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O Grande Discurso de início do ano 2019

A ética do trabalho é a ética dos escravos.

[wiki title=”Bertrand Arthur William Russell”]Bertrand Russell[/wiki]

 

Uhi que sono… e para começar o ano, nada melhor de que falar dum assunto que já foi tratado mais do que uma vez. Os primeiros sinais do Alzheimer? Não, a vontade de realçar o que realmente é importante, algo que condiciona a nossa vida toda e que por isso deveria ser um assunto central sempre: o trabalho. Não o trabalho no sentido geral, mas aquele particular tipo de trabalho que tomou forma, em particular, nos últimos trezentos anos: o trabalho-escravidão. Que depois é o trabalho da maior parte dos seres humanos. Portanto, este é um discurso para toda a espécie humana. Vamos com o Grande Discurso de Início de Ano.

Grande Discurso do Início de Ano

Max aproxima-se da janela. A rua está repleta de cidadãos entusiastas para ouvir o Grande Discurso. Os polícias tentam manter a ordem enquanto os gatos tomam lugar debaixo dos carros, as gaivotas nos telhados, os jornalistas de pé.

Povo! Do que se fala hoje? Da necessidade duma renovação do sistema de emprego baseado numa certa ética de trabalho. Por exemplo, com a introdução de um regime [wiki title=”Meritocracia”]meritocrático[/wiki], onde seria premiado “quem faz mais”, “quem trabalha melhor”. O que, de facto, não seria senão um novo regime, pior do que o actual. Não porque a meritocracia em si seja coisa má, mas porque, num sistema produtivo tecnocrático regido por potentados monetários e financeiros qual é o nosso, o novo regime significaria apenas a total submissão aos ditames da produção.

Mas eu digo: este é apenas um ponto secundário, uma variante da questão bem mais importante. O problema é perguntar a nos mesmos por qual razão existem esses cadáveres que trotam ao ritmo do mito do bem-estar profissional, dos avanços na carreira, num regime sob cujas garras apodrecemos durante séculos. Como é possível sentir-se entusiasmados e lisonjeados com as perspectivas de uma carreira baseada na obediência, na submissão, nas horas extras, deslumbrados com a hipótese dum jantar com o chefe ou de mais um feijões no salário? Vocês sentem-se entusiasmados ou lisonjeados?

“Nãooooooooooooo!!!!” Responde o público numa voz só!

Povo! O homem, originalmente, é outra coisa. O seu utilizo compulsório e diário (sob pena da fome) na linha de montagem, fechado num escritório, sepultado numa mina, sempre e só ao serviço do dinheiro é uma monstruosidade que deveria ser perseguida com a pena da prisão.

Cada minuto da nossa vida posto ao serviço de alguém deveria valer… quanto? Não há preço: a vida é só uma, passa depressa, cada segundo escorrido entre os nossos dedos nunca voltará e não pode ser posto à venda. Independentemente da tarefa executada. O homem deve ter a possibilidade de poder viver com dignidade sem trabalhar, pelo menos no sentido canónico do termo. Se ele assim o desejar, deveria ter a oportunidade de poder lidar com qualquer tipo de actividade, mas não para sobreviver, não para produzir uma riqueza da qual nunca poderá gozar. O trabalho canonicamente entendido (aquele hoje feito de escravidão) deveria permanecer uma mera vocação pessoal; não é uma necessidade vital.

Aplausos de cinco minutos. Os trabalhadores erguem o punho, os gatos a cauda, as gaivotas a patinha direita e algumas caem.

Povo, eu pergunto: numa sociedade assim, sem trabalho obrigatório, nada funcionaria? Ninguém trabalharia? Atenção: este não é um Grande Discurso contra o trabalho no sentido genérico, mas contra o trabalho-escravidão. Ter uma actividade, projectar, procurar, construir: tudo isso faz parte da nossa natureza, o homem necessita disso. Experimentem passar uma semana sem fazer nada. Ou até um mês, um ano. Aborrecido, não é? Muito aborrecido, quase impossível de suportar: porque o homem precisa de fazer algo, precisa duma ocupação, precisa de trabalhar para realizar os seus desejos. Mas estes devem ser os seus desejos, os desejos da comunidade à qual o homem pertence ou os desejos nascidos para matar a grande sede da curiosidade. Não podem ser os desejos do capital. Não acaso o engano comunista previa como sociedade ideal um lugar onde o trabalho não era obrigação mas vocação: nisso, e apenas nisso, o Comunismo não mentiu, aquela seria a condição ideal do ser humano. Ideal e possível, ainda mais hoje, na era tecnológica, do que quando foi pensada, no XIX século.

O entusiasmo aumenta. A polícia tem cada vez mais dificuldade em manter a ordem. As pessoas choram ao ouvir tamanhas palavras!

Meu querido povo! Hoje as pessoas estão tão convencidas de que “o trabalho é vida” e que deve-se trabalhar duro, ao ponto de ignorarem totalmente o facto de que a escravidão do trabalho é funcional para os únicos verdadeiros parasitas que estão no topo da pirâmide. Ignoram que este sistema é simplesmente o pior, não o único, e que é mantido em função para propósitos específicos.

Em verdade, em verdade vos digo que as pessoas estão tão embutidas de soro publicitário e de propaganda que nem a mais pequena dúvida consegue aproximar-se delas. Dúvida que na realidade é um produto permitido e igualmente manipulado pela mesma propaganda, fisiologicamente vital para o próprio sistema. Tal dúvida será sempre direcionada no sentido errado, não para uma verdadeira alternativa mas para confirmar o sistema do trabalho-escravidão: eis o nascimento do engano comunista, que promete o paraíso mas entretanto obriga a apodrecer nas linhas de montagem, agora e no futuro Socialismo. Assim, a dúvida será sempre uma peça ilusória do mesmo mosaico que persuade as mentes sobre uma alegada liberdade de crítica e pensamento. Porque, como disse [wiki title=”Johann Wolfgang von Goethe”]Goethe[/wiki], “não há pior escravo do que alguém que está falsamente convencido de ser livre”.

Parte o coro dos trabalhadores: “Johann Wolfgang von Goethe!, Johann Wolfgang von Goethe!”

Este processo é fundado (e é possível) graças a outras aberrações secularizadas. Algumas estratificações mentais ancestrais (que de alguma forma pré-ordenam aquele que Jung chamaria de “inconsciente coletivo”) permitem essa [wiki title=”Némesis (mitologia)”]nêmesis[/wiki] enganosa: tradição, folclore, religiões, superstição, dogmas, autoridade, política e assim por diante.

Portanto, não falamos aqui de viver numa ilusão global, não é isso que queremos tratar agora. Aqui é bom entender, ou pelo menos vislumbrar, o alcance do engano global que, de forma mais ou menos consciente (mas sempre culpada), está subjacente.

Um arrepio de indignação percorre a multidão. Há quem deseje partir para caçar os patrões, quem ameace partir tudo e quem vende bolas de berlim em ofertas: duas por 1 Euro, 1.50 Euros no caso de recheio com chocolate.

Observa o meu ídolo, [wiki]Plotino[/wiki], nas Enéadas:

Como nas cenas do teatro, também devemos contemplar na vida os massacres, os mortos, a conquista e o saque das cidades como se fossem todas mudanças de cenário e de costumes, lamentações e gemidos teatrais. (…) Tais são as acções do homem que sabe viver apenas uma vida inferior e exterior e não sabe que as suas lágrimas e os seus problemas são um puro jogo. (…) Mas quem não sabe o que é sério, leva os seus jogos a sério e ele mesmo é um brinquedo.

Plotino escrevia isso no 3º século depois de Cristo. Passaram 1.800 anos e ainda estamos a falar das mesmas coisas. Sempre as mesmas coisas. E, por esquisito que possa parecer, hoje há mais: além da miséria existencial do homem comum, que é incapaz de intuir o seu valor potencial (que é enorme!), há um jogo perverso, outro engano oculto, muito mais vil e medíocre do que o primeiro.

Passa um avião com a escrita “Plotino és o maior!”. Lindas raparigas e mulheres atiram os seus números de telemóvel à janela. Max guarda todos os números.

Já não somos brinquedos de um jogo universal, mas sim os resíduos de um grande brinquedo montado por alguém. As mentes perversas e pervertidas têm vindo a apresentar o trabalho-escravidão como um dever, um dom, um fim, uma fortuna. O trabalho-escravidão, a pesquisa espasmódica do local de trabalho, do emprego sob o mito do sucesso e do bem-estar, tornou-se um dogma. Ninguém hoje duvida do trabalho: podemos dizer que o trabalho simplesmente “é”, tal como Deus. Uma actividade que os nossos antepassados nas cavernas praticavam ao longo de poucas horas durante a semana, hoje tornou-se a essência da existência, algo que subtrai metade do nosso dia, de cada nosso dia.

As pessoas têm de ser ocupadas, o tempo das suas vidas apenas pode ser espremido numa trabalho que distrai do pensamento, do questionar, do encontrar-se, do entender que, enquanto homens, somos potenciais obras-primas; e que suar para a sobrevivência, o poder apenas cheirar o bem estar sem nunca alcança-lo, constitui a exacta negação daquela maravilha em potencial. É necessário fazer crer que aquele suor é um privilégio que enobrece a natureza humana (arbeit macht frei), que atende às nossas necessidades e àquelas da nossa família.

Acabaram as bolas de berlim e alguém entrou em crise hiperglicémica. Correm as primeiras ambulâncias.

Ninguém faz greve para reivindicar o direito humano de viver sem trabalhar como um escravo. E nenhuma das grandes ideologias políticas, de Esquerda ou de Direita, explica que aquele seria o único válido motivo para o qual lutar. Faz-se greve para pedir que haja mais trabalho, mais patrões. O trabalhador sem ocupação fica perdido, entra em pânico, necessita desesperadamente dum dono, de alguém que possa dar-lhe ordens, fadiga, suor e uma esmola no final do mês. Somos animais de carga que reclamam a carga e o jugo.

“Ohhhhhhh!!!”

Tudo isso é apenas uma reacção perante a perspecitva de ficar sem dinheiro? Isso é aquilo que gostamos de contar um ao outro, pois a verdade é um pouco diferente: a verdade é que estamos formatados e nem conseguimos conceber uma vida sem trabalho-escravidão. É por esta razão que o tema não é tratado: já não faz parte do nosso esquema mental.

Querem uma demonstração? Aqui está: qual o grande medo do trabalhador-escravo hoje? Ser substituído pelas máquinas. Isso é, há o real perigo de não ter que perder a saúde trabalhando na condição de escravo, porque os avanços tecnológicos permitem que boa parte das funções sejam desenvolvidas por máquinas. Trabalho monótonos, repetitivos, alienantes, psicologicamente e fisicamente destrutivos podem ser desenvolvidos por robot: e isso iria libertar grandes massas de trabalhadores, iria melhorar a saúde dele, a qualidade de vida deles e das famílias deles. O que faz o trabalhador perante esta perspectiva? Festeja o fim da escravidão? Reúne-se com outros próximos libertos para projectar um novo estilo de vida? Não. Com a ajuda dos sindicatos (e não por mero acaso) manifesta, luta, grita contra as “más máquinas”, contra o patrão “ganancioso” que deseja retirar-lhe a escravidão. Porque a verdade é só uma e sempre a mesma: somos animais de carga que reclamam a carga e o jugo.

Choros compulsivos: a multidão tomou consciência da sua própria natureza de escrava. Cartazes com o logo de Informação Incorrecta são erguidos. Voam rosas na direcção da janela e Max fica aos cuidados da Cruz Vermelha por causa das picadas. O Grande Discurso é interrompido durante cinco minutos.

“O trabalho enobrece” é dito. Não: o trabalho-escravidão debilita, cansa, adoece, mata. E tudo começa desde a infância. A escola nada mais é do que um campo de concentração educacional onde futuros autómatos são reunidos para serem doutrinados: qualquer docente com dois dedos de cérebro sabe disso. Hoje as escolas, as universidades, levam as criaturas em excursão às fábricas: mostram “o que é a vida”, como é que o mundo tem que funcionar. Tentam logo inserir o ser humano no mundo anti-ético da produção de massa para que a predação possa continuar.

E enquanto isso, o mundo produz três vezes o que é preciso. Três vezes. Temos uma produção capaz de sustentar três planetas. E, mesmo assim, temos que continuar a trabalhar, para não pensar e produzir dívida. Setenta porcento da produção mundial de cereais é usada para engordar a carne medicada de ovinos e bovinos, que por sua vez vai apodrecer nas carnes envenenadas dos bípedes. Metade desse 70% seria suficiente para evitar a fome no mundo. Mas não, o sistema utiliza os cereais não para nutrir quem tem fome mas para nutrir animais que serão mortos. Conseguem ver o lado doentio da coisa? Depois passeias nas ruas e alguém se aproxima pedindo uma doação para as crianças que sofrem a fome. Conseguem ver o lado doentio e hipócrita?

“Mortes a quem desperdiça a comida! Morte às crianças que querem dinheiro!”

Não, espera meu povo: a culpa não é das crianças que sofrem de verdade, a culpa é de quem pede dinheiro… nem isso… a culpa é de quem mantém este sistema hipócrita que faz morrer as crianças de fome enquanto engorda animais que serão mortos!

“Morte a quem mantém este sistema hipócrita que faz morrer as crianças de fome enquanto engorda animais que serão mortos!”

Isso. Mas, meu caro povo, o que não é contado aos escravos (e os escravos somos nós) é que hoje já não trabalhamos para produzir materiais mas para produzir dívida. Trabalhamos para ser submetidos ao pior regime de escravidão monetária já concebido, em favor e poucos. À escravidão do trabalho foi acrescentada a escravidão do dinheiro e do consumo compulsivo: produzimos não por necessidade mas unicamente para poder consumir e assim voltar a produzir. A verdade é que nada falta aqui no Ocidente: não há falta de telemóveis, de carros, de máquinas lava-roupa, frigoríficos, de roupa, de medicamentos. Aliás, somos obrigados a produzir máquinas defeituosas para que, com o mecanismo da obsolescência programada, seja criada a procura. Isso é patológico, a nossa sociedade é patológica.

O entusiasmo está ao rubro. As pessoas partem os smartphones atirando-os para o chão. O server de Informação Incorrecta deixa de funcionar por excesso de acessos. O server de Informaçaõ Incorrecta pede que Max compre já o upgrade pagando com PayPal. Max oferece a última bola de berlim. O server recusa. Max oferece a última bola de berlim mais uns quantos smartphones partidos. O server recusa. Max paga o upgrade e a multidão festeja.

Milhões de pessoas pedem dinheiro sob forma de empréstimos e ficam mergulhadas até o pescoço de dívida que não existe, porque na verdade ninguém deu-lhe nada: pediram dinheiro e em troca obtiveram uns dígitos no ecrã. Mas aqueles dígitos são a condenação porque significam “juros”: e “juros” é o termo legal para indicar a usura. A ideia é não pagar, não devolver aqueles dígitos vazios? Então seria a Justiça a intervir porque o réu é processável segundo a lei. Produtos e bens adquiridos com décadas de duro trabalho, talvez na posse da família por gerações e com um valor sentimental inestimável, vão a engordar a enorme riqueza dos poucos. Ainda temos um pouco de ouro debaixo do colchão? Nada que uma crise não possa resolver: eis que florescem as lojas “compro ouro” para raspar o fundo do barril, aquela migalha de riqueza que o infame cidadão continuava a ocultar.

Basicamente, trata-se de drenar todos os recursos das pessoas ao longo das suas vidas; aquelas mesmas pessoas que já perdem a saúde por causa do dogma do trabalho-escravidão. Dogma que, como é óbvio, engordas os poucos no topo da pirâmide. Tudo com a tácita conivência de governos e dos seus representantes, “livremente eleitos pelo povo”, autênticos fantoches do sistema, cobradores de dívidas em nome de cachorros gordos internacionais.

Não é por acaso que [wiki]Thomas Jefferson[/wiki] disse:

Acredito sinceramente que as instituições bancárias com poder de criar e emitir dinheiro são mais perigosas para a liberdade que as armas

Sim, caro Thomas, o dinheiro é uma arma. Mas o dinheiro sozinho não é suficiente. Uma pessoa com o dinheiro para comer e sem um trabalho tem muito tempo para pensar. E o pensamento é perigoso, muito mais do que o dinheiro: parar para observar o panorama ao longo duns tempos faz nascer ideias. O que é mau, dependendo do ponto de vista. Portanto: é preciso ocupar o tempo e oferecer as respostas.

À janela aparece Leonardo. A multidão está no grau mais elevado do Nirvana. Ao ver o verdadeiro cérebro do blog, alguns desmaiam. Leo diz: “Bau!” e a multidão repete em coro: “Bau!”.

Então, se estivermos ocupados para alcançar os nossos objectivos de trabalho, porque gastar mais tempo com as perguntas? Já temos todas as respostas, oferecidas para que o nosso pobre cerebrinho não tenha que sofrer martirizando os poucos neurónios com ainda alguns sinais de actividade. A essência do escravo-homem está no trabalho-escravidão, não nas perguntas: está no identificar-se com o trabalho, em pensar como o trabalho, em medir e avaliar com o trabalho. Para atingir esse autêntico grau de consonância com o fado do homem, o homem só tem que trabalhar, não menos de que cinco ou seis dias por semana.

Sobra um dia para as compras, onde temos o privilegio de adquirir comida envenenada e gastar uns trocos em coisas que cedo irão avariar-se: e sabemos que irão avariar-se porque somos nós que as produzimos já defeituosas! Sobra o único dia de ar ao qual realmente temos direito, útil para inundar estádios ou outras lojas. Fartos de compras e sem vontade para sair? Não há problema: fiquem em casa e liguem a televisão. É só carregar na tecla “On” para saber toda a verdade, só a verdade, nada mais do que a verdade, juro.

Um comprimido para adormecer substitui o são ritual que ao longo de milénios assegurou a descendência; depois é só carregar o despertador e deixar que o [wiki title=”Ansiolítico”]ansiolítico[/wiki] faça o seu trabalho. Amanhã será outro dia do único e verdadeiro mistério eucarístico que alguma vez existiu: a carne, a nossa carne, torna-se pão, o sangue torna-se vinho. Libação para os poucos, trabalho-escravidão para os muitos.

Povo: não terá chegado o tempo para mudar? Então que mudança seja!

Max observa as ruas desertas. Pergunta ao Leo: “Mas para onde foram todos?”. “Hoje começam os saldos. Queres a última bola de berlim?”.

 

Ipse dixit.