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Gramsci, o servo e o patrão

a mass of breathing souls
for times are desolate

 

Antonio Gramsci era comunista e como punição morreu ainda jovem. Todavia teve tempo para atirar para o ar um par de ideias, algumas das quais nada têm a ver com o Comunismo. Por exemplo, explicava Gramsci que uma teoria pode ser considerada revolucionária quando separa completamente o campo do servo daquele do patrão; quando cria uma área “inacessível” para os adversários e uma categorização do real que não pode ser absorvida pela ideologia dominante.

A teoria revolucionária (fala-se aqui de qualquer revolução, não das revoluções comunistas ou socialistas) deve pôr-se também como uma “luta de cultural”: ou seja, uma luta entre diferentes visões de mundo, em nítido contraste entre elas. Na ausência de uma teoria revolucionária, não pode haver um movimento revolucionário. Parece lógico, não é?

Mas é este o ponto que parece escapar aos que de vez em quando aparecem por aqui para perguntar em tom de desafio “Então o que você propõe?”. A verdade é que actualmente não há nenhuma teoria revolucionária que possa funcionar como referência. E, como tal, não há nenhum movimento revolucionário com ideias novas.

O sábio Leitor pensará: “Pára, Max, pára! Ideias novas há, muitas, mas o sistema é malandro e as oculta. Ou oculta-as. Ou as-oculta-as.”

Em verdade, em verdade vós digo: o que é uma ideia? A paz no mundo é uma ideia? Claro que é. Mas qual a utilidade dela do ponto de vista prático? Zero. Isso porque, continuava o defunto Gramsci antes de morrer, uma teoria revolucionária (o conjunto de ideias “novas”) tem que:

  1. realçar as contradições existentes no modelo em vigor
  2. delinear uma perspectiva em nome da qual agir no presente em prol do sucesso futuro
  3. actuar na hegemonia cultural e política para mobilizar as massas, levando-as a participar activamente no projecto para combater o presente.

Vamos a fazer um rápido controle:

  1. a ideia da paz no mundo realça as contradições existentes no modelo em vigor? Sim, realça: não há paz no mundo.
  2. a ideia da paz no mundo delineia uma perspectiva em nome da qual agir no presente em prol do sucesso futuro? Nem por isso: todos estamos de acordo acerca da paz no mundo, mas como alcança-la? A ideia de paz do mundo dum radical islâmico pode ser muito diferente da minha.
  3. a ideia da paz no mundo actua na hegemonia cultural e política para mobilizar as massas, levando-as a participar activamente no projecto para combater o presente? Mas nem pensar: de vez em quando há uma marcha algures, mas este é tudo o que as massa consegue.

Pelo que, a ideia de paz no mundo é destinada a ficar só um pio desejo e nada mais. E o mesmo pode ser dito no caso de muitas outras boas ideias.

Continuava Gramsci antes de ir para a cova: hoje as categorias conceituais usadas pelo servo (nós) são as mesmas usadas ​​pelo patrão. Não constituem uma área “inacessível” para o patrão que, pelo contrário, as utiliza para manter a situação tal como está. Gramsci falava de “morfinismo político” criado por estas categorias conceituais: todas estas ideias são utilizadas como uma verdadeira droga (a morfina) e têm como fim atordoar e adormecer as forças da mudança. E, no final, confirmam a subordinação dos dominados, a subordinação às ideias dominantes da classe privilegiada.

A vitória do patrão, portanto, deve ser entendida nos dias de hoje tanto ao nível do conflito material (na forma de massacre contra os servos: mercado livre, globalização, competitividade, etc.), tanto a nível de antagonismo cultural e simbólico. Isso é: das ideias. A luta cultural em favor da decomposição da consciência de classe está a avançar com grande sucesso: consegue ganhar a aceitação do servo, como se a condição dele fosse natural e fisiológica, fatal e inevitável.

Atenção: com o termo de “consciência de classe” não se entende aqui aquela do clássico “proletariado”, que está ou extinguido ou fortemente reduzido. A classe aqui presente é aquela massa formada por todos os servos: restos do proletariado, classe média, burguesia, desgraçados, etc. Este conjunto tem (quando é que tem) apenas uma vaga ideia de quem são os patrões, só sabem que são ricos, que têm o poder, mas ignora o enredo maior, não entende como funciona o sistema do qual é escravo e nem sabe indicar ao certo os nomes dos indivíduos culpados da actual situação. No geral, tende a identificar como culpados “os políticos”, por vezes “os bancos”, mas isso é tudo (corolário: a classe é ignorante).

O servo tem metabolizado o olhar do seu patrão: olhar que faz com que o servo ame as suas correntes e, como na caverna de Platão, recuse a ideia de Liberdade. O patrão até criou rótulos para caluniar o servo de modo que seja desqualificada qualquer perspectiva não alinhada (“comunista”, “fascista”, “xenófobo”, “populista”, “conspiração”, etc.) e o servo é bem feliz de utilizar estes insultos para atacar outros servos. Por esta razão, o massacre de hoje é não apenas simbólico, é real.

De facto, os perdedores da globalização (todos nós) são duplamente derrotados: no nível estrutural e naquele superestrutural, pois são perdedores e esforçam-se para assim permanecer. O servo (nós) cumprimenta com entusiasmo os processos globalizadores, contrariando tudo o que pode opor-se (estado nacional, regulação da economia, etc.). Qualquer pessoa que tente mostrar as contradições do nosso sistema e propor algo diferente encontra inevitavelmente outros escravos que começam a brandir termos dos quais nem conhecem o verdadeiro significado (os já citados “comunista, fascista, xenófobo, populista, conspiração, etc”.).

E aqui é interessante realçar como os termos apenas citados sejam, na maior parte dos casos, criações dos mesmos patrões, são as “áreas inacessíveis” deles, agitadas como ameaças para manter controlado o servo e para induzi-lo a combater em defesa da actual ordem.

Nestes tempos desolados, falar duma teoria revolucionária não passa duma mera utopia. E ainda menos faz sentido citar um movimento revolucionário. Pretender que alguém tenha na gaveta um novo modelo pronto para ser extraído sob pedido é infantil e desligado da realidade. Pode haver no futuro o surgimento duma nova teoria revolucionária com relativo movimento? A História ensina que sim, que é só uma questão de tempo.

 

Ipse dixit.