Site icon

A Venezuela no quintal

Será que o regime da Venezuela entrou na sua recta final? Não sabemos ainda. Tudo é muito convulso, mas temos que admitir: o País está acostumado a sobreviver em condições de emergência, pelo que não seria uma surpresa se Nicolas Maduro continuasse no poder.

Se o Leitor deseja ler um apelo à resistência do povo venezuelano ou uma firme condenação dos ataques norte-americanos contra o governo de Caracas, então ficará desiludido; mas pode facilmente consolar-se com uma rápida pesquisa no Google, pois artigos neste sentido não faltam. Por aqui podemos, no máximo, constatar como o reconhecimento do auto-proclamado novo Presidente, Juan Guaidó, por parte dos Estados Unidos de facto seja uma gratuita e pesada ingerência nos assuntos internos da Venezuela. Mas temos também que acrescentar que isso faz todo o sentido na óptica da “eterna” luta entre Washington e Caracas e do controle que os Estados Unidos querem exercer naquele que consideram como o “quintal” deles (o continente sul-americano).

Muito mais interessantes são as reacções de Moscovo e Pequim. Interessantes e bastante ignoradas: a maior parte das páginas online que estão a arrancar-se os cabelos por causa do golpe contra Maduro nem param para reflectir acerca do que está a acontecer. E é uma pena, porque um mínimo de atenção seria suficiente para entender que estamos perante dumas defesas de circunstância ou pouco mais.

Diário Público, hoje:

A Rússia e a Turquia manifestaram esta quinta-feira o seu apoio ao Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, contra o reconhecimento de Juan Guaidó como Presidente interino pelos Estados Unidos e outros países.

Em declarações à agência Interfax, o presidente da câmara baixa do Parlamento russo, Viacheslav Volodin, disse que Moscovo pode vir a pôr fim à sua cooperação com Caracas se Maduro for deposto.

Uhi, simplesmente aterrador: será que em Washington conseguirão dormir após uma ameaça destas? Mas a dúvida é: trata-se duma ameaça ou duma promessa para deliciar as petrolíferas norte-americanas?

Ainda melhor a tomada de posição da Turquia:

No mesmo sentido, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, telefonou a Nicolás Maduro e manifestou-lhe o seu apoio.

“O nosso Presidente ligou ao Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e disse-lhe: ‘Maduro, meu irmão! Mantém-te firme, nós apoiamos-te!'”, disse o porta-voz de Erdogan, Ibrahim Kalin, no Twitter.

Comovente. Em Washington tremem os pulsos.

Página online de Terra:

A Rússia alertou os Estados Unidos nesta quinta-feira (24) a não intervir militarmente na Venezuela, dizendo que uma medida desse tipo desencadearia um cenário catastrófico, segundo a agência de notícias “Interfax”.

O ponto é que aos EUA nem passa pela cabeça de enviar tropas para a Venezuela: seria um erro crasso, por múltiplas razões. E os russos bem sabem disso. Pelo que: ameaças vazias.

Conclusão da China. La Repubblica:

Pequim convidou os EUA a não interferir na actual situação da Venezuela, opondo-se a qualquer intervenção externa no País sul-americano. “Todas as partes envolvidas devem permanecer racionais e equilibradas”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Hua Chunying, segundo o qual a prioridade deve ser a procura de “uma solução política para a questão venezuelana com um diálogo pacífico no marco da Constituição da Venezuela “.

Resumindo: um firme apoio ao regime de Maduro, mas um apoio feito só de palavras e que, pelo menos no caso da possível interrupção da cooperação entre Moscovo e Caracas, pode ser lido de várias formas. Não há aqui navios da Frota Vermelha que se aproximam às costas sul-americanas, não há baterias de S-300 camufladas na vegetação. Há palavras que em nada mudam os equilíbrios internos, presentes e futuros, de Venezuela.

O quintal

É impossível não observar a diferença de atitude de Moscovo entre um Assad ameaçado por Washington, Tel Aviv e Isis dum lado e um Maduro que tenta sobreviver na América do Sul do outro. Podemos afirmar que estas são duas situações profundamente diferentes, e são de facto: a Síria fica no “quintal” da Rússia, deixar instalar um regime pró-ocidental a poucos quilómetros das suas fronteiras teria sido uma ameaça demasiado grave aos olhos de Moscovo. Lógico o uso de meios e homens para travar a avançada muçulmana “radical” e aquela sionista-ocidental, não apenas defendendo mas até libertando e restabelecendo os confins e a plena soberania síria.

E a Venezuela? O problema está tudo no tal “quintal”: a América do Sul é o “quintal” de Washington, onde Moscovo não intervém de forma directa. A única vez que isso aconteceu foi durante a Crise dos mísseis de Cuba, em 1962. O susto foi tão grande que serviu como lição para todos: nunca mais a Rússia tentou uma intervenção directa no continente americano. E também os EUA utilizam os pés de lã em territórios demasiado perto das fronteiras russas: alguém ouviu falar de projectos para instalar mísseis balísticos no Afeganistão?

Há regras não escritas que determinam a extensão das respectivas zonas de influências. É por esta razão que o destino da Venezuela está já estabelecido: pode demorar alguns anos, com sorte algumas décadas, mas Caracas voltará para as fileiras dos “meninos bem comportados” aos olhos de Washington. Até lá, terá que sobreviver com uma vida perigosa, entre constantes ameaças. Cuba resistiu mais de 50 anos? Sim, mas isso teve um custo muito elevado; e, em qualquer caso, no final foi obrigada a capitular.

Pergunta: mas realmente acham que uma Rússia ou uma China estariam dispostas a arriscar uma Terceira Guerra Mundial para defender um modelo que elas mesmas já abandonaram nos factos?

As esperanças da América do Sul

Significa isso que não há esperança para a América do Sul? Terá que ficar sempre e só como “quintal” de Washington? Absolutamente não. Significa outra coisa: se o desejo da América do Sul não for continuar a ser um pião nas mãos de dois blocos (ou três ao contar a China), então tem que encontrar o seu próprio caminho. E este não pode ser feito de velhas ideologias importadas, mas deve ser um movimento autenticamente sul-americano, capaz de estabelecer uma identidade comum e abranger não apenas um território limitado (como o enclave socialista da Venezuela) mas boa parte do Continente.

Inútil iludir-se: não vai ser nada simples, não vai ser nada rápido: Washington sempre tentará sufocar qualquer movimento realmente independentista. Mas os Estados Unidos estão numa fase de franca decadência, o que abre novas perspectivas para o futuro.

Paradoxalmente o problema maior reside na América do Sul: qual movimento verdadeiramente autóctone é possível encontrar? O anacrónico socialismo de Maduro? O patético esquerdismo de Lula? Isso para não falar dum caso-limite como a Colômbia, nos factos uma extensão do território geridos por Washington. Sobram um Brasil e uma Argentina que acabam de voltar para o coro dos tais “meninos bem comportados”. Mais interessante parece ser a experiência de Evo Morales, apesar de ainda ser demasiado avermelhado: todavia o seu esforço na recuperação e na defesa dos princípios indígenas pode constituir uma base fundamental para o futuro.

No caso do Brasil, o maior País da América Latina e origem de muitos Leitores, continuo a ficar pasmado com a energia utilizada para individuar os culpados (Estados Unidos, israel, até a época colonial de Portugal, faltam só os antigos Egípcios) e os bem poucos esforços para desmarcar-se dum passado que é apenas isso (passado, que já foi) e para procurar uma nova linguagem, realmente sul-americana, que consiga ir além das velhas ideologias e propor algo autêntico. Mais uma vez: não que seja simples, mas é a única saída possível.

Observando a situação a partir do Velho Continente, parece não haver muito mais na América do Sul além dum “Capitalismo” teleguiado por Washington e um estéril anti-imperialismo de marca vetero-socialista. Tudo demasiado “velho” para poder constituir a base duma Nova América do Sul. Mas esta é a limitada visão dum europeu, para a qual apresento desde já as desculpas: talvez a realidade seja bem diferente. Neste caso, apelo aos Leitores para que aportem novos e mais confiáveis elementos, correcto?

 

Ipse dixit.

Fontes: No texto.