A Pseudo-Democracia representativa e o mal das eleições

É possível morrer de demasiadas eleições? Sim, é possível. Pelo menos pode morrer a democracia representativa, que está a sofrer deste mal. Ao mesmo tempo, uma das críticas contra a democracia directa é constituída pelo excessivo número de consultas populares que implicaria. Será verdade? Não necessariamente.

Aqui, na Velha Europa, existem eleições legislativas, administrativas, autárquicas, regionais, europeias. Todas no âmbito da democracia representativa, pois a directa permanece um sonho. E para não esquecer nada, temos até as sondagens que, nos factos, são uma espécie de mini-eleição que os políticos não podem não ter conta (as sondagens deveriam ser abolidas). Este mal não aflige apenas os Países europeus, mas também outros: pensamos em Donald Trump que, com as midterm elections, é obrigado a corrigir as suas escolhas consoante o resultado das urnas.

Além disso, num mundo como o nosso onde as notícias voam em tempo real dum País para outro, os resultados eleitorais dum Estado são muitas vezes tidos em conta pela classe política e outros como “indicador” dos humores dos cidadãos duma determinada área. Porque uma eleição, digamos na Polónia, pode influenciar e condicionar as eleições de outros Países ou até negar o direito eleitoral. Foi o que aconteceu com o referendo sobre a assim chamada Constituição Europeia: após dois chumbos consecutivos, os cidadãos dos restantes Estados-membros nem foram chamados às urnas porque a consultação continental estava a tornar-se um cartão vermelho contra a União Europeia.

Podemos pensar: tudo isso afinal é a Democracia que funciona, os referendos fazem parte do jogo e os políticos têm que considerar isso. Mas não, não é: esta é a democracia representativa que mostra toda a sua própria fraqueza e as suas limitações estruturais como regime para governar um País.

O político, em teoria, deveria pensar em “grande”, ter uma visão que vai além do seu nariz, que abrange pelo menos os quatro ou cinco anos do seu mandato. Mas mesmo que tivesse essas qualidades (e seria preciso pô-lo debaixo dum jarro de vidro para preserva-lo melhor), não poderia exercê-las: a sucessão de eleições obriga o político a tomar decisões sobre o “aqui e agora”, facto que pode garantir um maior consenso em termos de resultados eleitorais imediatos mas que pode não ser a forma de trabalhar mais eficaz. Uma simples sondagem negativa pode desencadear processos internos que interrogam a linha partidária, a posição do secretário, eventuais alianças. Como consequência, temos entre os vários movimentos os políticos oportunistas sempre prontos a abandonar o barco que afunda e a saltar para o carro dos vencedores.

A democracia directa eliminaria algumas das limitações e distorções da democracia representativa? Em teoria sim, na prática não. Ou melhor: depende. A democracia directa pode funcionar apenas em comunidades limitadas: o filósofo francês Rousseau, de facto, tinha-a imaginado em Genebra, na Suíça, que na época tinha cerca de 100.000 habitantes. Portanto: uma comunidade geograficamente limitada, onde o eleitor vive, trabalha e onde sabe sobre o que tem que decidir. Mas numa democracia global como a nossa, o eleitor seria chamado a decidir sobre coisas que não conhece. O que conheço eu dos problemas dos agricultores da Polónia? Nada, além dos problemas clássicos que afectam todo o sector da agricultura e, imagino, o deles também. Mas se calhar estou errado, se calhar os agricultores da Polónia vivem como paxás (apesar de ter algumas dúvidas quanto a isso…). E nem podemos pretender que antes das eleições cada cidadão passe noites sem dormir para estudar os problemas dos outros Países.

O quê fazer? Eu sei, começo a ser monótono: mas mais uma vez é preciso olhar para trás, para as experiências de quem já passou por isso. Uma democracia directa, restrita no âmbito duma comunidade específica, existia nos tempos pré-industriais: na sociedade rural, a reunião dos chefes da família, geralmente homens mas também mulheres se o marido estivesse morto, decidia tudo o que dizia respeito à aldeia. O historiador francês Albert Soboul escreve:

As atribuições das assembleias diziam respeito a todos os pontos que interessavam à comunidade. Votava as despesas e procedia às nomeações; decidia a venda, a trocar ou o arrendamento dos bosques comuns, as reparações da a igreja, do presbitério, das ruas e das pontes. Colectava proporcionalmente as taxas que alimentavam o orçamento municipal; podia contrair dívidas se necessário; além dos prefeitos, nomeava os professores da escola, o pastor municipal, os mensageiros e os conselheiros.

Outra atribuição importante da assembleia era aquela dos impostos reais: era a assembleia que definiu a divisão dentro da comunidade e da colecta. Resumindo, a democracia directa existia quando não se sabia que era democracia directa: era simples bom senso.

Este sistema, que tinha funcionado durante séculos, foi apagada da França no limiar da Revolução Francesa, quando sob a pressão dos interesses da crescente burguesia um decreto real de 1787 introduziu o princípio de que já não era a assembleia da aldeia a decidir directamente mas devia fazê-lo através da eleição de representantes. Tinha nascido a democracia representativa.

Outra forma de democracia directa pode ser encontrada ainda hoje na Suíça. E aqui volta o tema do “excesso de consultas”, o elo mais fraco de todo o discurso: de facto, a Suíça experimentou um problema ligado ao facto dos cidadãos serem chamados demasiadas vezes às urnas. Até quando a eleição for feita na praça principal da aldeia, por levantamento do braço, isso não cria problemas: a aldeia é pequena, vota-se nos Domingos de manhã, a afluência é elevada. O problema surge quando todos os eleitores do País são repetidamente consultados: o cidadão acaba por não participar nas eleições nas quais não há o seu pessoal interesse e a abstenção atinge valores preocupantes (por volta de 80%). Isso, aos menos, era o que acontecia até poucos anos atrás. Depois os Suíços, que simpáticos não são mas nem estúpidos, introduziram a consultação via sms: porque estamos no XXI século, temos os meios. A Suíça é um bom exemplo de realidade geográfica relativamente homogénea, onde os problemas são conhecidos pela maior parte dos habitantes porque são comuns: não acaso a democracia directa aí vinga.

Por cá, a que vivemos actualmente, que democracia não é e nunca foi, é formada por oligarquias, onde as minorias dominam a maioria. As oligarquias nunca foram eleitas politicamente (economicamente sim e aqui temos que recitar o meu culpa) enquanto a maioria dos nossos representantes… bom, nem vale a pena.

 

Ipse dixit.

Fonte: Massimo Fini, La ragione aveva torto, Ed. Settimo sigillo, Roma 1999, pp. 140-145

One Reply to “A Pseudo-Democracia representativa e o mal das eleições”

  1. É uma coisa muito engraçada isso de democracia representativa: sem contar o que todo mundo sabe que é o fato dos representantes representarem grupos de interesse, que as eleições são fraudadas, manipuladas etc, se a tal democracia fosse representativa teria a população o direito de eleger o STF, o STJ, e todos os “supremos”, teria de eleger a “suprema” polícia, e tudo que passa ao largo do executivo e legislativo. E assim não é. Mas mesmo que fosse, todo o rol representativo seria, como é, moeda de compra e venda.
    A democracia em si é uma boa ideia, mas penso que para ser efetiva deveria funcionar ao nível municipal apenas, e os municípios formarem cadeias federativas ao nível estadual e nacional. Penso que qualquer organização da sociedade para funcionar minimamente não pode fugir da escala humana, caso contrário foge do controle da população. Corrupção é tão velha e generalizada quanto prostituição. O que interessa realmente é se todas as pessoas de uma população estão sendo atendidas de tal forma que as possibilite comer, morar, educar-se, serem saudáveis, socializarem-se, divertir-se, locomover-se, trabalharem, fazerem projetos e terem aspirações ligadas à individualidade e á sociedade na qual vivem.

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