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Os tomates do cabo no leilão online – Parte II

Massa, tomates, biscoitos, sorvetes, detergentes: é suficiente entrar em qualquer cadeia de supermercado para encontrar os produtos de marca própria, as assim chamadas “marcas brancas”. Cada vez mais competitivas, o volume de negócios destas sub-marcas alcançou 9.5 bilhões de Euros o que representa cerca de 18 por cento dos bens de consumo embalados: dados que falam só da Italia. E a percentagem continua a subir: as previsões da ADM (Associação da Distribuição Moderna) prevê que em 2025 o total será de 50%. Em outras realidade não será preciso esperar tanto: no Reino Unido, por exemplo, já agora as marcas brancas atingem 45 por cento, em Espanha 32%, na Alemanha 29.9%.

As marcas brancas

As marcas brancas não são uma novidade: nasceram nos anos Vinte do século XX, no Reino Unido, como private label. Até pouco tempo atrás eram associadas a produtos de menor valor, pobres até na embalagem e destinadas a clientes com baixo poder aquisitivo. Nos últimos anos esta abordagem mudou: as grandes cadeias cuidam mais da qualidade, das embalagens, investem as sua “confiança” de como rede distributiva neste produtos. Aqueles que eram produtos sem marca definida, baratos e acessíveis a todos, hoje tornaram-se uma marca, conquistam a confiança dos consumidores que, cada vez mais, veem no nome da cadeia um elemento tranquilizador.

A estratégia do VGE (varejo de grande escala) perante a marca branca mudou de forma ainda mais radical para responder às necessidades dos clientes. Os pragmáticos enchem o carrinho com os produtos de “primeiro preço”, mais baratos; os prudentes querem poupar dinheiro, mas querem ser tranquilizados acerca da qualidade então apostam em marcas menores, não nas mais publicitadas; depois há os que desejam mais: mais qualidade mas com preço razoável. É nessa articulação entre os tipos de consumidor e as hierarquias de marcas que está a enraizar-se a marca branca.

Os supermercados tentam seguir todos os clientes, então eis que aparecem as marcas brancas “premium”: se com os “primeiros preços” encontramos produtos de menor qualidade e o preço, com os “premium” é atendida a demanda por produtos refinados, típicos e regionais. E assim, nos últimos anos, tem havido um florescimento de marcas brancas que querem ser uma garantia de qualidade.

O sector da grande distribuição tem substituído a mercearia à esquina, onde a qualidade era garantida pelo passa-palavra. Então os produtos de marca própria têm várias categorias: e com a série “premium”, a mais valiosa, o VGE agora tenta competir directamente com grandes marcas da indústria. Comparada com a clássica indústria, a distribuição goza de alguns benefícios exclusivos: pode até não anunciar os produtos ou preocupar-se com o acesso ao mercado. Ao contrário dos produtos industriais, aquele de marca branca têm um canal de vendas dedicado e pronto: a prateleira do mesmo supermercado. E isso explica porque, num mercado onde 70% das compras de alimentos passam por grandes superfícies, a marca branca é o novo Eldorado.

Mas aqui temos uma dúvida: as marcas brancas significam que as cadeias dos supermercados começaram a produzir e embalar os produtos? Nem por isso. Pessoalmente tenho o vício de espreitar os nomes dos efectivos fabricantes nas embalagens das marcas brancas, às vezes escondidos atrás de códigos (que é passível encontrar na internet). As grandes cadeias não produzem rigorosamente nada: limitam-se a pedir à empresas externa que produzam. E, surpresa!, não poucas vezes estas empresas são bem conhecidas pelo grande público. O que cria um resultado contraditório em que dois artigos encontram-se na mesma prateleira, com preços e embalagens diferentes, mas são produzidos na mesma fábrica.

Os dois produtos fazem-se concorrência? Claramente sim, mas este não é um problema na óptica da VGE: esta irá ganhar tanto com a venda da marca branca quanto com aquela famosa. O problema é das empresas fornecedoras: na primeira parte do artigo vimos a técnica do leilão, técnica que é utilizada também para os produtos de marca branca. Mas isso significa que as empresas ganham poucos com os artigos seleccionados nos leilões online: a margem de lucro é bem diferente no caso dum produto clássico ou dum vendido como marca branca.

As indústrias são, portanto, numa encruzilhada: continuar a produzir como marca própria ou tornar-se fornecedores de distribuição como marca branca, o que significa perder a sua identidade empresarial, mas manter a esperança de não ter problemas na comercialização, mesmo com lucros inferiores. Se o desejo for continuar a estar presentes no mercado, a escolha é só uma: uam recentes pesquisa demonstrou que numa amostra de 75 fornecedores do VGE, 92% produz tanto a sua própria marca como o produto de marca branca.

Problema: produzir como marca branca anula o “peso” do nome da empresa. O nome nem aparece na embalagem, muitas vezes, como vimos, substituído por um código: a imagem da marca desaparece. Então quem decide se o teu produto for vendido ou menos não é o cliente, é o VGE: este pode mudar de fornecedor em qualquer altura, sem muitos problemas. E como escolhe a VGE? Com o leilão online, tendo como base o preço menor. De repente, a grande empresa tem que competir sem a força da sua imagem mas só com o preço.

O VGE torna-se assim comprador, concorrente, vendedor de espaço na prateleira, controlador de acesso ao canal da distribuição. As leis de mercado? Já foram.

Obviamente, uma grande empresa terá sempre um poder de contratação superior ao duma empresa pequena o media; e terá também mais possibilidade de sobreviver com lucros irrisórios, apostando nas grandes quantidades. Mas o panorama não é alegre para ninguém: muitos fornecedores alegam que as condições ditadas pelo VGE são demasiado severas, à beira da irritação. Alguns dos operadores reclamam que os compradores muitas vezes nem conhecem as áreas de produção, os custos, os valores dos artigos. Principalmente procuram obter o produto aos custo menor: é este o ponto fundamental. Em suma, é um cão que morde a própria cauda: os fornecedores não podem ficar sem produzir as marcas brancas, mas a marca branca corroí o poder de negociação. Até o ponto que alguns (os mais pequenos) deixam, fechando as portas.

Abdullah, o escravo (morto)

Para acabar, voltamos a falar do caporalato. Este é um aspecto muito importante porque se é verdade que muitos choram online e nos diários o “egoísmo” dos europeus que não querem acolher os imigrantes, poucos depois dão-se ao trabalho de verificar onde acabam estes pobres desgraçados (porque fazer as boas almas com as desgraças dos outros é sempre fácil).

Uma multinacional britânica concluiu contratos de fornecimento com a quinta Rita De Rubertis em Nardò (Puglia, Italia), onde o trabalhador sudanês Abdullah Muhamed morreu em 20 de Julho de 2015. As implicações da morte do trabalhador, que recolhia tomates sem um contracto de trabalho depois de ter sido recrutado por um cabo, são pesada: era o seu primeiro dia de trabalho, tinha chegado em Puglia depois de uma longa viagem de autocarro desde a Sicília.

Abdullah Muhamed tinha começado às dez da manhã: nada de exame médico, nenhum contrato, apenas um acordo verbal com outro sudanês, Mohamed Elsalih, o cabo, que tinha recrutado Abdullah para recolher pequenos tomates no campo de Nardó. O pagamento foi definido por peças: sete Euros para cada caixa de três quintais preenchida. Debaixo dum sol escaldante, com turno de 10-12 horas, Abdullah Muhamed morreu em 20 de Julho de 2015, de enfarte.

O produto recolhido por Abdullah era vendido a três grandes empresas, incluindo as italianas Mutti e Cirio. Ambas as empresas cortaram os relacionamentos com a quinta de Nardó no mesmo ano, mas em 2016 apareceu um novo cliente, a Princes food and drink group. Empresa inglesa hoje propriedade da japonesa Mitsubishi e trabalha nos mercados britânico, francês e alemão.

Afirma o porta-voz da empresa:

Podemos confirmar que a partir de 2016 somos fornecidos pela De Rubertis (a quinta de Nardó) e que os controles que fizemos não encontraram nenhuma evidência de ilegalidade.

Pode não haver havido irregularidade, mas o que leva uma empresa a colaborar com pessoas acusadas de homicídio, com um processo jurídico ainda em curso? Explicação:

Em 2016 e 2017 realizamos alguns treino sobre a ética do trabalho em que a empresa Rita De Rubertis também participou.

Traduzindo: a empresa ofereceu um óptimo preço, então que se lixem os princípios.

Essa história revela que há problemas não apenas nos campos, mas também no topo da cadeia de suprimentos. Ainda o porta-voz da empresa Prince:

A trágica morte de Muhamed mostra que ainda há questões importantes a serem enfrentadas quando se fala em trabalho ilegal no sector do tomate na Itália.

E não, não é mesmo assim. Porque a empresa escravagista (o caporalato é escravagismo) existe porque há alguém que continua a comprar os tomates recolhidos em troca de 7 Euros por três quintais, um salário que só os imigrantes estão dispostos a aceitar. A VGE não pode ignorar a exploração, atirando todas as responsabilidades para os produtores: todos sabem como é que a coisa funciona, porque não haveria outra maneira de oferecer meio quilo de polpa de tomate em troca de 0.42 cêntimos.

A Pública Acusação de Lecce (Puglia), Paola Guglielmi, estabeleceu que a compensação diária dos imigrantes-escravos chega aos 50 Euros por dia, a partir dos quais é preciso subtrair os custos de transporte, da comida e da água (que é obrigatório adquirir do cabo).

Mas as empresas não têm responsabilidade criminal, caso contrário as teria investigado: elas fazem parte das investigações que previam a verificação de toda a rota do produto.

50 Euros por dia significam 7 caixa de tomates, um total de 21 quintais recolhidos em pleno Verão, no Sul de Italia, debaixo dum calor arrasador. Da morte de Abdullah respondem criminalmente o cabo Elsalih e o proprietário da quinta. A investigação acusa os dois de homicídio culposo. Segundo a promotora, a causar o falecimento foi o trabalho desenvolvido “em condições atmosféricas e climáticas absolutamente desgastantes, sem folga semanal, sem respeitar a legislação sobre as pausas”. Mas nada pode ser apontado às empresas que processavam os tomates: seria preciso poder demonstrar que estas tivessem conhecimento das condições de trabalho. O que é praticamente impossível.

Mas o Leitor agora sabe: sabe como funciona um leilão online, sabe como é assassinado o sector agrícola, sabe o que fica atrás duma marca branca. E sabe também que para ter uma polpa de tomate com preço de arromba alguém tem que morrer.

 

Ipse dixit.

Fontes: Internazionale (1 e 2), Corriere del Mezzogiorno, Corriere della Sera, TPI News