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Fantástico: morangos mais doces com a edição genética

Nota prévia: para simplificar o discurso, vamos aqui distinguir entre “produtos geneticamente modificados” entendidos como os “velhos” OGM e os “produtos modificados com a técnica do gene editing (edição genética)”, que vamos (erroneamente) chamar de “OEM”. Na parte final do artigo fica uma explicação mais técnica.

Monsanto tenta não dar nas vistas: esconde-se atrás do logo da Bayer e a partir daí o líder mundial das sementes geneticamente modificadas, e dono do herbicida glifosato (cancerígeno) [wiki]Roundup[/wiki], tenta patentear fruta geneticamente modificada ([wiki title=”Organismos geneticamente modificados” base=”PT”]OGM[/wiki]) usando a controversa modalidade da modificação genética (gene editing). A beleza da coisa, aos olhos do colosso Monsanto-Bayer, é que nos Estados Unidos, de acordo com uma recente decisão do Departamento de Agricultura dos EUA, os produtos agrícolas OEM não precisam de testes especiais e independentes. Sim, leram bem: a fruta OEM é tratada como se de produto natural se tratasse.

Passo atrás: em 2018, enquanto a empresa era inundada por acções judiciais contra o uso do cancerígeno Roundup, a Monsanto investiu 125 milhões de Dólares numa pequena empresa de modificação genética chamada Pairwise. O ex-vice-presidente da Global Biotechnology da Monsanto, Tom Adams, assumiu o cargo de director administrativo da Pairwise: este é o início do projecto de modificação genética. Num comunicado à imprensa, a Pairwise afirma utilizar a controversa tecnologia de modificação dos genes, chamada CRISPR, para criar produtos geneticamente modificados (OEM). Aparentemente, entre os seus objectivos está a produção de uma variedade super-doce de morangos ou de maçãs, exactamente o que a nossa população, já saturada com açúcares, não precisa.

Até poucos tempo atrás a justificação era que os produtos geneticamente modificados teriam “resolvido o problema da fome no mundo”, hoje até esta penosa desculpa foi abandonada. Ou quase: o fundador da Pairwise, Keith Joung, afirma que a fruta geneticamente modificada com a técnica [wiki]CRISPR[/wiki] (os OEM) “vai acelerar o processo de inovação, absolutamente necessário para alimentar uma população em crescimento e que enfrenta o desafio da mudança climática”. Portanto: luta à fome no mundo e às alterações climáticas com os morangos mais doces. Hasta la victoria siempre.

Tudo isso com a bênção do [wiki title=”Departamento de Agricultura dos Estados Unidos”]Departamento de Agricultura dos EUA[/wiki] que determinou que o CRISPR e os outros novos sistemas de modificação genética dos alimentos não exigem controles específicos ou testes independentes. O secretário da organização, Sonny Perdue, anunciou no ano passado a confirmação dum regulamento da era Obama que isentava os OEM de exames especiais. Num comunicado à imprensa, Purdue afirmou que o seu Departamento não regulará os cultivadores de plantas que usam técnicas de modificação de genes que não requerem a introdução de genes de outras espécies, ou de “plantas que poderiam em qualquer caso ter sido desenvolvidas através das técnicas de selecção tradicionais”. E acrescentou que “o Departamento procura promover a inovação apenas se não houver riscos envolvidos”. O problema é mesmo este: nenhum teste científico abrangente foi realizado para mostrar que os OEM não apresentam riscos.

Aqui na velha Europa estamos (um pouco) mais tranquilos: nem 2018 a [wiki title=”Tribunal de Justiça da União Europeia”]Corte Europeia de Justiça[/wiki], num momento de loucura, decidiu que os OEM devem ser tratados como organismos geneticamente modificados (OGM), portanto sujeitos à regulamentação no território europeu. Decisão que provocou os gritos de protesto da Monsanto-Bayer, como é óbvio. Isso torna os Estados Unidos o ponto focal dos desenvolvimentos relativos à modificação genética na agricultura, uma má notícia para uma população que desde 1992 (ordem executiva do pelo então Presidente G.H.W. Bush) alimenta-se de uma dieta altamente saturada de produtos transgénicos:, soja, arroz, milho, batata, beterraba sacarina e outros produtos, até a insulina transgénica para tratamento do diabetes.

Riscos?

O recente interesse sobre o biofísico chinês [wiki]He Jiankui[/wiki], que declarou ter editado com sucesso um embrião humano para criar um clone, atraiu a atenção do mundo acerca duma tecnologia de manipulação genética relativamente desconhecida, chamada de “modificação do genoma”. Apesar da possível confusão entre organismos geneticamente modificados (OGM) e organismos geneticamente editados (OEM), as duas coisas não devem ser confundidas: a tecnologia CRISPR-Cas9, que transformou o panorama da edição genética, tem apenas cinco anos de vida. E isso significa que os riscos não são ainda totalmente compreendidos: num estudo publicado em Maio de 2017 pela revista [wiki]Nature[/wiki], alguns pesquisadores relataram ter sido perturbados por terem descoberto um número inesperadamente alto de mutações secundárias num experimento de edição genética realizado em roedores. Em outras palavras: resultados que não tinham sido previstos.

E foi exactamente isso que tinha feito He Jiankui quando, em Dezembro de 2018, anunciou ter usado a CRISPR para alterar o genoma de dois embriões humanos no útero de uma mulher: mudar genes num embrião significa mudar genes em todas as células. Se o método for bem sucedido, o bebé terá sofrido alterações que serão herdadas por toda a sua progênie: e com resultados imprevisíveis, se os estudos em ratos forem indicativos. As autoridades chinesas prenderam He, alguns sugerem que pode ter sido condenado à morte, mas o problema fica: as implicações da modificação genética com a tecnologia CRISPR são tão severas que é necessária extrema cautela antes de permitir que se espalhe para o mercado mundial. Infelizmente, parece estar a acontecer o oposto: kits para a edição de genes podem ser comprados por qualquer pessoa na Internet, sem ter que fornecer provas de qualificações científicas, e por um preço baixo. Os pedidos de uma moratória sobre a edição dos genes, pelo menos até a tecnologia ser confirmada ou refutada, caem no vazio. Por aqui podemos lembrar que o director dos Serviços de Inteligência do Presidente Obama, James Clapper, chegou a incorporar as técnicas de modificação do genoma na lista de “armas de destruição em massa”. Tudo é possível.

Já hoje não temos a certeza dos efeitos no longo prazo do OGM: cedo nos EUA (se as regras não serão mudadas) será possível adquirir no supermercado morangos OEM cujas consequências podem ser ainda mais nefastas.

Um pouco de técnica: OGM e OEM, mesma coisa

Até aqui temos falado de “clássicos OGM” e de “novos OEM”: mas agora tentamos ser um pouco mais precisos.

A engenharia genética pode ser realizada usando várias técnicas. Há uma série de etapas que são seguidas antes que um organismo geneticamente modificado (OGM) seja criado: os engenheiros genéticos devem primeiro escolher o gene que desejam inserir, modificar ou excluir. O gene deve então ser isolado e incorporado, junto com outros elementos genéticos, num [wiki title=”Vetor (DNA)”]vector[/wiki] adequado: este vector é então usado para inserir o gene no organismo hospedeiro, criando assim o OGM.

Neste aspecto não há grandes novidades: os humanos têm manipulado a genética das plantas e dos animais desde as primeiras tentativas de domesticação, por volta de 12.000 a.C. Tecnicamente falando, uma [wiki title=”Mula”]mula[/wiki] é um OGM. Claro que a diferença entre a antiga manipulação e a nova é enorme: antes tudo era feito de forma natural e afinal a última palavra era da Natureza que podia permitir ou não a recombinação dos genes e o nascimento dum organismo OGM. Hoje, pelo contrário, o processo é desenvolvido em laboratório e são os cientistas que determinam quais genes devem ser recombinados e qual o desejado resultado final da operação. Isso porque, após a descoberta dos genes por [wiki]Gregor Mendel[/wiki] e a prova de que estes eram as ferramentas que determinavam a herança das característica duma planta ou dum animal, foram desenvolvidos métodos para permitir a manipulação directa.

As técnicas tradicionais de manipulação genética previam a inserção dos genes de forma aleatória no genoma dos hospedeiros. Os avanços permitiram que os genes fossem inseridos em locais específicos dentro dum genoma, o que em teoria deveria reduzir os efeitos colaterais não intencionais da inserção aleatória. A edição genética (cujos resultados são aqueles que no artigo chamámos impropriamente de OEM) é o mais recente tipo de engenharia genética no qual o DNA é inserido, apagado, modificado ou substituído no genoma de um organismo vivo: portanto, ao contrário das técnicas iniciais de engenharia genética, a edição do genoma tem como alvo as inserções em locais específicos.

A citada técnica CRISPR, a mesma utilizada pelo biólogo chinês Jiankui He na clonagem humana, faz parte doeste ramo mais recente de engenharia genética. Como explica a sábia Wikipedia:

O sistema CRISPR (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), ou seja, Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas, consiste em pequenas porções do DNA bacteriano compostas por repetições de nucleotídeos. Cada uma dessas repetições encontra-se adjacente a um “protoespaçador” (“espaçador de DNA”), que corresponde a uma região não-codificante inserida no DNA bacteriano após o contato com genomas invasores provenientes de bacteriófagos ou plasmídeos. A transcrição do locus CRISPR resulta em pequenos fragmentos de RNA com capacidade de desempenhar o reconhecimento de um DNA exógeno específico e atuar como um guia de modo a orientar a nuclease Cas, que irá promover a clivagem e consequente eliminação do DNA invasor caso este entre novamente em contato com a bactéria, atuando como importante mecanismo de defesa contra DNAs invasores.

O CRISPR é frequentemente usado como um termo geral para se referir à edição genômica, mas é o acoplamento do CRISPR e do sistema Cas9 que permite a deleção seletiva do DNA

Resumindo: também aqueles definidos no artigo como OEM são na verdade OGM, Organismos Geneticamente Modificados, simplesmente desfrutam uma técnica de manipulação mais avançada e mais precisa.

 

Ipse dixit.

Relacionados:

Fontes: Business Insider, The Packer, The Progressive Farmer, Nature