança”

  1. Mas com o BCE e estando na UE? Não é cada um a puxar para si?
    E as agências de rating?
    Que colocam estados no lixo ou abaixo ou artificialmente acima (conforme ditames políticos/financeiros) maioria das vezes sem auditorias no local com dados sem ser especulativos?
    A lógica está lá, mas muito poucos como os que mencionados se podem dar a esse luxo, porque podem.
    Maioria vai fazer o que colocaste no ultimo parágrafo, precisamente porque o poder politico está nas mãos da finança. Porque nem moeda própria possui e o próprio estado, na verdade o pagante(maioria) quese sente cada vez mais apertado.
    Que a coisa é um embuste “em parte” não existem dúvidas. Mas é como jogar no mesmo jogo e ter regras diferentes para cada participante. Porque podem.
    Aliás e sem generalizar o que o sistema financeiro gera? …riqueza lol para os mesmos ou usa instrumentos financeiros para tirar parte das crises geradas pelo próprio, a culpa é de quem paga, um tal de contribuinte sem receber nada em troca(de concreto) ou estímulos(do mais variados e não passa de formiga em jogos de pilantras.

    Nuno

  2. Olá Max: o Brazil seria um exemplo muito bom para estudares porque a política financeira vem atingindo em cheio os simples mortais. Porque por aqui o Estado míngua e os bancos obtém lucros astronômicos? Porque concomitantemente a maioria empobrece e a minoria enriquece mais e tão rapidamente? Aparentemente está tudo congelado, parado, mas na surdina uma máquina de moer carne se movimenta agilmente.

  3. Bilhões e bilhões por todo o lado. Fiquei sem perceber qual o conceito do “bilhão” aqui empregue. Sou europeu de Portugal. Aqui utilizamos os “mil milhões” no lugar do bilião norte-americano. O que me baralhou foram os “20.000 bilhōes”. O próximo artigo que utilize unidades de medida, tais como o comprimento, fará referência a “pés” em vez de centímetros? E no contexto da americanização cultural, também poderia ser utilizado o “20,000” em vez de “20.000”.
    Gostei do artigo, mas näo percebi nada dos números com referència aos “bilhões”, sem ter que fazer contas para ver os números como eles são, com aqueles zeros todos à direita!!!!
    Um bem haja para todos nós….

    1. Olá Badio!

      Sendo italiano, utilizo a tradução do termo “miliardo” (1.000 milhões), que em inglês é “bilião” e que não tem equivalente na língua portuguesa: em português de Portugal “bilião” é na realidade 1.000.000.000.000 (um milhão de milhões). Diferente a situação no Brasil que adopta a mesma escala italiana e inglesa (1 miliardo = 1 bilião = 1.000 milhões).

      Portanto, se utilizo a escala “italiana” e americana (não inglesa), os portugueses entram em confusão, se utilizo a escala portuguesa (e inglesa), eu e os brasileiros entramos em confusão. Por esta razão, há anos aprovei um referendo que viu os seguintes resultados:

      Pergunta: “Pretende utilizar a escala italiana?”
      Resultado: 100% SIM
      Votantes: 1 (eu)

      Uma decisão democrática que, como tal, foi de imediato retificada pela Direcção do blog.
      No Primeiro Congresso Internacional de Informação Incorrecta acerca dos Valores Numéricos (Madrid, 28 de Novembro de 2010) foi aprovada por unanimidade a seguinte tabela:

      milhão = 1.000.000
      bilião (ou bilhão) = 1.000.000.000
      trilião (ou trilhão) = 1.000.000.000.000
      quadrilião (ou quadrilhão) = 1.000.000.000.000.000
      demais = mais de 1.000.000.000.000.000

      Todavia é preciso realçar uma falha da qual o blog assume a total responsabilidade: em lado nenhum é especificada qual a denominação de valores utilizada nos artigos. E isso pode criar confusão. Pelo que, em breve, será publicada uma tabela de fácil consultação que determinará de forma inequívoca como interpretar os valores apresentados.

      Obrigado por sinalizar o problema!

      Fui!

Obrigado por participar na discussão!

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