Que o dono de Zero Hedge possa não gostar do regime venezuelano parece claro. Também não surpreende que ré-publique um artigo de Daniel Lacalle, economista espanhol declaradamente conservador. Ex homem forte da petrolífera Ibersol, economista entre os mais 50 influentes do planeta, desde 2017 preside o Instituto Mises Hispano, organização dedicada a difusão nos territórios de língua espanhola dos conteúdos do Instituto Mises americano, instituição que por sua vez ensina os princípios da escola austríaca na área da economia dos mercados.
Pessoalmente detesto a escola austríaca (que, pelo contrário, é a linha económica de Zero Hedge), mas ler escritos de pessoas que não pensam como eu é passatempo muito agradável: e neste caso encontrei algo relacionado com um assunto que enche as primeiras páginas dos diários, pelo que pensei que vale a pena republicar o artigo de Lacalle (cujo original pode ser encontrado no blog do autor, Daniel Lacalle). Antes vamos ler, deixando as considerações para o depois. Boa leitura!
Venezuela. Um caso de roubo socialista organizado.
Muito tem sido escrito sobre o desastre económico perpetrado pelo regime de Maduro-Chávez na Venezuela. O seu tamanho é simplesmente difícil de igualar. Um triste exemplo global de como destruir um país rico
O erro que muitos cometem é pensar que essa tragédia foi causada por uma combinação de incompetência e loucura. E estão errados. O regime socialista venezuelano criou o maior roubo organizado da história e o fez com um plano perfeitamente elaborado.
O plano sempre foi expropriar a riqueza de todo o país para o benefício de alguns líderes políticos, através do saque, da destruição da moeda e da descapitalização da companhia estatal de petróleo.
O que aconteceu com a Venezuela não é um desastre ou uma coincidência, é o socialismo.
É importante começar expondo as mentiras do regime de propaganda:
O bloqueio inexistente. Os Estados Unidos são um dos maiores parceiros comerciais da Venezuela. O comércio entre os Estados Unidos e a Venezuela em 2018 cresceu mais de 9%. A Venezuela tem acordos comerciais bilaterais com mais de 70 países. O chavismo, como o regime de Castro em Cuba, manipula os seus seguidores definindo sanções contra membros do regime e o uso fraudulento dos fundos como “bloqueio” do país. O único bloqueio sofrido pela Venezuela é o do chavismo contra os seus cidadãos.
A desculpa inexistente dos preços do petróleo. A Venezuela é o único país da Opep em depressão económica e hiperinflação. Todos os países produtores de petróleo adaptaram as suas economias sem cair na destruição económica e na pobreza generalizada criada pelo Chavismo na Venezuela. Chávez costumava dizer “ponham o preço do petróleo em zero e a Venezuela não estará em crise”. Não foi necessário. A Venezuela desperdiçou as receitas do petróleo durante a primeira década com Chávez quando os preços do petróleo aumentaram exponencialmente e destruíram qualquer possibilidade de riqueza posterior.
O verdadeiro golpe. O único golpe é aquele que Maduro perpetrou quando manipulou uma eleição cujo resultado não foi reconhecido pela maioria dos países ocidentais, com um processo totalitário constituinte cujo resultado nem sequer é reconhecido pela empresa encarregada do sistema de votação (Smartmatic). O chavismo usou instrumentos aparentemente democráticos para silenciar e destruir a Assembleia Nacional e perpetuar Maduro no poder por meio de eleições fraudulentas.
“Não é socialismo de verdade”. Muitos dizem que a Venezuela não é um verdadeiro socialismo. Se alguma coisa tem caracterizado o regime venezuelano é que ter implementado as recomendações e as políticas socialistas à letra: um ataque sistemático contra os direitos de propriedade e a nacionalização dos meios de produção, tal como estabelecido no Plano Nacional 2007-2013: expropriação de empresas privadas, empresas estatais utilizadas para fins políticos, impressão maciça de dinheiro.
O naufrágio económico venezuelano é o maior roubo organizado da história:
Primeiro roubo: expropriação. O Centro de Difusão de Conhecimento Económico (Cedice) estima que mais de 2.500 empresas foram expropriadas pelo regime Chávez-Maduro. Destas empresas, a grande maioria está agora falida ou foi devastada pela gestão socialista. A ONG Transparencia Venezuela, no seu relatório “Propriedade do Estado na Venezuela”, descreve como “terrível” a gestão das empresas expropriadas ao usar critérios ideológicos e políticos: “Em vez de aumentar a produção, ela diminuiu”.
Segundo roubo: descapitalização do PdVSA. Em 1998, a PdVSA produzia 3.5 milhões de barris por dia, hoje não chega a 1.3 milhão. Enquanto isso, o governo multiplicou o número de funcionários, dispensando muitos excelentes engenheiros venezuelanos e enchendo a empresa de apoiantes políticos, passando dos 25.000 funcionários em 1998 para os 140.000 em 2017.
A PdVSA deixou de ser uma das empresas de petróleo mais eficientes e importantes do mundo para ser um desastre à beira da falência. Segundo as suas declarações financeiras, parece que o governo gastou até 2 biliões de Dólares em poucos anos para financiar gastos políticos, destruindo o fluxo de caixa, o orçamento e o futuro da empresa. Esses fundos desapareceram numa rede de interesses clientelistas e contas offshore dos líderes do regime. Aumento brutal dos custos, espectacular agravamento da produção e saqueio do fluxo de caixa para pagar os custos políticos levaram a empresa a aumentar a sua dívida para mais de 34 biliões de Dólares, depois de ter tido um das mais rentáveis e ter tido os melhores orçamentos do mundo .
Terceiro roubo: economia e salários. Inflação, o imposto dos pobres. Os assessores económicos do regime de Chavez reiteraram que “imprimir dinheiro para o povo não causa inflação” … A oferta de dinheiro tem aumentado exponencialmente, em 3.000% num único ano, 2018, destruindo o poder de compra da moeda.
A estratégia é simples, e é o socialismo de manual: o governo aumenta maciçamente os gastos, os subsídios e o emprego público imprimindo moeda pensando que o dinheiro vem do céu porque o governo o diz. Então, destrói a sua economia expropriando empresas, afundando a iniciativa privada e impondo preços que não cobrem o custo de produção devido à destruição do poder aquisitivo da moeda. Como tal, a economia entra numa espiral descendente, pelo que o governo continua a gastar ainda mais em termos nominais e é financiado pela impressão de notas de banco ainda mais desnecessárias, enquanto as reservas monetárias caem. A moeda se torna inútil e o governo gera hiperinflação e pobreza.
A Venezuela é hoje o país mais desigual da América Latina (ENCOVI, 2017) e um dos mais pobres. Em 2014, a extrema pobreza era de 23,6% e em 2017 era de 61,2%. A pobreza total excedeu 87% em 2017 (segundo um estudo da Universidade Central da Venezuela e da Universidade Simón Bolívar). A pontuação da liberdade económica da Venezuela de acordo com o Índice de Liberdade Económica da Heritage Foundation é de 25,9, tornando a sua economia a 179ª em termos de liberdade no Índice de 2019. Uma das economias menos livres do mundo. De acordo com o índice, “a monetização de grandes deficits públicos, combinada com a má administração da indústria petrolífera dominada pelo Estado, levou à hiperinflação e à falta de moeda estrangeira, commodities básicas e entradas industriais”. Um plano económico lançado em Agosto de 2018 incluiu a remoção de cinco zeros da moeda, uma depreciação maciça e outro aumento acentuado do salário mínimo, num caso de intervencionismo político ad hoc “
Durante a ditadura de Maduro, a inflação chegou a um milhão porcento e o FMI estima que atingirá 10.000.000 % até 2019. Ricardo Hausmann, professor da Universidade de Harvard, explicou perfeitamente a destruição da moeda através da impressão: “Quando Chávez chegou ao poder, o Dólar estava em 0,547 Bolívares (547 dos antigos). Quando Maduro chegou, tornou-se 26 Bolívares: 48 vezes mais caro. Agora, com a desvalorização, é 231.000 vezes mais caro que o valor inicial e 11.000.000 vezes mais caro de quando Chávez chegou ao poder.” Portanto, depois de alguns aumentos desnecessários de salário mínimo, esse salário mínimo é inferior a 17 Dólares por mês.
O resultado deste roubo organizado? Mais de 300 biliões de Dólares foram roubados, segundo a Assembléia Nacional, uma economia devastada e uma enorme pobreza. Socialismo de manual, os mesmos resultados de sempre.
É preciso reconhecer: Lacalle parece não gostar muito do regime venezuelano. E a opinião dele não pode ser definida como “imparcial”. No entanto podemos fazer algo: controlar os dados fornecidos e enquadra-lo no contexto correcto.
Mas antes: não, caro Lacalle, imprimir moeda não gera inflação. Gera inflação se for feito sem juízo: é claro que inundar um País num oceano de notas gera inflação e hiperinflação. Mas a impressão num mercado que tem “fome” nunca irá gerar inflação. E aqui entra em cena o Estado que não pode limitar-se a imprimir mas tem que criar as condições para que cidadãos e empresas estejam prontos para receber e logo gastar/investir o dinheiro recebido. A Venezuela tem estas condições? Não, de todo. Portanto assumir o exemplo daquele País como demonstração de que “imprimir moeda gera inflação” não é correcto.
Mas deixamos a questão das moedas e tentamos falar um pouco acerca da Venezuela, tanto para podermos ficar um pouco deprimidos. Porque falar daquele País é deprimente e terrivelmente complicado também.
As sanções
As projecções do Fundo Monetário Internacional esperam uma inflação na ordem de um milhão por cento (1.000.000 %) ao longo deste ano. Um exagero? Talvez sim. Mas é bom lembrar que já agora o País é vítima da hiperinflação, com valores próximo de 33.000 %. Depois há uma recessão do PIB que continua sem descanso desde 2013 e que em 2019 poderia outra vez com duplo valor negativo pelo quarto ano consecutivo: mais ou menos -15%; as importações diminuíram mais de 60% desde 2012; sem esquecer a falta crónica de alimentos, bens primários e medicamentos.
Toda culpa das sanções americanas? Não. Em 2014-5 os Estados Unidos estabeleceram sanções contra a Venezuela de Maduro e em 2017 o Presidente Donald Trump determinou novas sanções, entre as quais uma em particular fez falar de “bloqueio”: a proibição de entreter relacionamentos comerciais com Caracas. E o resultado? O resultado é bem “estranho” e confirma quanto afirmado por Lacalle no artigo: entre 2017 e 2018 as exportações venezuelanas para os Estados Unidos cresceram.
Segundo os dados do U.S. Census Bureau (que até deveria mostrar como as decisões da Administração funcionem…):
A Venezuela ficou em 33º lugar entre os principais parceiros comerciais dos Estados Unidos durante o actual período. Na mesma altura, há um ano, ficou em 34º lugar.
Enquanto isso, o comércio total dos EUA com o mundo aumentou para 3.51 triliões, um aumento de 9.44% em comparação com o mesmo período do ano passado. […]
As cinco principais exportações dos EUA para a Venezuela até Outubro foram as categorias de gasolina e outros combustíveis; éteres, éter-álcoois, peróxidos de álcool, etc .; milho; mercadorias de baixo valor; gases de petróleo, outros hidrocarbonetos gasosos. Isso representou 74.2% do total das exportações para a Venezuela.
O valor das cinco principais categorias das importações desde a Venezuela foram petróleo; gasolina, outros combustíveis; álcoois acíclicos; Alumínio em bruto; e produtos petrolíferos e representaram 97.22% de todas as mercadoria de entrada.
Olhando mais de perto para as exportações dos EUA para a Venezuela:
- Gasolina e outros combustíveis subiram 90.93 % em relação ao ano passado, para 3 biliões de Dólares.
- Éteres, álcoois de éter, peróxidos de álcool, etc, subiram 7.52% em relação ao ano passado, para 117.69 milhões de Dólares.
- O milho subiu 60.33% em relação ao ano passado, para 92.6 milhões de Dólares.
- Mercadorias de baixo valor subiram 36.55% em relação ao ano passado, para 91.86 milhões de Dólares.
- Gases de petróleo, outros hidrocarbonetos gasosos subiram 589.65% em relação ao ano passado, para 63.34 milhões de Dólares.
Olhando mais de perto para as importações dos EUA desde a Venezuela:
- O petróleo caiu 4.66% em relação ao ano passado, para 8.62 biliões de Dólares.
- Gasolina, outros combustíveis subiram 89.6% em comparação ao ano passado, para 1.83 bilião de Dólares.
- Os álcoois acíclicos caíram 2.2% em relação ao ano passado, para 124.82 milhões de Dólares.
- O alumínio, em bruto, caiu 41.43% em relação ao ano passado, para 89.26 milhões de Dólares.
- Os derivados de petróleo caíram 59% em relação ao ano passado, para 38.92 milhões de Dólares.
Portanto, as trocas comerciais entre EUA e Venezuela após a introdução das sanções ficaram ligeiramente reforçadas. Se o desejo for encontrar um “bloqueio” então teremos que lembrar o que aconteceu com La Havana, não com Caracas.
Génio político e excedentes
A miséria política segue-se à política: as forças de segurança mataram dezenas de pessoas, pelo menos 46 em execuções extra-judiciais só em 2017. No mesmo ano houve quase 14 mil detenções arbitrárias, a esmagadora maioria após operações anticrime nas favelas mais pobres. “A morte violenta tornou-se uma característica típica da vida venezuelana” relata The Nation, uma publicação geralmente solidária com o País sul-americano. As batalhas entre dissidentes e forças de policia criam um círculo vicioso que aumenta dum lado a intensidade dos choques, do outro o autoritarismo. “As prisões são o Inferno de Dante”, escreve o repórter (socialista) Greg Grandin: condições de vida desumanas, os motins são a norma, com dezenas de cadáveres desmembrados e decapitados em guerras entre gangues rivais. Tudo isso faz da Venezuela uma das mais sérias e dramáticas histórias económicas, políticas e sociais do nosso tempo.
Certamente não faltam sermões pastorais contra ou prós o governo de Nicolás Maduro. Segundo alguns a Venezuela é como uma espécie de enorme campo de concentração, segundo outros é o último baluarte iluminado contra o imperialismo. A realidade? Provavelmente fica no meio: a Venezuela não é uma ditadura, é um País que sofre a enésima derrota dum regime “socialista” (aspas necessárias). Mas há algo mais: como disse Paco Ignacio Taibo II, o escritor marxista sempre próximo do ex-Presidente Hugo Chávez: “O Presidente Maduro não tem nem o génio político, nem o excedente de petrodólares do seu antecessor, e o caminho dele está marcado”. Provavelmente é esta a melhor das leituras possíveis.
Ao pôr em segundo plano as diferenças entre Maduro e o seu predecessor, é difícil distinguir os factores políticos, financeiros, ideológicos e técnicos que influenciam a crise. Para o governo e os seus partidários, como vimos, todos os problemas da Venezuela seriam causados pela guerra económica desencadeada pelos Estados Unidos. As coisas não estão bem assim, mas nem tudo é propaganda. Se de “bloqueio” não é possível falar, de facto houve uma queda nos investimentos estrangeiros, o que trouxe impactos negativos tanto directos quanto indirectos.
A preocupação com o que estava a acontecer em Caracas até levou um dos seus aliados históricos, a Cuba de Castro, a colaborar secretamente com os Estados Unidos para evitar uma catástrofe. Em Julho de 2017, uma prestigiada think tank militar americana apresentou a possibilidade de Maduro ser vítima de um golpe: e Cuba não viu tão mal a ideia porque, apesar das fricções entre La Havana e Washington, o golpe teria aberto a possibilidade duma nova e inédita aliança para combater a produção e a comercialização das drogas, área na qual as altas patentes militares venezuelana estão pesadamente envolvidas ao ponto de não poder aceitar perder o poder enquanto a oposição é demasiado fraca para conseguir algo.
Mas na guerra económica há outra componente: o acumulação de alimentos e produtos básicos (como papel higiénico, farinha, pasta de dentes) por parte dos comerciantes, fabricantes e prestadores de serviços hostis ao governo, com o claro objectivo de criar um descontentamento generalizado. Não é uma lenda urbana: acontece mesmo e tinha já acontecido em 2002, quando Chávez estava prestes a ser deposto por um golpe militar. Além disso, a oposição aplica nas ruas umas tácticas incrivelmente destrutivas: alveja os prédios das instituições, bloqueia as artérias mais movimentadas, assalta as clínicas. Em Março de 2014, o governo declarou que estes ataques tinham como resultado uma redução de 60% do comércio local: não existem dados precisos mas, de acordo com o pesquisador independente Gabriel Hetland, é uma estimativa credível.
O esterco do Diabo
Cada vez mais isolado internacionalmente, sem os amigos sul-americanos que apenas dez anos atrás falavam duma aliança continental (a Argentina de Cristina Kirchner, o Brasil de Lula, a Cuba de Castro), a Venezuela é um País tecnicamente falido devido a suas dívidas em Dólares. Reaparece a atmosfera dos anos ’70, quando Richard Nixon e Henry Kissinger trabalhavam para atacar a economia no Chile do socialista Allende. O problema é que, na Venezuela, os socialistas estão a fazer de tudo para justificar essa estratégia.
O primeiro e mais grasso erro do lendário Chávez foi aquele de tornar o País demasiado dependente do petróleo. A Venezuela não será o primeiro nem o último País reduzido à fome apesar de estar deitado sobre uma camada de recursos naturais infinitos; mas neste caso realmente dói, porque no final dos anos ’90 a economia estava a funcionar muito bem. O PIB cresceu em média 3.2% durante os quatorze anos da presidência de Chávez. Então o desastre: a percentual de famílias abaixo da linha de pobreza, que segundo o Banco Mundial em 2011 era de 21%, hoje ultrapassa 80%. O que aconteceu? Chávez, uma vez no poder em 1999, fez de tudo para tornar-se um bom parceiro na Organização dos Países Exportadores de Petróleo. Naquela época, o preço estava a subir dramaticamente, atingindo um pico de 147 Dólares ao barril em Julho de 2008. Alguém lembrou-se da advertência dum dos fundadores da OPEP, o venezuelano Juan Pablo Pérez Alfonso, em 1975?
Eu chamo o petróleo “o esterco do diabo”. […] A partir daqui a dez ou vinte anos nos levará à ruína, você vai ver.
Passada uma década depois da sua ascensão ao poder, com esse dinheiro Chávez estava a fazer coisas fabulosas: mais investimento na educação, nas comunidades rurais, infra-estrutura, saúde pública; mais subsídios aos agricultores, especialmente aqueles pertencentes às minorias étnicas. O analfabetismo entrou em colapso e a mortalidade infantil também. Diversificar a economia? Qual a pressa?
Houve, é claro, um primeiro susto 2008, quando os preços do bruto tinham caído. “Culpa da crise global”, devem ter pensado em Caracas, “isso passa”. E passou. Infelizmente, depois de 2014, novo colapso. E este veio para ficar. Um desastre: um País onde o petróleo era responsável por 96% das exportações (em 1998 era 68%) estava a empobrecer enquanto os produtores agrícolas locais eram muito pouco incentivados a aumentar a produtividade, o governo estava sobrecarregado de dívidas (em moeda estrangeira) e já não conseguia distribuir subsídios. Então: toda culpa da queda do petróleo? Não. É verdade que as receitas do ouro negro fracassaram a partir de 2014, mas a economia estava em forte declínio já em 2012.
O caos do Bolivar
A dependência do petróleo é o substrato dos problemas da Venezuela, mas foi a desvalorização da moeda nos últimos anos a mandar completamente em curto-circuito o País. A explicação até é demasiado simples: em Caracas passaram muito tempo a gastar sem investir e sem pensar nas consequências. E quando o dinheiro acabou, porque os investidores estrangeiros fugiam, as receitas fiscais eram baixas, as receitas do petróleo começavam a cair e, em particular, porque ninguém já emprestava dinheiro a um governo “rebelde” (nem a China!) que não investia, então o governo começou a imprimir nova moeda: daí a desvalorização do Bolivar e a hiperinflação. Maduro pode anunciar solenemente o aumento do salário mínimo (dezenas de vezes) e até mesmo a introdução duma criptomoeda, o Petro, mas tudo tem pouca utilidade quando nem o governo aceita a sua própria moeda: o Petro, de facto, pode ser comprado só com outras criptomoedas, não com o Bolivar.
Uma explicação mais elaborada é que esses erros grosseiros se encaixam no absurdo sistema de moeda local, que tem três taxas de câmbio diferentes: uma oficial usada para importar alimentos, remédios e matérias-primas; outra flutuante, usada para cobrir todas as transacções não cobertas pelo primeiro; e, finalmente, o mercado negro, onde o Bolivar vale milhares de vezes o Dólar. Um sistema complicado que foi implementado em 2003 para defender o poder de compra dos pobres e travar a fuga de capitais. O problema é que muitos empresários trabalharam para conseguir contornar estas medidas (com a ajuda de técnicos) e os únicos que ficaram a ganhar são os burocratas ou os quartéis militares das fronteiras, em contacto com os contrabandistas (e que por isso são contrários à abolição da taxa de câmbio tripla).
Quaisquer que sejam as origens da inflação, Maduro tentou responder segundo a maneira típica dos Países comunistas dos anos ’70: com o bloco de preços. Mas isso provocou a falência das empresas privadas: até uma criança percebe que, perante uma inflação que aumenta de forma rápida, bloquear os preços significa que as empresas não conseguem recuperar os investimentos nas matérias primas e pagar os salários; e são obrigadas a vender perdendo dinheiro e vez que ganha-lo. Naquela altura, porém, o governo acusou os empreendedores privados de boicotar o Estado e procedeu a nacionalizações em massa com tanto de prisão para numerosos empresários: uma táctica bastante desajeitada, muito longe dos cuidadosos planeamentos de estilo soviético.
“Socialismo”? Nem tanto…
Então encontrámos um novo culpado? Afinal tinha razão o economista Lacalle que individua no Socialismo da Venezuela a causa primária de todas as desgraças? Vamos desfazer este mito: a Venezuela continua a ser um País decididamente capitalista. Entre 1999 e 2011, a participação da economia nas mãos dos privados aumentou de 65% para 71%. Se o petróleo é administrado pelo Estado, os empresários privados controlam a indústria farmacêutica e a maioria das importações; os meios de produção certamente não estão nas mãos de soviet e a carta constitucional de 1999 é extremamente protectora no âmbito da propriedade privada. Além disso, mesmo que nesta altura ninguém pareça estar interessado neste aspecto, a Venezuela não é um País mais autoritário do que uma Arábia Saudita, Honduras ou Birmânia (todos os aliados do Ocidente). As eleições de 2015 eleições registraram uma derrota para o governo, que não hesitou a admiti-la. Mais do que problemas de ideologia, a Venezuela parece atolada no meio dos especuladores, da corrupção, da extrema “porosidade” dos executivos; o problema principal não é um excesso de autoritarismo, mesmo que a repressão seja algo inegável.
De acordo com Atenea Jiménez Lemon, socióloga que faz parte do Red Nacional de Comuneras y Comuneros, o País está à beira da guerra civil: o famoso “poder popular”, o ideal bolivariano de incorporar os movimentos sociais nas instituições de governo, estagna e uma parte significativa da população quer estar mais envolvida nas escolhas do País. Afirma Lemon:
O governo está errado ao descrever cada oponente como um terrorista”, é preciso evitar que isso acabe como uma segunda Síria.
De acordo com Mark Weisbrot, co-diretor do Centro de Pesquisa Económica e Política, em Washington:
É cem ou mil vezes mais perigoso ser activista dos direitos humanos em Países aliados dos Estados Unidos como México, Colômbia ou Honduras mais do que na Venezuela.
Mas se a oposição se sente fortalecida por causa da cobertura internacional da crise, ainda assim não vai conseguir conquistar a maioria da população, que vislumbra por trás das invocações, da transparência, da defesa dos direitos humanos, uma via para restabelecer antigos privilégios de classe.
A Venezuela faz mais lembrar uma espécie de socialdemocracia, não um regime socialista. Uma socialdemocracia inacabada, certamente, remendada, corrompida em mil pontos, a milhares de anos luz das socialdemocracias escandinavas, caracterizada por uma forte componente autoritária, de ancestrais divisões de castas e interesses de classes (os políticos, os militares, os empresários), de velhos burocratas, de interconexões entre poder e “negócios” no mínimo duvidosos.
O tempo passa: no túnel
Mas o caso da Venezuela é interessante também porque mostra que, ao dispor duma rendimento interno contínuo e muito precioso como o petróleo, é possível exibir credenciais socialistas e obter consenso, mantendo o poder parlamentar através de eleições mais ou menos livres e até mesmo experimentar soluções radicais nesse contexto. O problema é que os bolivarianos não levaram em conta uma variável-chave: o tempo, que passa sempre e que no final apresenta a conta. Quaisquer que sejam as razões, este experimento parece ter falhado e não parece mais recuperável: temos que torcer pelo sonho romântico pseudo-socialista de Maduro ou pela esperança dum País mais livre e colorido?
A única resposta com algum sentido é: torcer para os venezuelanos. O que significa: contra Maduro e contra o auto-nomeado presidente Guaidó. Com o Presidente Maduro, a Venezuela continuaria a actual agonia e não pode ficar excluída a hipótese de que o regime possa tornar-se cada vez mais autoritário para defender uma posição particularmente precária. Com o maçon Guaidó, o perigo é que a Venezuela possa tornar-se lentamente mas inexoravelmente algo parecido com a vizinha Colômbia, de facto uma filial de Washington no Continente sul-americano. O problema é que a Revolución parece ter entrado num túnel sem saída e ninguém está interessado em retirá-la daí.
Ipse dixit.
Fontes: Banco Mundial, Wola, The Nation, El Neuvo Herald, Strategic Studies Institute, Venezuelanalysis, The Guardian, Democracy Now, CEPR, ExDiablo, The New York Times, Bloomberg, Index Mundi, Jacobin, Red Nacional de Comuneros y Comuneras, Aporrea, The Vision, Zero Hedge, Daniel Lacalle, U.S.Trade Numbers