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Os riders na gig economy que avança

Imagem de Wikipedia

Imagem original de Antonio Foncubierta in Flickr
É impossível não nota-los. São muitos, montam raramente bicicletas, quase sempre scooters. As cores variam, mas são sempre as mesmas: rosa, amarelo, verde-azul. Tropas diferentes para competir no mercado das entregas. São os riders, os estafetas, na época dos algoritmos. Já fazem parte do tecido urbano das cidades médias e grandes. Há quem fale de “empreendedorismo da condição urbana”, ou tornar-se empreendedor de si mesmo, gerindo o tempo de maneira compatível com outras ocupações, agarrando pedaços de liberdade. E há algo subtilmente sedutor nessa descrição, algo que pode atrair: porque teoricamente existem alguns aspectos positivos nisso, como a flexibilidade nas situações em que uma pessoa precisa de organizar os seus dias. E certamente há riders que estão felizes de trabalhar dessa maneira e ter uma fonte de rendimento. No entanto, a realidade não é tão brilhantes: as plataformas (quem dá o trabalho aos riders) desfrutam de todos os privilégios do empregador, para os estafetas há os inconvenientes de serem autónomos (baixos rendimentos, contribuição e impostos). A autonomia é reduzida porque é preciso chegar a um acordo com as prerrogativas da plataforma, muito semelhantes às de um empregador tradicional.

As plataformas e a gig economy

Foodora, Deliveroo, Glovo, Just Eat e outras dominam o mercado de entregas da comida caseira. Apresentam-se como plataformas que reúnem oferta e procura: de um lado há restaurantes, pizzerias e outras lojas, do outro os clientes e no meio os riders. Neste contexto, as plataformas são apenas um meio de comunicação e os riders são freelancers que podem trabalhar em “total liberdade”, que podem escolher “quais ordens aceitar”, como indicado no site da Glovo. Estamos num território que é definido gig economy, platform economy, crowd economy. Termos com ligeiras diferencias e que indicam um modelo económico cada vez mais relevante, capaz de minar os antigos parâmetros do mundo do trabalho. Não há dados e números claros sobre a gig economy e, em particular, sobre o sector das entregas. É praticamente impossível saber quantas pessoas trabalham em empresas como Foodora, Deliveroo e outros, tanto pela reticência das mesmas empresas quanto pelo trabalho contínuo e massivo de recrutamento. Sobre a sustentabilidade deste negócio podemos dizer algo mais certo: muitos especialistas acreditam que é uma bolha, mantida viva pelo enorme financiamento dos fundos dos capitais de risco. No entanto, apesar do impulso do capital externo, produzir lucros parece ser um difícil equilíbrio. Em 2016, por exemplo, a margem bruta (que dá uma medida de lucro) gerada pela Deliveroo foi de apenas 0.7% das receitas. Nesse contexto, a compressão dos custos da mão-de-obra é essencial. E é isso que as plataformas tentam fazer continuamente, mudando para pior as condições ofertas ou eliminando incentivos e bónus. Ou favorecendo a passagem de um pagamento por hora para um sistema de pagamento por entrega. Na sede da Deliveroo em Berlim (Alemanha), por exemplo, algumas dos estafetas ganham dinheiro por hora mas cada vez mais são aqueles pagas por entrega. Na mesma cidade, Foodora dá a todos um contracto com pagamento por hora. Todas tentam acabar com as melhores condições de trabalho para aumentar a margem de lucro delas. Na Foodora antes trabalhar nos fins de semana, à noite ou com mau tempo previa um pagamento extraordinário; depois mudaram e introduziram um sistema que funciona assim: apenas 15% dos melhores riders recebem os bónus. Desta forma, conseguem pagar menos e ao mesmo tempo colocar mais pressão nos trabalhadores: para ganhar o bónus é preciso correr mais rápido. Em Janeiro, em Bruxelas (Bélgica), os estafetas da Deliveroo ocuparam a sede da empresa, em protesto contra a decisão de suspender a cooperação com a cooperativa Smart, que garantia uma protecção social mínima, e enquadrar todos os funcionários como “autónomos”. Depois de três dias de ocupação, a Deliveroo concordou em sentar-se à mesa de negociação na presença do Ministério do Trabalho, para depois abandonar tudo. Também em Bologna (Italia) protestos e ações de demonstração forçaram as plataformas de entrega (Sgnam, Just Eat, Glovo, Deliveroo), após o pedido das instituições locais, a tomar nota dos pedidos dos estafetas. O objectivo é chegar a uma negociação metropolitana que estabeleça regras mais claras e melhores protecções. Bruxelas e Bologna são apenas os pontos mais visíveis de um icebergue que ameaça colocar em (moderado) perigo as companhias de entrega. Em Torino, no ano passado, os estafetas da Foodora decidiram levar para o tribunal a empresa, que respondeu com uma estratégia defensiva tão simples quanto trivial: trata-se apenas de estudantes, é um trabalho básico e uma forma de ganhar trocos, nada mais. Uma estratégia defensiva bastante estúpida, que apresenta uma panorama no qual existiriam categorias de trabalhadores legitimamente exploradas, categorias de séries inferiores. Há mais de que estudantes entre os raiders e não se percebe por qual razão os jovens deveriam ter menos garantias. Na verdade há neste caso quatro pontos do Direto que devem ser respeitados:
  1. o reconhecimento do status de trabalho subordinado
  2. a questão da privacidade e do controle remoto
  3. a ilegitimidade dos despedimentos
  4. a segurança no trabalho.
A via legal é a tentativa de extrair as plataformas dos nichos onde actuam e realçar as áreas cinzentas destasempresas, repletas de ambiguidades. Em Espanha, a Inspección de Trabajo de Valencia reconheceu a relação de emprego no caso dos estafetas da Deliveroo. Vice-versa, na Inglaterra, a Deliveroo conseguiu ganhar e demonstrar que os riders não são trabalhadores que tenham direito a algumas proteções sociais, mas trabalhadores independentes que decidem livremente o tempo das suas actividades. Fica nesse ponto, na ambiguidade autónomia / não autónomia, a grande questão do conflito, algo que encontramos em outros tipo de trabalho também. As empresas de entrega garantem que este é um falso problema, que a maioria das pessoas que trabalham e realizam entregas desejam a máxima flexibilidade.

Era uma vez…

Quem escreve, quando era bem jovem, prestou serviço numa grande distribuidora nacional italiana, uma empresa com milhares de trabalhadores autónomos e bem poucos funcionários dependentes. Não era ainda a época da gig economy, o empregador não era uma simples plataforma mas uma realidade sólida e bem conhecida em pátria: as coisas funcionavam de forma muito diferente (por exemplo, era precisa a inscrição à categoria profissional dos autotranportadores) e, diga-se, os ganhos eram muito bons. Todavia já na altura havia a ambiguidade do trabalho autónomo/não autónomo. É claro, quando os ganhos justificam em pleno a ambiguidade, nem a empresa e nem o trabalhador se queixam. Mas a ambiguidade continua a existir. No meu caso é verdade, havia uma certa liberdade na gestão do tempo, na ordem dos trabalhos, até algumas vezes recusei entregas que depois foram efectuadas por colegas. Todavia é sempre um trabalho falsamente autónomo: há tempos que têm que ser respeitados, regras que têm de ser respeitadas e são tempos e regras não do trabalhador mas das empresas. Um exemplo: os veículos que efectuavam as entregas tinham todos que ser pintados com uma cor específica. Como o veículo pertencia ao trabalhador “autónomo”, as custas ficavam por conta deste último. E dado que não falamos dum scooter ou dum carro, o montante envolvido não era pequeno mas a quase totalidade dos trabalhadores aceitavam a regra para poder trabalhar num negócio certo e remunerativo. A “quase totalidade”. Porque na sede de Genova houve um trabalhador que recusou estes termos. Fiquei como único trabalhador na sede local da distribuidora com um meio de cor diferente porque o raciocínio que apresentei à direcção foi este: eu tenho um meio de cor branco da qual estou plenamente feliz, se a empresa quer mudar a cor significa que também a empresa é dona do veiculo, pelo que temos que dividir todos os custos (pintura mas também seguros, manutenção, etc.). Como é claro, continuei a trabalhar com o meu bonito Fiat Ducato branco: a empresa arranjou-me como sponsor um dos principais clientes, este colou os seus emblemas no meu veículo e pagava-me um montante (mínimo ) a cada mês por via da publicidade que eu fazia (moral: protestar quando estamos da parte da razão pode acarretar diversas vantagens). Mas isso foi possível só por uma série de circunstancias: eu era um bom trabalhador, não era um trabalho para estudantes ou desempregados, o clima económico era bem positivo e ninguém falava de gig economy ainda. Hoje já não é assim: as “plataformas” procuram categorias desfavorecidas porque sabem que o poder de contratação delas é quase inexistente. O clima económico é péssimo: ou é aceite o trabalho com as condições ditadas pelas empresas ou o risco é de nem encontrar uma entrada monetária mínima. As plataformas são o fruto da gig economy, um tipo de economia nascido para explorar ao máximo os recursos humanos. Hoje a mesma empresa na qual trabalhei assume muitos imigrantes, os ganhos caíram de forma abrupta. E não há ninguém com uma cor diferente…

Regresso à Place de Grève

Hoje a realidade é que aqueles que protestam são sempre uma minoria (quando é que existem), porque as empresas contratam constantemente novas pessoas. Desta forma, os conflitos entre trabalhador e empresa são evitados (com os despedimentos dos “rebeldes”). Rankings internos, chats das empresas, políticas disciplinares que definem os turnos com base nos critérios de produtividade e que penalizam aqueles que querem ou são forçados a não aceitar entregas: esta é a realidade hoje, de autónomo há bem pouco por aqui. A flexibilidade do tempo é uma ideia esvaziada do significado: as actuais plataformas criaram um mercado onde as mercadorias são o trabalho. As mercadorias são entregue só pelos estafetas, pelo que os estafetas são o trabalho, é aí que se encontra o lucro das empresas: a gestão humana desapareceu e foi substituída pelos algoritmos. E este, por como são concebidos, constituem apenas uma máscara que responde às necessidades das plataformas que dão os ordens. Em teoria, o estafeta trabalha sempre que assim ele quiser: na realidade, a Deliveroo, líder do mercado, criou um algoritmo que classifica os riders e dá-lhes acesso ao programa em momentos diferentes, pelo que o ideal é trabalhar muito e de forma rápida para ficar sempre entre os primeiros. Basicamente trata-se dum regresso ao século XIX. Na Place de Grève, em Paris, todas as manhãs o capataz escolhia os trabalhadores para descarregar os barcos. Tecnicamente é o que se passa hoje, a única diferença é que o líder desapareceu e foi substituído pelo telemóvel e pelo algoritmo. E foi mudado até o vocabulário: como explica o diário inglês Guardian, os estafetas têm que utilizar independent suppliers e não staff, onboarding e não hiring, fees e não wages. A divisão espanhola de Deliveroo disponibiliza para os riders um tutorial onde está um parágrafo chamado palabras erroneas y illegales. E, num e-mail enviado para aos trabalhadores, diz claramente para “prestar atenção às palavras proibidas, porque, no caso de um controle externo, poderia haver problemas legais”. O que não explica o e-mail é que os problemas seriam da empresa, não do trabalhador.

O sindicato desaparecido e o futuro

A vaga de protestos aumenta: há uma linha vermelha que atravessa Italia, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Reino Unido e Espanha, que começa a afectar outros Países da Europa, como Grécia, Polónia e Suécia e que chega muito para além dos Urais como no caso de Hong Kong. Um movimento que ainda é pequeno mas a direcção que está a tomar é clara e potencialmente pode tornar-se muito forte. O interessante é que em todos os Países interessados (entre os quais, como é claro, não há Portugal) a mesma dinâmica está a desenvolver-se no mesmo período histórico: este aspecto transnacional e homogéneo pode pressionar as plataformas. E aqui não é possível não notar um grande ausente: os sindicatos, incapazes de compreender as transformações e as inovações que acontecem num mundo em constante mudança. No caso dos protestos dos estafetas, o movimento parte sempre das ruas: os sindicatos não percebem (ou não querem perceber) que a gig economy é a economia dos miseráveis feita para explorar os miseráveis, que a gig economy não é algo impossível de organizar, que estes miseráveis precisariam da ajuda de instituições para poder defender-se. Os sindicatos nem querem aperceber-se que o papel deles é a prazo:  ninguém pode dizer hoje o que acontecerá nos próximos anos. Segundo a pesquisa Work in the European Gig Economy publicada pela Business School da Universidade de Hertfordshire (Reino Unido), uma boa parte da população dos Países europeus examinados (com uma percentagem que varia entre 9% e 22%) depende da gig economy para obter uma parte do seu rendimento anual. O “trabalho líquido”, como é também definido, está a tornar-se uma característica não-incomum da nossa sociedade mas raramente o assunto é tratado. O futuro são plataformas, algoritmos e a destruição da relação de emprego? A tecnologia pode aniquilar ou liberar, depende de como é utilizada. Muitas vezes, na economia das plataformas, é chamado em causa o algoritmo, esta entidade quase xamánica e ininteligível: o algoritmo controla o desempenho do trabalhador e é muito penetrante porque é como se o trabalhador estivesse a obedecer a ordens invisíveis. Paradoxalmente, o trabalhador “autónomo” de hoje resulta mais disciplinado porque podes discutir com o teu superior mas é mais complicado fazê-lo com um algoritmo. Classificação interna baseada na disponibilidade, velocidade, número das entregas, avaliação do cliente final: estes são os dados importantes para a carreira do trabalhador e tudo gira em volta do digital porque é ele que faz as contas. E que cria um efeito de bloqueio: o trabalhador não migra para outra plataforma porque perderia tudo o que ganhou até agora no ranking da empresa e teria que começar de novo a partir do zero. A gig economy fornece uma profecia: este modelo de negócios, um híbrido entre uma empresa com dependentes e o trabalho autónomo, corre o risco de tornar-se contagiante. E já não está limitado ao mundo das entregas.   Ipse dixit. Fontes: The Brusseltimes, Il Corriere della Sera, La Repubblica, El País, The Guardian (1 e 2), Transantional Strike, CoopCycle, Il Tasacabile