Site icon

O verdadeiro Bush

Com a morte do ex-Presidente dos Estados Unidos, [wiki]George Herbert Walker Bush[/wiki] (1924-2018), aparecem comentários jornalísticos e institucionais que exaltam a sua figura.

La Repubblica, o diário da Esquerda italiana:

Foi o último campeão de uma América que morre, a América da “Grande Geração”, a grande geração que ganhou, não só para si, o duelo mortal contra o Eixo. “Poppy”, como na família chamavam o 41º presidente americano George Herbert Bush desde a infância, era a encarnação irrepetível daquela aristocracia branca, protestante e anglo-saxónica, com raízes profundas na existência dos Estados Unidos e com parentescos distantes com as famílias reais inglesas. Pessoas de outras épocas que conseguiram combinar lucro privado com serviço público, riqueza com sacrifício, poder com modéstia.[…]

À luz do que o Partido Republicano Americano tornou-se, preso por cabeças quentes, ideólogos, fanáticos e homens de palha como Mitt Romney, o velho Bush é a saudade dos tempos de indivíduos privilegiados, mas não egoístas, muito poderosos, mas não arrogantes, fortes, mas não fanfarrões.

Ahhhh, os bens tempos idos da primeira guerra no Iraque, daquela na Somália, da invasão de Panamá, da intervenção na ex-Jugoslávia… Aqueles sim que eram dias gloriosos. Fiquei quase comovido.

El Mundo, Espanha:

“A América perdeu um patriota e um humilde servo”, disse por sua vez Barack Obama, observando que as suas ações permitiram “reduzir o flagelo das armas nucleares e formar uma ampla coligação internacional para expulsar um ditador do Kuwait”.

Por sua parte, o ex-presidente Barack Obama também estimou que George W.H. Bush contribuiu “para acabar com a Guerra Fria sem um único tiro”. Algo que também valorizou o último presidente soviético, Mikhail Gorbachev, que destacou a sua contribuição para o desarmamento nuclear e o fim da Guerra Fria.

“Muitas memórias ligam-me a esta pessoa. Tivemos de trabalhar juntos em anos de grande mudança. Eram tempos dramáticos de grande responsabilidade. O resultado foi o fim da Guerra Fria e da corrida de armas nucleares”, disse à Interfax. O ex-líder soviético destacou a “contribuição de George Bush para essa conquista histórica” ​​e destacou que o ex-presidente dos EUA era um “parceiro verdadeiro”. […]

O presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, lamentou a morte do ex-presidente dos Estados Unidos, a quem ele se referiu como “um grande líder” com “um diálogo e um espírito inclusivo”.

Sanchez disse que Bush “atuou em momentos cruciais da história” da relação entre a Espanha e os Estados Unidos, “graças ao seu diálogo e espírito de integração”. “Meus pêsames e afeição a toda a sua família e ao povo americano”, escreveu o executivo-chefe em sua conta na rede social Twitter.

Por sua parte, o ex-presidente José María Aznar também transmitiu suas condolências à família do ex-presidente dos EUA e disse que ele deixou “um legado histórico digno de ser reconhecido”. […]

Segundo Aznar, o compromisso de Bush com a liberdade e a democracia em todo o mundo “foi exemplar”. “Ele foi um grande presidente em tempos historicamente críticos, como o fim da União Soviética, a queda do muro e o comunismo como uma ameaça às liberdades”, acrescenta. Também enfatiza que “o seu apoio à unificação alemã, pela unidade da Europa e a sua ambição de criar uma ordem internacional mais justa e livre marca um legado histórico digno de ser reconhecido”.

No Brasil só espreitei A Folha de S. Paulo e foi suficiente: “George Bush ajudou o Partido Republicano a se aproximar dos evangélicos” e “George Bush quase foi vítima de canibalismo de japoneses na Segunda Guerra“.

No geral: uma espécie de festa de boas palavras e santificação póstuma. Quando o assunto for Vladimir Putin é adicionada em automático a fórmula “ex-espião da KGB”; quando o assunto for George Bush ninguém escreve “ex-espião da CIA”. Coisas esquisitas.

Porque Bush foi não apenas o director da agência de intelligence americana mas pertenceu às áreas mais opacas da classe dominante dos EUA: não é uma simples nota de rodapé, um acidente, mas a chave para compreender o seu papel na história. Procurem o ensaio de Russ Baker, [wiki base=”EN”]Family of Secrets[/wiki] (Bloomsbury, 2008), que traça a incrível galeria de acções sujas da família Bush, todas conectadas a episódios decisivos na história dos EUA: não foram acidentes de percurso, constituíram o eixo central da actividade dos Bush.

Como em todas as dinastias, temos de partir dos patriarcas, a começar com aquele avô [wiki]Prescott Bush[/wiki], entre 1914 e 1918 legal da firma [wiki base=”EN”]Percy Avery Rockefeller[/wiki] ([wiki]Citibank[/wiki], [wiki]Remington Arms[/wiki]), administrador da War Industries Board (indústria de transformação militar que expandiu-se graças à Primeira Guerra Mundial), sócio do magnata da Finança [wiki base=”EN”]Bernard Baruch[/wiki] e do banqueiro [wiki base=”EN”]Clarence Dillon[/wiki], habitual nos círculos exclusivos daquela Finança que originou o CFR ([wiki]Council on Foreign Relations[/wiki]).

Depois foi a vez do filho de Samuel, Prescott Sheldon Bush, director da [wiki base=”EN”]Union Banking Corporation[/wiki] (UBC), cujo parceiro mais importante na Alemanha nazista era [wiki base=”EN”]Fritz Thyssen[/wiki]: de facto, o banco foi fundado para financiar a reorganização da indústria alemã durante a ascensão de Hitler. Por exemplo investindo na Overby Development Company e na Silesian-American Corporation (esta dirigida pelo próprio Bush), empresas que forneceram o carvão às industrias nazistas mesmo após o início da guerra (nota curiosa: nem a primeira nem a segunda aparecem na sábia Wikipedia). Prescott também investiu na companhia de navegação [wiki]Hamburg-Amerika Linie[/wiki] (mais tarde baptizada Hapag-Lloyd) cujos navios, nos anos Trinta, transportavam armas para a milícia nazista.

Um activismo, aquele do Senador Prescott Bush, que foi recompensado pelo regime nazista com a [wiki]Ordem de Mérito da Águia Alemã[/wiki]: certificado atribuído em 7 de Março de 1938, assinado por Adolf Hitler e pelo Secretário de Estado Otto Meissner, como está documentado nos arquivos do Departamento de Justiça dos EUA. E em 2001 alguns documentos impressionantes sobre os negócios de Prescott vieram à tona: o Bush instalou uma fábrica perto de Auschwitz, onde os prisioneiros dos campos de concentração trabalhavam (Toby Rodgers: Heir to the Holocaust, How the Bush Family Wealth is Linked to the Jewish Holocaust, em Clamor Magazine, Maio-Junho de 2002).

Depois temos ele, George Herbert Walker Bush, vice-presidente da administração Reagan (1981-1989) e depois 41º Presidente dos Estados Unidos (1989-1993). Os seus vastos interesses em áreas opacas da moralidade variaram desde o encobrimento do tráfico das drogas até armas e petróleo, só para falar do [wiki]Caso Irã-Contras[/wiki].

Apenas algumas passagens da sua “brilhante” carreira: seguindo os passos da sua família, George estreia-se bem cedo nos círculos anti-comunistas das Alta Finança norte-americana. Está entre os coordenadores da falida missão da [wiki]Baía dos Porcos[/wiki] (Cuba, 1961); a seguir é referência do narco-ditador panamense [wiki]Manuel Noriega[/wiki] e finalmente superconsultor do [wiki]Carlyle Group[/wiki], um dos principais acionistas de muitos fornecedores das forças armadas americanas. Também foi director da CIA, como já afirmado, entre 1976 e 1977. E entre 1981 e 1986, como vice-presidente dos Estados Unidos, seleccionou dezenas de figuras-chave envolvidas no colossal mercado internacional das drogas.

No mesmo período é bom realçar a relação entre a família Bush e aquela de Bin Laden (ambas mantiveram importantes posições no Carlyle Group): Khalifa, [wiki base=”EN”]Khalid bin Mahfouz[/wiki], [wiki base=”EN”]Salem bin Laden[/wiki] (meio-irmão de Osama) estavam na administração do [wiki]Bank of Credit and Commerce International[/wiki] quando corriam os imensos fluxos de dinheiro do caso Irão-Contra. Quando, no final de 1980, alguns emissários republicanos reuniram-se secretamente em Paris com moderados de [wiki]Khomeini[/wiki] para a libertação dos reféns americanos em Teherão, Bush chegou às pressas no avião de Salem bin Lāden: este investiu no Carlyle Group aproximadamente 1.3 bilhão de Dólares e James Baker, chefe da equipa de Bush, admitiu oficialmente que Bush encontrou-se com Bin Laden (o mau) em Novembro de 1998 e também em Janeiro de 2000.

Esta é a forma com a qual este pedaço de aristocracia americana representado pela dinastia Bush costuma manter relações de poder com os alegados inimigos dos Estados Unidos. Nas guerras, no grande negócio da produção militar, dentro das companhias petrolíferas que brindam ao assassinato de Kennedy e no triunfo das petromonarquias.

São estruturas de poder que perduram além dos indivíduos, ao que ponto que mesmo uma pessoa com capacidade muito reduzidas como George W. Bush, filho de George Herbert Walker Bush, conseguiu tornar-se Presidente, orgulhosamente auto-intitulado “Um Presidente da Guerra”. Não é o caso de canonizar Bush: tentamos medir a seriedade dos jornais pela capacidade de apresentar um verdadeiro retrato dele. Sem esquecer que, após a sua morte, o mundo é um lugar um pouco mais limpo.

 

Ipse dixit.

Fontes: La Repubblica, El Mundo, Pino Cabras