Parte II (só para alguns)
Os erros das leaderships
É bem verdade que a guerra das sanções americanas contra Cuba e a Venezuela é uma abominação do direito internacional e rouba biliões por ano a esses dois Países. É verdade que o fedorento FMI não é capaz de exprimir uma só consoante de justiça internacional (e o mesmo acontece no caso da Palestina, da Síria, do Egipto, do Yemen, etc.). É bem verdade que o berço da democracia, a Grã-Bretanha, voltou a cuspir contra a sua história ao bloquear o ouro de Maduro numa altura tão dramática para a Venezuela.
Mas é igualmente verdade que a América Latina, pelo menos na área da leadership (mas não só, infelizmente), é uma lastima. Desde 2001/2 até ontem, a esquerda latino-americana teve na mão quase tudo para salvar o Continente e utilizar, finalmente, os seus imensos recursos e as suas moedas soberanas fora do universo do Dólar para reforçar a base social, os pobres, ou seja: 90% dos eleitores. Os EUA estavam em plena fase de retirada, tanto económica quanto militar, enquanto do outro lado do planeta explodiam as novas potências da China e da Rússia. Era a situação ideal para a América Latina recuperar, afirmar a sua plena independência. Mas o que aconteceu em vez disso? Há alguém que deseja ser minimamente honesto?
Os líderes latino-americanos adoptaram economias erradas em 100% dos casos, e com incrível tenacidade, limitaram-se a programas-esmolas para a base social mais pobre, ou seja, 90% dos cidadãos. Construíram “paróquias”, na melhor senda católica, tentando cultivar os futuros eleitores e transmitir uma ideia de “esquerda social”. Mas a América Latina não precisa de esmolas, precisa de revoluções: as bases democráticas dos vários Países devem ser reedificadas. Os líderes da esquerda não reformularam os Países a partir dos fundamentais mas puseram homens de confiança nos lugares de comando. Acontece que quando uma estrutura está podre, podemos ter a certeza de que um bom número de funcionários, mesmo que honestos e bem intencionados, ficará arrastado no meio da podridão. Não é uma questão de “política”, mas de lógica; não é “ideologia” mas “história”. Da mesma forma, acontece que quando elevamos a condição duma família pobre mas deixamos que esta possa inserir-se num tecido social podre, a família terá óptimas possibilidades de tornar-se uma “classe média podre”.
Qualquer um que não seja um partidário de má-fé (e que deveria ter acabado de ler antes, como avisado) deve ter notado que no Brasil, mas especialmente na Venezuela, o eleitorado detesta a Esquerda tal como a Direita. E a razão é deveras simples: o eleitorado detesta a corrupção e quer uma esperança para o futuro. Nomes como Maduro e Guaidò não representam nada, estão desacreditados até a morte, e só aparecem nos media por causa daquele 10% de obcecados que ainda aparecem na frente das câmaras nas ruas. O sonho socialista de Maduro? Perguntem a quem foge, quem deixa para trás casa e trabalho para procurar uma oportunidade, mesmo que isso signifique percorrer centenas de quilómetros de pé com apenas o que conseguem carregar nas costas. Ou será “propaganda dos media” também esta? O futuro democrático de Guaidó? Perguntem aos que investem tudo numa passagem aérea para recomeçar a partir do nada aqui em Portugal.
Autocrítica e refundação
Então? Então, no mundo dos sonhos, deveriam ser parados imediatamente 196 anos de ilegalidade da doutrina de Monroe. A única maneira hoje é a negociação, dado que aí a escolha realista para aquelas pessoas pobres é entre o nojento Maduro e nojento Guaidó. E como escolha não é grande coisa, admitimos.
Mas não pode haver nenhuma esperança até que a Esquerda, entendida como base social dum povo, não aceitará olhar-se para dentro e entender como conseguiu falhar em todo os cantos do mundo. Façam um exemplo, um só exemplo de País de Esquerda de sucesso: não há. E algo significara, não é? Isso é trágico porque a Esquerda, em vez de ser uma máfia e um conjunto de traidores das lutas centenárias, deveria ser uma (mas não única) esperança contra o modelo capitalista. Na América Latina podem continuar a gritar Yankee Go Home! mas, até quando a Esquerda não escolher um novo caminho, as maiorias continuarão a bater a cabeça contra a parede. Ou os Sinistros imitam o imenso acto de autocrítica de João XXIII e também retomam um verdadeiro caminho em favor dos pobres, ou não irão para lugar nenhum.
Depois haveria outra alternativa, a melhor de todas: abandonar duma vez por todas os Flautistas de Hamelin e atirar para o lixo tanto as doutrinas de Direita quanto aquelas de Esquerda. Isso acontecerá, porque a História assim ensina. Mas agora é cedo demais, admito.
Algumas considerações acerca da anormalidade brasileira
Comenta Sérgio:
É impossível para vc e qualquer outra pessoa estrangeira saber das particularidades de uma nação com população e territórios imensos e com tanta diversidade cultural e étnica. […] Nossa intenção é mostrar o que vc não tem como captar por aÍ, pois não vive o nosso dia a dia.
Obrigado Sérgio pelo comentário, óptima base para umas reflexões.
Eu não sou um conhecedor da realidade brasileira, como é óbvio. Da mesma forma que ainda estou a tentar “entrar” no cerebrinho dos portugueses (operação que exige uma boa dose de paciência). Só quem vive num País e só depois de muitos anos pode afirmar conhecer bem a realidade na qual é imerso. Tudo isso parece-me óbvio.
O Brasil é grande? Até num País pequeno como Portugal há particularidades que só os moradores locais podem conhecer. Exemplo muito banal: na zona de Mirandela os habitantes falam um dialecto que é só deles e que não é conhecido fora daquela área. Outro exemplo: o Norte do País opta sempre para votar na Direita, enquanto o Centro-Sul é tendencialmente de Esquerda. Há “particularidades” (triviais ou mais sérias) em Portugal como em qualquer País do mundo. Até nos mais pequenos: o tamanho neste caso não conta. Até num País pequeno como a Bélgica (mais ou menos a terceira parte do território português) consegue estar divididos entre Valões e Flamengos, cada um com as suas histórias, costumes e forma de pensar.
Como disse respondendo ao Sylvio, se as coisas estivessem desta forma seria impossível falar de qualquer coisa que exulasse do nosso bairro: fora do bairro é diferente, eu não sou de lá, pelo que posso não posso opinar. Como afirmei na resposta: alguém conhece a China, fala mandarim, viveu aí? Não? Então como é possível sequer exprimir uma ideia acerca daquela realidade que desconhecemos por completo? Mesmo discurso pode ser feito acerca de qualquer outro País no mundo. Não deveriam existir páginas internet que fala de assuntos internacionais, os media deveriam publicar artigos escritos apenas por pessoas que conhecem e vivem há anos no meio acerca do qual escrevem. Um exagero? Não: acham que só o Brasil tem diversidades étnicas, religiosas, linguísticas, históricas, políticas?
Então como é que há pessoas que escrevem, opinam, julgam ou simplesmente falam acerca de realidades distantes, que aparentemente não conhecem? Porque existem instrumentos para isso. Alguns destes instrumentos até têm nomes (citamos a Sociologia, a Geopolítica, a Política, mas há outras Ciências neste âmbito) e tratam o comportamento não dos indivíduos como unidades mas como massas, tratam dos chamados “sistemas”. E, no geral, o comportamento das massas (no interior dum sistema) não é uma incógnita porque as massas são formadas por animais (nós) com hábitos, que reagem aos estímulos segundo determinados padrões.
Camadas
Simplificando, a explicação pode ser entendida raciocinando por camadas: há a camada de base, formada pelos indivíduos, cada um com as suas ideias, a sua história pessoal, etc. Depois há a camada superior, a segunda, formada pelo conjunto de indivíduos: também esta camada tem a sua história (a história da comunidade) e as suas orientações. Por fim há a camada mais superior, a terceira, aquela institucional, também ela com a sua história (que pode ou não ser a mesma da comunidade) e prerrogativas. Vamos esquecer a primeira camada, a individual: na segunda e na terceira (cada uma das quais, lembramos, têm as suas particularidades) podem ser aplicadas as leis que regulam a vida dos grupos, das “massas” (e este é principal âmbito da Sociologia). E dado que tais camadas são formadas por indivíduos (animais), têm atitudes bem descodificadas, previsíveis. Não importa qual o vosso idioma, a vossa religião, a vossa ideia política, a vossa experiência: há atitudes de base comuns a todos os seres humanos, bem reflectidas no comportamento dos grupos. Se o indivíduo for imprevisível (mas muitas vezes não é), o comportamento do grupo é menos previsível porque as dinâmicas internas são claras (como bem sabia Goebbles).
Vários jornalistas estrangeiros, por exemplo, tinham previsto a vitória de Bolsonaro não porque conhecedores das particularidades brasileiras, mas porque tinham-se limitado a aplicar (de forma consciente ou não) os princípios da sociologia, da política, etc. às massas brasileiras. Outro exemplo, desta vez na Europa: todos aqui no Velho Continente sabemos que nas próximas eleições europeias (em Maio) haverá a vitória dos partidos anti-europeistas. Não é preciso ser sociólogo, nem é preciso consultar as sondagens: é só observar os acontecimentos e raciocinar. Se o Brasil tem “particularidades”, a Europa é o paraíso das diversidades (contrariamente ao Brasil, nem temos um idioma ou uma religião em comum); mas fazer a tal previsão é simples porque a massa europeia ficou condicionada por determinadas escolhas e acontecimentos no recente passado e actuará segundo um determinado padrão, premiando os movimentos anti-Europa.
É o mesmo mecanismo que fez prever a alguns a eleição de Trump, que aconteceu apesar da forte pressão dos media, todos em sentido único contrário ao futuro Presidente americano. É esta leitura das camadas que é feita pelos observadores, sejam eles jornalistas, politólogos, especialistas ou simples opinionistas. É este o trabalho de Informação Incorrecta, desde o seu primeiro dia (não tinham reparado?).
Não conheço as “particularidades” brasileiras? Não conheço e nem estou interessado nelas (por enquanto: no futuro acho que a coisa vai mudar…): não foram as “particularidades” que construíram a história do Vosso País mas os movimentos das várias camadas (aquela estadual, oligárquica, ao longo de décadas). E não esqueçam que o Brasil não é o primeiro País que apareceu no planeta: houve centenas deles antes, todos com as suas “particularidades”, dominadoras, subjugadas, escravagistas, escravos, ricos, pobres, etc. A História é como o rock: já ninguém consegue inventar algo novo.
Acham que o que se está a passar na Venezuela é “novo”? Acabamos de ver que novo não é, é algo velho, filho directo da Doutrina Monroe. Acham que a Venezuela não tem as suas “particularidades”? Com certeza que tem, as “particularidades” não são uma especialidades unicamente brasileira. Mesmo assim não é difícil prever a queda de Maduro e do pseudo-socialismo deles. Fica só a dúvida acerca do “quando” não do “se”.
Os brasileiros anormais?
Percebo que ser definido com “parte duma massa” não seja agradável para o nosso ego. Percebo que a tendência seja aquela de ver o nosso País como algo “especial”. Percebo também que seja grande a tentação de encontrar a explicação duma derrota política em algo “particular”, típico do nosso País (por exemplo: a específica influência dos media no eleitorado brasileiro). Pessoalmente me encontro numa situação privilegiada: ao entender vários idiomas, posso constatar como este “tique” da “particularidade” local seja presente em Italia, em Portugal (aliás, aqui têm até uma expressão: “Só em Portugal”), no Brasil, na Espanha e em outros Países ainda. Todos estamos genuinamente convencidos das nossas “particularidades”: a nossa comida é a melhor do mundo, as nossas praias as mais bonita, os nossos políticos os mais corruptos, a nossa história única, etc..
Pormenor curioso: o mais acérrimos defensores da “particularidade brasileira” costumam ser os esquerdos, ou seja aqueles que acreditam piamente numa ideologia que faz da leitura crítica histórica como algo “universal” e da previsibilidade das acções humanas o seu dogma.
Só que de vez um quando é preciso pactuar com a realidade e admitir que somos o que somos: animais com hábitos, com reacções pré-estabelecidas perante determinados estímulos. E isso permite a “leitura” mesmo que as distâncias sejam grandes: a corrupção é corrupção, os erros são erros independentemente da latitude.
Se o vosso blogueiro (aqui em Informação Incorrecta ou em qualquer outra página web) tentar explicar a melhor forma de tocar música sertaneja não sendo ele mesmo sertanejo, os Leitores brasileiros têm todo o direito de manda-lo calar. Mas se se limita a aplicar as receitas que funcionam em todo o mundo, Brasil incluído, e desde sempre, então façam o favor de argumentar com ele 8porque está longe de ser perfeito) com factos e não apenas com álibis de cómodo, porque “chamar-se fora” da espécie humana é um joguinho inútil, irritante e com as pernas curtas. Digo isso também em prol de vocês brasileiros: tentar passar sempre por “anormais” não é muito engraçado, não acham?
Convite
Aliás, fica já o convite para aqueles Leitores brasileiros particularmente voluntariosos que entendam listar aquelas particularidades específicas do Brasil, que não é possível encontrar em outro lugar no planeta e que tornam o Vosso País único e incompreensível para os outros seres humanos. Acho que seria uma excelente oportunidade de reflexão para todos e de aprendizagem para o blogueiro. Obrigado desde já.
Ipse dixit.