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Os tomates do cabo no leilão online – Parte I

A oferta é uma daquelas boas: 510 gramas de polpa de tomate em troca de 0.42 cêntimos, i litro de leite gordo 0.48 cêntimos, 500 gramas de massa tipo cotovelos 0.45 cêntimos. Entregue directamente na caixa do correio ou disponível na loja e na internet, o panfleto apresenta as promoções dos alimentos para atrair uma clientela cada vez maior. E estas lojas crescem: os supermercado Lidl e Aldi estão em cada esquina, o Jumbo/Auchan está a ocupar cada vez mais espaços. Depois há o clássico Continente do Grupo Sonae, o Pingo Doce, etc.

Fazendo um cálculo rápido, é possível preparar uma massa com molho de tomate para quatro pessoas gastando tanto quanto um par de cafés. Mas como fazem estas lojas a propor preços tão baixos? Simplesmente com um mecanismo perverso que acaba esmagando a inteira cadeia de suprimento, ameaçando a produção e o mundo do trabalho: o leilão online com dupla rebaixa.

Essa prática comercial, mais parecida com o jogo de azar do que com uma transação entre empresas, é mais difundida no sector de varejo de grande escala (VGE), especialmente entre os grupos que oferecem fortes descontos. Depende do grande poder que adquiriram nos últimos anos os supermercados, que se tornaram o principal canal de compras de alimentos, e da fragmentação e a falta de poder de contratação dos demais atores da cadeia de fornecimento.

Nos últimos vinte anos a grande distribuição substituiu as pequenas lojas. Trata-se duma “evolução” (aspas bem necessárias) incontrolável, mas cada vez mais marcada por uma forte guerra entre os vários operadores. A competição desenvolve-se entre os dois extremos: o desconto e a variedade gourmet. Quem ficar no meio para tentar agradar a todos, corre o risco de não agradar ninguém e perder o jogo. E é assim que a principal estratégia para capturar os consumidores é aquela das ofertas, dos folhetos, dos 3×2. Mas quem paga realmente o preço das ofertas? Qual o custo dos descontos oferecidos aos consumidores finais?

Como funciona o leilão

Ainda antes: quem são os principais actores do universo da distribuição de alimentos? Quando caminhamos pelos corredores de um supermercado, somos dominados por uma vastidão de cores, sinais, latas, potes e pacotes que convidam a poupar. Para cada um desses produtos, há quem tenha cultivado a matéria-prima (o agricultor), quem a transformou (o industrial), quem a vende (o supermercado) e quem a consome (o cidadão). Os fornecedores tentam vender ao melhor preço enquanto os responsáveis pelas cadeias de supermercados procuram estabelecer custos baixos. Cada um deles actua num jogo que nem sempre prevê igualdade de condições, no qual há quem fique com mais poder de contratação. É este o caso dos leilões.

O mecanismo básico é o mesmo de um clássico leilão: de um lado, o VGE que deve comprar as mercadorias, de outro as empresas fornecedoras que fazem a oferta. Com uma variante única, não desprezível: o pior preço ganha, não o melhor.

Aconteceu há algumas semanas, quando a Eurospin (uma das muitas cadeias discount europeias) pediu às empresas de tomate para apresentar uma oferta para um lote de 20 milhões de garrafas de 700 gramas de polpa de tomate. Depois das propostas serem reunidas, a Eurospin pediu uma nova oferta, desta vez usando como preço máximo o preço mais baixo obtidos com as ofertas anteriores.

Alguns já se tinham retirado após o primeiro leilão: não conseguem cobrir os custos. Os outros foram convidados a fazer a segunda oferta online. Estes, portanto, viram-se obrigados a propor novos cortes no preço-base em poucos minutos, a fim de ganhar o jogo.

No final desta corrida online, a encomenda foi ganha por dois grandes grupos por um preço igual a 31,5 cêntimos por garrafa de polpa. Outras três empresas ganharam outro contracto para o fornecimento de 400 gramas de tomates pelados, graças a uma oferta de 21,5 cêntimos por garrafa.

Diz um empresário cuja fábrica prepara a polpa:

Se levarmos em conta apenas a matéria-prima, a garrafa e a rolha, para a polpa chegamos a um custo de 32 cêntimos. Se depois adicionarmos o custo da energia e a mão-de-obra, fica-se a perder e nem pouco.

No entanto, mesmo para ganhar o contracto e permanecer no “giro” do mercado, muitos estão dispostos a trabalhar com prejuízo e entretanto tentam economizar cortado outros itens, como o custo das matérias-primas ou da mão de obra.

O Caporalato

Nos campos da Capitanata, na província de Foggia (Puglia, Sul Italia), tudo está pronto para a colheita. Nas próximas semanas, os camiões começarão as viagens entre a campanha, que já brilham com o vermelho dos tomates maduros, e as várias empresas de processamento. Mas os agricultores estão cada vez mais desanimados. Diz Marco Nicastro, um empresário agrícola e presidente da organização de produtores Mediterrâneo:

Uma vez o tomate garantia excelentes lucros. Agora é um produto de base, que é pago cada vez menos. Quando os industriais participam nesses leilões, a única maneira deles não trabalharem com prejuízo é ganhar à custa dos agricultores, pagando o mínimo possível a matéria-prima. O verdadeiro caporalato é a grande distribuição.

Caporalato é um termo italiano que indica um sistema informal de organização do trabalho agrícola temporário, realizado por trabalhadores inseridos em grupos de trabalho de tamanho variável (de poucos até várias centenas). Tudo está baseado na capacidade do caporale (o “cabo”) em encontrar mão-de-obra barata para serviços agrícolas de proprietários de terras e empresas agrícolas. O caporale actua como mediador ilegal de mão de obra e gestor do trabalho de acordo com as demandas dos empresários agrícolas. O caporale recruta os trabalhadores em nome do proprietário e estabelece a remuneração, da qual guarda para si uma parte que é paga a ele tanto pelo proprietário como pelos trabalhadores recrutados. Antigamente o caporalato era a norma, mas a partir da segunda metade do século XX tal prática foi criminalizada e proibida. Só que agora há uma mão de obra, que não se queixa e trabalha duro: são os imigrantes. E o caporalato renasceu.

Os contractos

Desvendar o universo feito de contrastes e contractos entre distribuidores e fornecedores não é tarefa fácil. É preciso muita experiência ou pelo menos um mestrado em marketing, mas acima de tudo experiência: existem vários níveis de leitura que nem sempre são compreensíveis para os não-profissionais. De facto, muitos contratos apresentam vários itens “fora da folha”, contribuições de vários tipos que complementam as listas de preços e correspondem aos serviços que as cadeias impõem aos fornecedores.

Primeiro de tudo, há a chamada taxa de listagem, ou seja, uma quantia a ser paga por cada produto que é colocado na prateleira. Na prática, se o fornecedor quiser ficar na prateleira do supermercado e ficar visível para o consumidor, tem que pagar a taxa de listagem.

Depois há a contribuição única que as redes VGE solicitam aos fornecedores para a abertura de novas lojas. O raciocínio é simples: se um grupo abre uma nova loja, pede ao fornecedor que assuma parte do risco do negócio.

Mas não é tudo: existem também os “descontos de fim de ano”, muitas vezes impostos retroactivamente após a assinatura do contrato. Ou outros descontos que as cadeias decidem implementar (e impor) a posteriori aos fornecedores. Exemplo prático: há alguns anos, o grupo Carrefour decidiu recompensar a fidelidade dos seus clientes com descontos sobre os gastos aplicados aos titulares do cartão de fidelização. O grupo, de forma a remunerar esta iniciativa promocional decidida unilateralmente, exigiu uma contribuição extraordinária a todos os fornecedores da categoria dos produtos frescos, como frutas e legumes, carne, peixe, queijos, charcutaria e padaria: um desconto de 20 % sobre os produtos entregues ao longo duma semana.

Não são montantes irrisórios: em 2013, a autoridade antitrust italiana realizou uma pesquisa de no sector do varejo, com foco particular no relacionamento com os fornecedores. Uma investigação tornada necessária por causa dos relatórios de “alegado comportamento opressivo” e “anti-competitivo durante as negociações de condições de compra do produto”, como reza o documento.

Neste estão listadas todas as práticas que os diversos actores da VGE implementam em complicados contratos com os fornecedores. A VGE identificam seis tipos de “descontos” (descontos incondicionais, desconto target, outros descontos condicionais; descontos logísticos, descontos de recuperação da margem) e nove tipos de “contribuições” (serviços centrais, taxa de de acesso, gestão e manutenção, inserção de novos produtos, exposição preferencial, contribuições promocionais e de publicidade e co-marketing, aniversários, festas e eventos, novas aberturas / mudanças; outros como controle de qualidade e transferência de dados).

Através de um questionário enviado a 471 empresas agro-alimentares, a autoridade responsável pela concorrência fez uma verdadeira radiografia das relações entre os grandes retalhistas e os fornecedores. E o documento sintetiza os dados: descontos e contribuições custam aos fornecedores 24.2% do volume de negócios com a cadeia VGE. Na prática, um quarto do preço do produto.

Querendo simplificar, se o fornecedor vende o seu produto a 10 Euros, na realidade é como se estivesse a vender a 7.5 €, sacrificando a sua margem de lucro. Conclui o documento:

O efeito da distorção da concorrência ligada à aplicação de encargo económico ao fornecedor é mais susceptível de aparecer em presença de taxas impostas unilateralmente pelo distribuidor, perante contra-prestações a partir das quais o fornecedor não considera tirar proveito e nem pedidas pelo mesmo fornecedor.

Se a autoridade de concorrência usa uma linguagem “asséptica” na análise técnica, a realidade é mais drástica: é um sistema que vive de subornos mais ou menos ocultos, um sistema no qual os pequenos e médios fornecedores não conseguem rentabilizar o seu trabalho, que desaparece entre descontos de fim de ano, contribuições promocionais, centralização e milhares de outras contribuições.

Doutro lado, falar disso publicamente envolve o risco de ser eliminado da lista dos fornecedores.E muitas vezes não há escolha, porque a alternativa é sair do mercado. A saída é equivalente à descida ao submundo: os produtos são removidos da prateleira, eliminados das lojas. Em num mundo onde quase três quartos das compras passam pela VGE, cortar este canal equivale à morte.

 

Ipse dixit.

Fontes: na segunda e última parte