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O mercado não se auto-regulamenta. Nunca.

É o super-endividamento dos produtores agrícolas. Mas o Capitalismo não gosta desta expressão, prefere “superprodução”: é melhor, dá a ideia dum sistema que funciona à grande, produz muito. A bem ver, “superprodução” parece culpar os produtores: por qual razão produzem demais? Não entendem o mecanismo do mercado ou são simplesmente gananciosos? Seja como for, isso acontece quando os bancos criam dinheiro endividando os produtores. Acontece e voltar a acontecer.

Estados Unidos, década dos 30 do séc. XX

Durante os primeiros anos da Depressão, os preços da pecuária entraram em colapso. O governo do New Deal considerou que os preços estavam baixos porque os agricultores ainda produziam muitos porcos e algodão. A solução proposta pelo Agricultural Adjustment Act (AAA) de 1933 era reduzir a oferta. Assim, no final da Primavera de 1933, o governo federal implementou “reduções de gado”. No Nebraska, o governo comprou cerca de 470.000 cabeças de gado e 438.000 porcos: em toda a Federação seis milhões de porcos foram “nacionalizados”. No sul, um milhão de agricultores foram pagos para enterrar o algodão em flor: 10.4 milhões de acres de algodão enterrados.

Porcos e gado foram mortos: baleados e enterrados em poços profundos. A compra de pecuária e algodão salvou muitos agricultores da falência e os pagamentos da AAA foram a principal fonte de rendimento naquele ano. Mas era uma pílula amarga para engolir: os agricultores tinham trabalhado arduamente para cultivar essas plantações e criar o gado, odiavam ver o fruto de tanta fadiga enterrado. Era um enorme desperdício.

Teria sido possível distribuir a carne, por exemplo? Teoricamente sim, isso teria ajudado os mais desfavorecidos que na altura abundavam: estamos a falar da época da Grande Depressão. Na prática não, porque a carne gratuita teria rebaixado ainda mais o preço nas lojas. O objectivo da AAA era exactamente o oposto: provocar uma subida dos preços com uma política de escassez. Assim, enquanto em New York os desempregados estavam na fila em frente às cozinhas das sopas, os porcos eram fuzilados e toneladas de grãos não vendidos também eram destruídas. Este é o mercado a trabalhar.

O secretário da Agricultura, Henry A. Wallace, justificou o abate dessa maneira: a procura e produtos suínos era muito baixa, os agricultores não podiam manter uma “população de porcos velhos como animais de estimação”. Portanto, a culpa não era duma economia de rastos por causa das aberrações do sistema: eram os agricultores que acumulavam demasiados porcos. E o resto do País não sabia que fazer com tantos porcos. Ou tanto algodão, ou tanto gado.

Também Wallace finalmente foi obrigado a ceder, reconhecendo a necessidade desesperada do País: prometeu que o governo compraria produtos agrícolas “daqueles que têm muito para dar àqueles que têm muito pouco”. A AAA foi alterada para gerar a Federal Surplus Relief Corporation (FSRC), que distribuiu para as organizações humanitárias produtos agrícolas, tais como carne enlatada, maçãs, feijões e produtos suínos.

E o “sistema”? Basicamente faliu. O New Deal de Roosevelt não teve grandes efeitos, além do sucesso da propaganda. Em 1936, o poder de compra dos agricultores americanos permanecia um terço menor do que em 1929. O desemprego, que era de 3% antes de 1929, permaneceu em 19% até 1938. Entre Outubro de 1937 e Março de 1938, a economia americana entrou numa nova grave recessão e outros 4.5 milhões de trabalhadores foram atirados para as ruas. Na véspera da Segunda Guerra Mundial a reabilitação da economia dos EUA permanece incompleta e precária.

Europa, hoje

Nestes dias podemos assistir a um vigoroso protesto dos produtores de leite de ovelha da Sardenha, em Italia. Há dois anos o preço do leite era de 1.20 Euros por litro, no ano passado de 85 cêntimos, agora caiu para 60 cêntimos (44 cêntimos o leite de cabra).

O problema? Aparentemente depende das flutuações do preço do queijo “pecorino romano”, no qual conflui 60% da produção de leite de ovinos e de cabra. Na verdade o problema é claro: a importação de leite barato estrangeiro. Este é um dos clássicos casos em que se mede a diferença entre as políticas liberalistas (e globalistas) e as políticas soberanistas.

O mercado “auto-regulamentado” em três pontos

Deixar que o mercado faça sozinho, que se “auto-regulamente” significa:

  1. permitir flutuações de preços descontroladas e potencialmente muito significativas (no caso acima relatado: mais de 100% em dois anos);
  2. iniciar uma competição pelo menor preço entre os produtores;
  3. reduzir o número de produtores e concentrar a produção em poucas mãos.

O primeiro ponto tende a quebrar os pequenos produtores, aqueles que não estão cobertos por reservas de caixa significativas e, geralmente, força o sistema produtivo a “financiar-se”. O que significa: endividar-se com os bancos. Nessas condições, qualquer produção que não seja uma grande produção industrial com habilidades financeiras está destinada a sucumbir; em todos os casos, quando esta dinâmica começa, a qualidade e a tipicidade da produção são sacrificadas.

O segundo ponto destrói a qualidade de vida dos trabalhadores. Se hoje o leite da Sardenha custa mais do leite romeno e, portanto, a sua produção é suplantada, amanhã o leite romeno vai custar talvez mais do leite marroquina, e no dia seguinte o marroquino mais daquele produzido pelos novos escravos do Gâmbia que criam as vacas chinesas biologicamente modificadas. Nesse processo, apenas os idiotas (ou os mentirosos interessados) podem afirmar que a abertura dos mercados significa uma transferência de riqueza dos ricos para os pobres: o temporário vencedor nesta queda geral é já um perdedor precisamente por ter vencido desta forma, o que o condenará amanhã a reduzir ainda mais as reivindicações sob a ameaça da chegada dum novo concorrente ainda mais económico e maltratado.

O terceiro ponto incentiva os Países a especializar-se na produção de muito poucos produtos, nos quais são comparativamente mais competitivos. Isso cria as condições para Países frágeis, incapazes de contar com receitas razoavelmente estáveis ​​e, portanto, incapazes de estabelecer uma séria protecção social. A razão é simples: com poucas produções concentradas, é suficiente a oscilação do preço de um produto para que toda a economia possa ir de cabeça para baixo (isto é o que aconteceu, por exemplo, com o colapso do preço do açúcar de cana em Cuba, antes da revolução de Castro).

Todas essas três dinâmicas são características do liberalismo e do processo de globalização.

Soluções? Há, simples.

Remediar? Possível e bastante simples até. Trata-se não de abolir o mercado ou o comércio internacional, mas simplesmente exercer a fiscalização, o controle e a mediação. Quem tem que fazer isso? O Estado, em nome do interesse nacional, da qualidade dos produtos e das condições de trabalho. Hoje em dia tal afirmação é praticamente uma heresia, mas até ontem era desta forma que funcionavam tanto os Estados quanto as trocas internacionais. Sempre foi assim, não é preciso inventar nada e nem agitar o espectro “socialista” porque não há nada de “socialista” aqui: há apenas o bom senso.

Intervenções como subsídios públicos direccionados, acordos para impor limites máximos de preços e/ou direitos alfandegários, são as maneiras pelas quais é possível manter a capacidade do mercado de explorar as produções e os relativos custos sem sucumbir aos desequilíbrios degenerativos. Continua a existir um mercado e continuam a haver trocas internacionais: mas o Estado, no interesse público, actua como mediador e moderador dos desequilíbrios que o mercado inexoravelmente cria.

O mercado é incapaz de auto-regulamenta-se: favorece a descompensação, quebra os equilíbrios, degenera até criar o aparecimento de monopólios controlados por uma minoria oligárquica. Esta é a derradeira e natural evolução dum mercado sem regras. Os sujeitos, os partidos, as instituições que em nome do livre mercado se opõem a soluções de moderação e mediação são socialmente perigosos e nocivos: para o bem comum, devem desaparecer. Os Estados que fogem dessas tarefas, fracassam na sua função fundamental e traem o que lhes dá sentido.

 

Ipse dixit.

Fontes: Blondet & Friends, Controinformazione, Il Post