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Decifrar Trump

“Uma grande nação não deveria fazer guerras intermináveis”: esta é a passagem mais significativa do Discurso da União de Donald Trump. Trump é assim: alterna coisas inteligentes a emeritos disparates. No caso concreto, estamos perante uma coisa “quase” inteligente (“uma grande nação nunca deveria fazer guerras” seria a versão correcta), o que é melhor do que nada. Melhor, tanto para ficar claros, do que ver o atordoado Bush filho que anuncia a guerra contra o terrorismo que os mesmos Estados Unidos fabricaram.

Portanto, Trump (mais uma vez) tenta livrar-se da sombra neocon tão presente na sua Administração, tanto que alguns analistas falam de um Presidente “normalizado”. E também aqui no blog publicámos algo do género (“Trump cedeu?“).

No entanto, estas palavras contra a loucura bélica, bem como a retirada do Afeganistão, aquela (parcial) da Síria e o anúncio de uma próxima reunião com o líder norte-coreano Kim Jong Un podem indicam que o jogo continua aberto.

Os ventos contrários que batem no rostos de Trump são fortes: a inteligência dos EUA, num recente relatório, desaconselhou a retirada da Síria (porque faria reviver o Isis, e os serviços secretos bem sabem do que falam), do Afeganistão (iria desencadear novamente à guerra civil e, mais importante mas não citado, significaria perder o controle do maior produtor mundial de ópio), bem como a continuação de iniciativas de paz com Pyongyang (que é considerada traiçoeira). Na prática, o ideal segundo a intelligence americana é deixar tudo como está, com tropas espalhadas em Países estrangeiros e um clima ao rubro com a Coreia do Norte. Pensamentos não particularmente profundos e inovadores, que qualquer senador republicano poderia fazer.

No entanto, Trump tem a sua agenda. A retirada do Afeganistão está na mesa de negociações com o Talebans. E ontem a Reuters informou que os russos ofereceram aos Estados Unidos ajuda para promover uma estratégia acerca do País asiático. Uma oferta veio depois de uma reunião entre os Talebans e representantes do governo afegão em Moscovo, o que denota a presença russa no jogo.

É difícil que o pedido seja aceito publicamente, mas também pode dar origem a negociações por baixo da mesa.

Na frente da Síria, Trump espera para a próxima semana o anúncio oficial da reconquista de todo o território sírio ocupado pelo Estado Islâmico. Este pedido, que atrairá um atentado do Isis naqueles territórios, confirma que sobre a retirada das tropas enviadas para a Síria o Presidente não pode retroceder, apesar da furiosa oposição. Será uma retirada parcial, tanto para não desiludir por completo o aliado israelita e para manter um pouco mais calmos os neocons em casa.

Notamos que também aqui há a sombra russa: foi dos russos o maior apoio à Síria na luta contra o Estado Islâmico e são deles as baterias anti-missíl que ainda defendem as posições fronteiriças dos ataques israelitas.

Finalmente, o anúncio da reunião com Kim Jong Un no final de Fevereiro, no Vietnam. Algo que incomoda profundamente o ambiente neocon, que sempre viu a Coreia do Norte como algo extremamente útil numa futura contraposição (não só económica) contra a China, mas uma questão que Trump parece querer desarmar.

Resumindo: apesar de ter deixado aos neoconservadores carta branca na Venezuela, Trump reserva-se a liberdade no caso dos outros palcos globais, nos quais está a tentar mudar de rumo. Claro, é difícil reverter o curso dum comboio que corre: exercício ainda mais dificultado pela aparente falta de apoios externos, uma vez que os acordos procurados com China e Rússia foram impossibilitados pelos opositores.

Mas podem existir novidades neste sentido. Ontem vimos a opinião de Dimitri Orlov acerca da saída dos EUA do Tratado INF (sobre a não proliferação dos mísseis nucleares de médio alcance), que atirou Trump em pleno clima macarthista, ao iniciar uma nova corrida aos armamentos. No seu discurso à nação, o Presidente afirmou que poderia procurar um novo acordo, que também inclui a China. Pequim já respondeu “Não, obrigado” e a resposta de Moscovo foi o anúncio da próxima construção de novos mísseis hipersónicos.

Portanto, aparentemente, a saída do INF foi um desastre, capaz de frustrar a possibilidade de um primeiro ataque nuclear decisivo por parte de Washington, algo há muito sonhado e perseguido. Acerca disso, em 5 de Fevereiro, veio um artigo de Bloomberg com um título bastante explicativo: “Um primeiro ataque nuclear ainda deveria ser uma opção para a América”.

No entanto, a partir de Moscovo chegam interessantes novidades: ontem o vice-chanceler Sergei Ryabkov disse que a Rússia está aberta a novas propostas dos EUA sobre o nuclear. Mais uma vez: os russos entram no jogo. Ou talvez nunca saíram dele. Este é um aspecto pouco claro, o que é pena: ameaçado pelo Russiangate, Trump não pode falar de maneira aberta, aliás, oficialmente é obrigado a odiar e combater Putin. No entanto, os factos aprecem indicar algo diferente. Se é verdade que Putin logo anunciou a sua “corrida aos armamentos”, após 48 horas tendeu a mão. Assim como tendeu a mão no caso do Afeganistão. Assim como fica em silêncio perante a parcial retirada americana da Síria.

É complicado decifrar Trump. Assumido que não é uma raposa, a verdade é que está a caminhar numa corda bamba da qual não se consegue vislumbrar o fim, suspensa entre neocons e Rússia. Mas não podemos esquecer que em 2020 haverá eleições nos Estados Unidos e a esperança é que até a data o jogo fique mais claro: Trump poderia jogar uma carta importante, como uma distensão do relacionamento entre as duas potências. Uma janela de oportunidade para todo o mundo.

 

Ipse dixit.

Fontes: Reuters, USNI News, Daily Express, Bloomberg