A Guerra Civil de Gombe

A violência começou em Janeiro de 1974, precisamente no dia 22 de Janeiro. Seis membros da tribo Kasakela atacaram e assassinaram brutalmente um jovem da tribo Kahama, tal Godi, um membro popular da sua comunidade. Nos anos seguintes, todos os seis culpados, um após o outro, foram mortos pelos Kahamas.

As brutalidades não pararam por aí. Algumas fêmeas dos Kahama foram estupradas, algumas mortas ou feitas desaparecer sem deixar vestígios. Outros machos de ambas as comunidades foram assassinados. A guerra entre as duas tribos, que durou quatro anos, atingiu picos de violência que deixaram chocados as testemunhas da época; estes observaram que em certo casos os agressores pareciam quase desfrutar do sofrimento dos outros. Conta-se até que alguns chegaram a arrancar os genitais do inimigo, observando-o enquanto agoniava.

Por alguns anos tive dificuldade em entender essas descobertas. Muitas vezes, quando acordava à noite, via imagens horríveis: Satanás [o membro duma das tribos, ndt] recolhia com as mãos juntas o sangue do queixo de Sniff, que pingava duma grande ferida no rosto, para bebe-lo; o velho Rodolf, geralmente tão benevolente, levantava-se para atirar uma pedra sobre o corpo de Godi no chão; Jomeo arrancava uma ponta de pele da coxa de Dé; Figan atacava e atacava, de novo e de novo, o corpo convulsivo de Golias, um dos heróis da sua infância.

A chamada “Guerra Civil de Gombe”, na Tanzânia, aconteceu mesmo entre 1974 e 1978 e foi cruel. Mas, por uma vez, não tinha como protagonistas homens: Kasakela e Kahama eram tribos de Pan troglodytes, mais conhecidos como “chimpanzés”, parentes muito próximos dos seres humanos. De facto, as duas espécies compartilham 98% do DNA. E é mesmo aqui que algo parece não bater certo pois guerras, prazer no sofrimento do próximo ou vingança são “normais” ao falar de comunidades humanas; mas num animal fofinho, brincalhão e divertido como um chimpanzé?!? Esta foi a dúvida que tiveram os pesquisadores também: e é por isso que a Guerra Civil de Gombe ficou como ponto de viragem no estudo dos primatas.

Primatas e crueldade

No século passado, era comum a ideia (que hoje parece bastante ingénua) de que o único animal capaz de infligir intencionalmente dor a membros da sua espécie era o homem. A Guerra Civil de Gombe mostrou claramente que esse não era o caso, e talvez seja por isso que ainda hoje está impressa no imaginário coletivo.

Naqueles anos, a observar e documentar aqueles eventos extraordinários, houve uma testemunha excepcional, a lendária primatologista Jane Goodall. A Guerra de Gombe é um episódio que foi contado muitas vezes e provocou amplo debate na comunidade científica mas quando Goodall relatou os eventos pela primeira vez, a sua interpretação da história foi severamente criticada. Segundo a primatologista, a Guerra de Gombe provou que os chimpanzés são violentos e capazes de travar guerras e genocídios contra membros da sua própria espécie. Pressupostos que levantaram uma grande nuvem de poeira, o que provocou um debate que durou muito entre aqueles que apoiavam argumentos semelhantes e aqueles que sugeriam que a culpa deste comportamento “anormal” fosse atribuído à proximidade dos seres humanos e à presença duma estação científica, que, fornecendo alimento aos animais, teria alterado a coexistência pacífica das populações e desencadeado a violência.

Um dos aspectos mais intrigantes era que, antes da guerra, a comunidade de chimpanzés que gravitava em torno da estação parecia ser um grupo mais ou menos compacto e unitário. Em 1974, ficou claro que havia ocorrido uma divisão que levou à formação de dois grupos: o Kasakela, que frequentava a área ao norte do território, e o Kahama, que ficava ao sul. Todavia, as razões e as dinâmicas da sucessiva guerra ficaram em dúvida.

Apenas um estudo muito recente, no entanto, abordou a questão rigorosa e quantitativamente, aplicando métodos modernos de análise de network, isso é, de redes sociais (virtuais e não), conseguindo finalmente fornecer uma imagem satisfatória da dinâmica que levou à violência.

O primeiro autor da pesquisa é Joseph Feldblum, pesquisador da Duke University (North Carolina). O estudo, publicado no American Journal of Physical Anthropology, foi coordenado por Anne Pusey, directora do Jane Goodall Institute Research Center, e que foi testemunha directa dos fatos.

Antes de examinar os resultados, vale a pena refletir um pouco sobre os eventos originais para entender seu enorme alcance. Pergunta Feldblum:

O que levou à divisão? O nosso estudo, deve ser dito, não analisou a guerra em si, mas todo o período que a precedeu. Queríamos entender o que causou a divisão. As hipóteses formuladas eram essencialmente duas: antes da guerra o grupo era um e depois por alguns motivos estava dividido; ou já eram dois grupos diferentes, unidos artificialmente pela presença da estação que lhes dava comida.

Até pouco tempo atrás, ninguém tinha conseguido trazer dados convincentes numa direção ou noutra, provavelmente porque os instrumentos dos estudos não permitiam isso. No entanto, Feldblum e os colegas introduziram um elemento de inovação metodológica:

Aplicámos as actuais técnicas da análise das redes sociais nas relações entre os chimpanzés de Gombe.

Mas se os factos de Gombe ocorreram no século passado, entre 1974 e 1978, como é que Feldblum e os seus colegas conseguiram os dados detalhados necessários para esse tipo de análise? É aqui que começa a viagem no tempo.

Cavar nos arquivos

Explica o pesquisador:

Temos uma enorme quantidade de notas que contêm as observações desse período, escritas por Goodall mas também pelos seus alunos. O meu coordenador, o Professor Pusey, passou os últimos 25 anos a digitalizar tudo.

Um trabalho miserável, sem dúvida, mas deveras útil: hoje há um arquivo impressionante e inestimável, graças ao qual Feldblum e os seus colegas foram capazes de dar uma olhada de novo tipo sobre um facto histórico:

Dado que os estudos da altura estavam principalmente focados no comportamento dos machos da comunidade, analisámos os seus relacionamentos. Já tinham passado vários anos desde o estabelecimento da estação e a equipe científica conhecia muito bem os vários indivíduos.

Goodall e os seus alunos passaram horas intermináveis ​a ​registrar as interações entre os chimpanzés. Graças à digitalização foi possível catalogar tudo e, em seguida, analisar com algoritmos capazes de acompanhar com rigor matemático a dinâmica dos grupos sociais durante o período anterior a 1974. Continua Feldblum:

A ideia de base é que seja possível entender as interações e os relacionamentos numa sociedade complexa com o conceito matemático de “nó”, que é uma espécie de actor social dentro de um grupo, e de “link” entre os diferentes nós. É assim obtida uma abstração matemática das relações entre os indivíduos, para que possamos gerar resumos estatísticos da estrutura social e da posição dos membros dentro de um grupo complexo. O que a análise da rede permite fazer é considerar toda a rede de conexões e ter uma noção da estrutura social geral e da posição de um indivíduo em relação a qualquer outro membro.

Coisas de macacos? Nada disso: a base é a experiência desenvolvida com os grupos humanos. E isso fornece uma poderosa visão que vai além das técnicas analíticas utilizadas até algum tempo atrás. É o estudo da nossa sociedade, dos nossos grupos, até dos grupos online (Facebook, por exemplo). Só que é utilizado nos grupos de chimpanzé: 98% do DNA parecido com o nosso, lembram?

De acordo com os nossos dados, a hipótese de que havia dois grupos iniciais é muito improvável.

As causas da guerra

Os pesquisadores identificaram a presença de subgrupos dentro da comunidade original. É só observar com quem e por quanto tempo cada macaco costuma entreter-se.

No início, a situação era fluida, os indivíduos modificavam os subgrupos facilmente de uma maneira que poderia ser chamada de aleatória. Misturavam-se e ainda não se conseguia identificar os Kasaela e os Kahamas.

Mas de repente, no início de 1971, os indivíduos que na fase sucessiva serão conhecidos como membros de um grupo ou de outro começam a passar mais tempo juntos nos respectivos subgrupos.

Isso significa que antes não há uma clara diferença que pode indicar uma divisão acentuada, aquela observada durante a guerra. Primeiro, há uma espécie de organização fluida e mutável de amizades. Isso faz pensar que antes havia um único grupo.

Portanto, a de Gombe foi uma verdadeira guerra civil, num grupo antes unido. Mas falta ainda uma peça: o que causou a divisão e depois a guerra? Feldblum e os colegas analisaram a probabilidade de alguns factores desencadeantes. Nos anos que precederam a guerra foram estabelecidas algumas relações pessoais muito precisas entre os indivíduos das duas facções.

Houve uma luta pelo poder entre Humphrey, o macho alfa, e Charlie e Hugh, provavelmente irmãos, que classificamos como machos beta e gama (ou seja, segundo e terceiro na hierarquia). Descobrimos que Humphrey poderia intimidar outros membros num confronto a sós, mas quando Charlie e Hugh estavam juntos às vezes conseguiam intimidar Humphrey.

Isso levou a um relacionamento muito tenso, com os dois grupos que começaram a diferenciar-se cada vez mais. Uma dinâmica típica dos conflictos observados nas sociedades humanas, especialmente (mas não só) na época pré-industrial. Trata-se de poder.

O segundo factor que identificamos tem a ver com o facto de que, desde 1971 e ainda mais em 1972, o rácio entre o número de machos e o das fêmeas capazes de se reproduzir ficou alterado. Poucas fêmeas, demasiados machos, um tipo de competição que aumenta a agressividade. Portanto: reprodução ou, se preferirmos, sexo. Sexo e poder, uma mistura explosiva, também entre os chimpanzés.

A Guerra Civil de Gombe continua a ser única, pois nunca tinha sido observada antes na natureza e nunca foi vista com aquela intensidade. No entanto, não é uma excepção. As observações de comportamentos agressivos semelhantes em chimpanzés são incontáveis, Gombe difere apenas em termos de complexidade e duração, e somente porque, por acaso, foi observada em todo o seu curso.

Algo que faz lembrar um outro estudo, muito famoso em sociologia, conduzido por Wayne Zachary no final da década de setenta do século passado. Zachary não estudava chimpanzé mas homens, nomeadamente os membros dum clube de karaté na faculdade, um grupo que depois dividiu-se em duas facções antagónicas. Chimpanzé e homens, dois estudos que conseguem complementar-se.

Violência genética ou cultural?

Como acabou a Guerra Civil de Gombe? A tribo dos Kasakela (o grupo de Humphry) tomou posse do território anteriormente ocupado pelos Kahama (o grupo de Hugh e Charlie). A ocupação, no entanto, não perdurou, pois o novo território adquirido fazia fronteira com um terceiro grupo, os Kalende, muito maior em força e número. Após algumas violentas escaramuças na fronteira levaram os Kasakela a abandonar grande parte do território conquistado.

Estes os factos. Mas sobra uma dúvida: algumas características da violência observada entre os chimpanzés podem ser encontradas nas dinâmicas que vemos todos os dias entre os homens, nas redes sociais virtuais e às vezes até mesmo no mundo físico. O que diz a experiência de Gombe sobre a natureza humana? Os primatas são violentos por natureza?

É difícil responder. As primeiras conclusões tiradas por Goodall chocaram a opinião pública: sugeriam que nos chimpanzés havia uma raiz violenta, algo genético. E, considerado que o passo entre nós e “eles” é muito curto, Goodall insinuava que no ser humano existe uma tendência instintiva de agressão. Uma posição oposta à dos que acreditam que guerras, assassinatos e abusos de vária natureza dependem de outros fatores. Steven Pinker, por exemplo, no seu livro The Decline of Violence argumenta que a violência é em grande parte transmitida por via cultural, não é inata.

O debate  entre essas duas posições não é estéril, porque aceitar uma ou outra posição também envolve uma orientação sobre como gerir a violência humana: se esta realmente tivesse uma base genética, então seria praticamente impossível erradica-la completamente; mas se fosse determinada pelo ambiente, então poderia ser combatida através de meios culturais. Fica a dúvida.

 

Ipse dixit.

Fonte: Federica Sgorbissa in Il Tascabile

4 Replies to “A Guerra Civil de Gombe”

  1. Max e querias acabar com o blog?
    Excelente,
    Não será algo inerente genéticamente mas maioritariamente determinada pelo ambiente?
    Os genes estão lá, mas existe mais ou menos presdesposição de se manifestarem conforme o meio.

    Abraço

  2. Que achado Max!!! Fabuloso!! Claro que não sou entendida em comportamento animal, a não ser o que a experiência e alguns estudos me levam a considerar sobre comportamento canino, e humano. Com base nisso levanto a hipótese que genética e ambiente se complementam.
    Com relação a mamíferos “inferiores” a humanos, em situação de risco, com incêndios e tais, são solidários, em situações de risco do clâ são capazes de comer os filhotes para garantir a vida dos mais fortes, assim como são caçadores para comer ou defender-se. E aí, não considero violência. Violência para mim é o uso da força para garantir poder, acumulação (seja comida, status ou capital, exclusivo dos humanos) . Por sinal, os esforços civilizacionais, acho que vão nessa linha em termos teóricos e duramente conseguidos em termos práticos.
    Agora tratando das histórias dos meus cães, um caso de violência por status. Tirei Anarca das ruas em estado de miserabilidade total, supondo ser uma fêmea vira-lata de grande porte. Depois de um mês de recuperação intensiva, o veterinário me afirmou ser um Dogue alemão legítimo, e realmente tornou-se uma cadela enorme, belíssima, com quase 70 quilos, vivendo comigo dentro de casa com um cachorrinho linguiça recém nascido, encontrado no lixo, que Anarca criou com desvelo. Dois anos mais tarde uma amiga me presenteia com uma filhote de pastor canadense, liinda toda branca, peluda. Pretendia ser “lotação esgotada” dentro de casa, mas cometi um erro estúpido. Vinha com compras num carrinho de supermercado e entrei em casa pela primeira vez com a Lobalua em cima das compras no carrinho, de forma que a filhote olhou de cima por primeira vez para a Anarca, filhote tão filhote quanto o Zequinha, que no primeiro encontro jogou-se no chão com as patinhas para o ar em total entrega. Foi um ódio mortal da Anarca contra a Lobalua para o resto da vida, e só não deu guerra porque mantive as duas sempre afastadas, o que me deu um trabalho infame.
    Agora, caso mais recente da guerra civil por outros meios aqui no Brazil. Ontem o presidente Temer, em plena euforia da “transição presidencial” sancionou uma lei antiga, em desuso já, que permite a partir de então, mediante delação incluindo por parentes, colegas de trabalho, amigos, vizinhos etc para o serviço de segurança, antigo DOI CODI atualizado, para fins de detenção sumária e averiguação dos delatados em todo território nacional. A violência dos macacos creio ser menos hipócrita do que aquela em curso pelo poder dos humanos. Por sinal, hipocrisia não é coisa de bicho…quem sabe daqueles cujo DNA muito se aproxime do home sapiens.

  3. Eu penso que a origem da guerra naqueles macacos é clara: aceso fácil a comida o que faz com que o grupo não precise de ser tão numeroso para sobreviver. Com os humanos é a mesma coisa, a existência de recursos em excesso parece-me uma causa necessária para qualquer guerra.

    Depois os humanos são como os macacos, enquanto tivermos machos alfa, isto é uma hierarquia de poder, a guerra não passa de uma consequência lógica.

    Finalmente, em termos biológicos não será a genética nem o ambiente, mas provavelmente a epigenética, parece que Lamarck afinal tinha razão quando se estuda o comportamento.

  4. Pode ser, aí a diferença é mínima.
    Existe outro factor criar uma distracção/ilusão/mudança/alteração (pode ser subtil ou não, conforme o pretendido). Dá com ratos, macacos, com o homo sapiens sapiens mas é algo metido artificialmente, pode “não” ser externo(tipo activar uma consciência ou individual ou “por vezes colectiva”) ou ser algo sensorial, logo externo?
    Ex o golfinho também se rege igual (igualmente com uma estratificação nos grupos) e até tem um cérebro maior mas o factor água pode limitar?
    Ia para as formigas e “organização” mas aí a coisa muda
    ???
    Inconsciente colectivo?

Obrigado por participar na discussão!

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