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A Ciência e os conspiracionistas

Imagem de Oscar Keys / Unsplash

Current Biology é uma revista científica que abrange todas as áreas da biologia, especialmente biologia molecular, biologia celular, genética, neurobiologia, ecologia e biologia evolutiva. A revista, muito conceituada, foi fundada em 1991, é publicada duas vezes por mês e desde 2001 faz parte da editora Cell Press, por sua vez filial do grupo Elsevier (The Lancet, ScienceDirect, a série televisiva Anatomia de Grey).

No passado mês de Agosto, Current Biology publicou um artigo que acabei de encontrar só agora e cujo título é Creationism and conspiracism share a common teleological bias (“Criacionismo e conspiracionismo partilham o mesmo prejuízo teleológico”). Um artigo que em primeiro lugar chamou a minha atenção porque não faço ideia do que possa ser um “prejuízo teleológico” e isso irrita-me.

“Teleologia” em Dicio Dicionário Online de Português:

[Filosofia] Doutrina que se pauta na ideia de que os seres e o universo caminham e compartilham uma única finalidade, sendo ela permanente e não compreendida na sua totalidade.

Uhi, coisas complicadas… e eu que pensava que teleológico fosse um concurso televisivo. Após ter reflectido uns 37 minutos, cheguei à conclusão que um prejuízo teleológico relaciona um facto com a sua causa final. Por exemplo: “O Sol serve a dar nos a luz” ou “As abelhas existem para fornecer nos o mel”.

Como é óbvio, trata-se duma forma de pensar errada. As abelhas não existem para servir os homens, existem porque sim e, casualmente, fornecem mel e picadas (que doem, sou testemunha disso!). Ensinar a não pensar que tudo existe para satisfazer as necessidades dos seres humanos é coisa boa e justa, todavia é uma questão mais filosófica do que científica (biológica neste caso): o nosso conhecimento acerca das abelhas mudaria se elas “servissem” a espécie humana? Não, as abelhas são abelhas e ponto final, independentemente das finalidades delas.

Mas vamos em frente. A teoria de Current Biology é a seguinte: existe um vínculo comum entre a conspiração e o criacionismo. E este vínculo é: ambos os pensamentos partilham o tal prejuízo teleológico que tende a atribuir um valor intencional a tudo. Um prejuízo que, segundo a revista, fica nos antípodas do racionalismo científico e que, embora desacreditado desde os anos de 1800, ainda está presente em várias formas nas sociedades de hoje.

Em trabalhos anteriores, os mesmos autores descobriram que, segundo os conspiradores, os acontecimentos do mundo são guiados por relações básicas de causa e efeito, sempre fabricadas para fins precisos. E ao chegar a essas conclusões, notaram muitas semelhanças com o pensamento criacionista; portanto, se os dois pensamentos partilham o mesmo prejuízo cognitivo, eles devem estar associados uns aos outros.

Ou seja: estes dois génios passaram anos na tentativa de demonstrar que quem acredita em Deus acredita também nas conspirações e vice-versa. Por qual razão? Porque tanto os criacionistas quanto os conspiracionistas acreditam que as coisas não aconteçam “por acaso”. Ver uma causa intencional, uma finalidade nos acontecimentos, seria então uma deformação do pensamento correcto, algo “não lógico”. E repito: não lógico.

Mas isso não é verdade, é verdade o oposto, ou seja, as coisas acontecem porque existem causas precisas que as determinam e, quase sempre, finalidades também. Há sempre uma causa mas pode não haver uma finalidade. Por exemplo: um homem passa debaixo duma varanda e um vaso cai-lhe na cabeça. Pode ter sido um golpe de vento que fez cair o vaso, então estamos perante duma acção na qual não há finalidade (um mero acaso). Ou pode ter sido o Max que atirou o vaso para divertir-se um pouco, então estamos perante duma acção que tem uma causa e uma clara finalidade (o legítimo divertimento do Max).

Current Biology joga com a subtil diferença entre “causa” e “finalidade”. Do ponto de vista dos criacionistas, Deus é a causa suprema, pois tudo acontece segundo a vontade Dele; a finalidade é o plano de Deus, algo que não está ao alcance dos homens. Vice-versa, os assim chamados “conspiracionistas” tentam desvendar tanto a causa quanto a finalidade através da análise dos factos, sem recorrer a uma razão sobrenatural. Partindo das observações dos acontecimentos do 9/11 e da análise crítica da versão oficial, é possível construir sólidas hipóteses alternativas acerca tanto das causas quanto das finalidades do atentado que matou 3.000 pessoas.

Current Biology põe no mesmo plano quem acredita em Deus, quem acha que a Terra é plana, quem espera que Nibiru destrua o planeta e quem critica com métodos científicos as versões oficiais. E isso é muito pouco sério.

Explica Current Biology:

Como componente “padrão” […] o pensamento teleológico é, portanto, associado a crenças criacionistas e conspiracionistas, que implicam o envolvimento distante e oculto de uma causa final e proposital para explicar eventos mundanos complexos.

O que significa: não raciocinem acerca de assuntos “mundanos” complexos, mantenham tudo simples porque não há nada de oculto. As coisas são como elas parecem e ponto final.

Por exemplo: as empresas dos Estados Unidos favoreceram economicamente a ascensão de Hitler nos anos ’30? Não, aconteceu tudo de forma aleatória, não havia nenhuma clara finalidade política. Seguindo o raciocínio de Current Biology, de repente milionários americanos começaram a fornecer dinheiro aos nazistas mas sem que existisse uma razão bem precisa, não passou dum mero acaso. Casualmente milhões de Dólares partiam dos EUA e casualmente chegavam na Alemanha onde, sempre casualmente, acabavam nos cofres dos nazistas. Isso é ridículo e muito pouco “científico”.

De facto é extremamente curioso que esta crítica chegue dum ambiente supostamente “científico” e sobretudo “biológico”: os seres vivos raramente fazem coisas sem que haja uma causa e uma finalidade. O leão na savana mata a gazela porque tem fome (causa) e quer comer (finalidade), não porque é um serial killer ou porque enlouqueceu. E não é preciso acreditar em Deus para entender isso.

Mas Current Biology faz parte da “Nova Ciência”, aquela que procede por dogmas (“assim é e não se discute mais”) e que não deseja cultivar o espírito crítico nas pessoas. O bom cidadão não pergunta “por qual razão acontece isso?”, limita-se a absorver a simples explicação “científica” sem ir mais além. O bom cidadão não tem dúvidas que não sejam “politicamente correctas”. O bom cidadão não acredita em Deus. Paradoxalmente é esta atitude que favorece o afastamento entre ciência e cidadão. O ambiente científico é percebido como algo distante, pouco relacionado com a realidade, incapaz de fornecer explicações abrangentes e, no final das contas, cúmplice do sistema. Terreno fértil para o surgimento duma miríade de teorias “conspiracionistas”.

Como sempre: “conheces os teus inimigos”. Como vimos, Current Biology faz parte da editora Cell Press, por sua vez filial do grupo Elsevier. Este, como nas bonecas russas, faz parte de algo maior: o grupo RELX, uma multinacional britânica que opera nas áreas cientifica, técnica e medica. Chefe supremo da RELX é Sir Anthony John Habgood, membro do Banco da Inglaterra, formado na Universidade Carnegie Mellon. Carnagie era o famoso industrial-filantropo e Mellon era a família de banqueiros.

Não admira que da Universidade Carnagie Mellon  saíam indivíduos como Charles Geschke (Adobe Systems), Andy Bechtolsheim (Sun Microsystems), George Pake (Xerox), Charlie Erwin (Secretário da Defesa dos EUA e General Motors) ou o bilionário David Tepper. Estamos falados.

 

Ipse dixit.

Fonte: Current Biology