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A próxima revolução cultural

Pessoal, é precisa uma revolução cultural. É precisa e urgente. Tomem nota. Tomaram nota? Esperem, antes vamos ver as razões.

A razão fundamental é a seguinte: continuamos a ter uma ideia inabalável, um pilar que está na base de todos os nossos pensamentos. A ideia é simples: o ser humano é superior a qualquer outra coisa viva. Espantem-se: não, não é. No entanto, pensamos e actuamos como se isso fosse verdade. Como é que chegámos a este ponto? Como é que surgiu a ideia? De quem a culpa? Desde já: a culpa não é minha, na altura eu nem estava em Portugal.

Como surgiu a ideia de que o Homem é superior a qualquer outra coisa viva

A ideia surgiu há dezenas de milhares de anos, quando a consciência desenvolveu-se na mente humana. Hoje a motivação dessa superioridade reside na maior capacidade de elaboração do cérebro humano quando comparada com os outros animais. Admitimos: uma galinha não parece elaborar muito. E se elabora, então disfarça bastante bem.

Mas antes da elaboração do cérebro humano havia outra explicação para justificar a superioridade humana, algo muito mais simples: Deus. Ele mesmo.

Prevalecia a convicção de que tinha sido o Criador do Universo em pessoa a investir o Homem da função de “rei do mundo”, e essa ideia continuou a exercer o seu fascínio até mais tarde, quase até os dias actuais. Tinha sido Deus a fornecer tal superioridade, algo multifacetado que se manifesta com as habilidades intelectuais, a ética, a estética, a política, a arte, o futebol e o karaoke.

Uma de sínteses mais eficazes foi escrita por Dante no 26° canto do Inferno: “Feitos não foram feitos para viver como brutos, mas para seguir a virtude e o conhecimento”, versos que também reflectem uma investidura divina. Mas essa superioridade tão ampla, aparentemente indiscutível, com o passar do tempo também estendeu-se ao Universo todo: a Terra foi imaginada no centro do Universo, a superioridade do Homem não tinha limite e era ultrapassada só pela Glória de Deus. Portanto: no topo da pirâmide há o Criador, a seguir o Homem, abaixo todo o resto.

Dúvida: por qual razão Deus deu-se o trabalho de criar o Homem e um Universo só para ele? Porque Deus é bom. Ou porque sofria de solidão. Não sabemos ao certo.

O que sabemos, mas isso é hoje, é que as coisas não estão bem assim. A Terra não fica no centro do Universo: é um planeta como muitos, que circula em volta duma estrela média, na periferia duma galáxia igual a biliões de outras galáxias. Nada de especial. Mas para quebrar aquelas ideias de superioridade forma precisas duas gigantescas revoluções culturais, algo que literalmente abalou a visão do mundo. E não foi nada fácil.

Como acabou a ideia de que o Homem é superior a qualquer outra coisa viva

A primeira dessas revoluções começou em 1543 com a publicação do tratado astronómico de Nicolau Copérnico “Sobre as revoluções dos corpos celestes”. Até então, a convicção era a mesma expressa em 350 a.C. por Aristóteles, segundo o qual “É claro, portanto, que a terra é necessariamente colocada no centro, e é imóvel …”. Esta teoria, o geocentrismo, tinha sido confirmada mais tarde (150 d.C.) por Cláudio Ptolomeu, na obra “O Almagesto”: a Terra é estacionária, o Sol, a Lua e outros os planetas giram em torno dela. Ámen.

É evidente a funcionalidade de tal teoria ao antropocentrismo, com o Homem senhor e dono do Universo. Mas o tempo passou: em 1543, como vimos, Copérnico publica De revolutionibus orbium coelestium, título comprido para dizer o seguinte: “Olhem que é o Sol que fica no centro”. Na verdade a ideia não era nova: os gregos Filolau de Crotona (século V a.C.), Aristarco de Samos (séc. IV a.C.) e Seleuco de Selêucia (séc. II a.C.) tinham pensado o mesmo, só que na altura não havia uma igreja a fazer cenas histéricas e a coisa tinha acabado aí. Com a teoria de Copérnico, pelo contrário, o ambiente aqueceu (literalmente): em 1600 o filósofo Giordano Bruno achou a teoria de Copérnico interessante e logo foi queimado. Mais tarde, em 1633, Galileo Galilei demonstrou com o telescópio que o heliocentrismo estava correcto e quase que acabava como o Bruno.

Mas certas ideias são como o bicho da madeira: uma vez entradas, começam a roer e não querem sair. Assim, lentamente, a teoria dum Universo no qual a Terra não ficava no centro começou a ganhar espaço, até impor-se. Sobrava a questão do Homem: tudo bem, a Terra pode não ficar no centro, mas o ser humano é obra de Deus. E, como tal, tem uma espécie de bónus.

Em 1800 a igreja já não tinha o mesmo poder dum tempo e as ideias circulavam com mais tranquilidade. Foi assim que um naturalista, Charles Darwin, embarcou num navio, deu uma volta ao mundo e quando regressou para a Inglaterra apresentou uma nova teoria: Deus nem era preciso, tudo acontecia de forma natural com a evolução. O Homem? Afinal é parente muito próximo dos macacos. Darwin não acabou num rogo e a ideia dele vingou: em dois séculos o Homem tinha passado de criatura de Deus, no centro de tudo, para mero figurante do Universo. Uma tristeza.

Porque ainda temos a ideia de que o Homem é superior a qualquer outra coisa viva

Dito assim parece um final triste mas feliz: o Homem foi despromovido mas conseguiu encontrar o seu próprio lugar na Natureza. Nem por isso. Hoje sabemos que não ficamos no centro do Universo e que provavelmente nem somos filhos dum Deus; mas, apesar disso, continuamos a ter a atitude do “dono disso tudo”. Curioso: conseguimos desmontar o criacionismo da Bíblia, limitámos o papel de Deus (que, no máximo, pode ter provocado o Big Bang, sempre que a “Grande Explosão” seja uma teoria correcta), mas não conseguimos retirar da cabeça a superioridade humana sobre todas as outras coisas vivas. O mesmo termo “Evolução” subentende um desenvolvimento, desde a matéria bruta até o topo da escada. E o topo somos nós (também Darwin pensava isso).

O problema é que ser “o topo” quando na mão há uma pau é uma coisa, ser “o topo” com a capacidade destruidora adquirida desde a Revolução Industrial é bem diferente. Claro, nós, no Ocidente do século XXI, estamos a viver no auge da prosperidade e dos bem-estar: mas qual o custo? Será que estar “no topo” envolve responsabilidades também? Observamos a lista de desastres ambientais provocados nos últimos 200 anos: será que o nosso planeta pode permitir-se uma espécie como a nossa?

A evolução cultural que é precisa (e urgente) é profunda, mina as bases do nosso milenário antropocentrismo e derruba o mito da superioridade da raça humana sobre todas as outras espécies vivas. O fim? Destruir a ilusão dum impossível crescimento sem limites. Porque é isso que está em jogo no fim das contas.

A galinha, o câncer, os flautistas. E um banho também.

Não somos superiores a todas as outras espécies vivas: estamos no mesmo plano. Uma galinha tem os nossos mesmos direitos. Custa admiti-lo? Sim, custa (a nós, não à galinha). Mas não há nada que possa justificar a nossa alegada superioridade. Bem pelo contrário: peguem num papel  e façam uma lista de todas as espécie animais que conseguem destruir o ambiente onde prosperam, dizimar as outras espécies e engolir comida não natural. Feito? Lista bastante curta, não é? Pois.

E se a inteligência não fosse uma centelha divina? E se fosse um trágico erro do processo evolutivo? Algo “desvantajoso” que, como tal, em breve vai deixar de existir em prol de formas menos destrutivas de vida? Uma evolução anormal sofrida pelo nosso cérebro, algo que permitiu dobrar a nossa vantagem as leis da natureza, para desequilibrar, sempre a nossa vantagem, os delicados mecanismos biológicos espontaneamente formados em milhões e milhões de anos. Conseguimos fazê-lo num piscar de olhos, em apenas alguns milhares de anos, um nada quando comparado à enorme extensão do tempo.

Conseguimos isso mas não conseguimos criar um novo equilíbrio, tão robusto quanto o que está a ser destruído. Este é a grande derrota da inteligência. No filme Matrix há a bem conhecida analogia entre Homem e vírus. E que tal comparar nossa ação destrutiva à das células que dão origem à doença mais temida hoje, o câncer? As semelhanças são muitas, começando com a proliferação indiscriminada das células cancerosas, a destruição que operam em detrimento dos tecidos saudáveis ​​do corpo e assim por diante, até que, no trágico desenlace, as células doentes e os saudáveis morrem juntas. Porque o conceito é este: para a biosfera nós somos uma doença que destrói tudo.

A Terra já enfrentou várias extinções em massa e ainda não estão claras as motivações. Pelo contrário, da próxima conhecemos as causas e o responsável, só não é fácil imaginar o “depois”. É possível evita-la? Sim, é possível. Já estamos atrasados neste sentido, mas ainda é possível evitar danos maiores. E esta é a boa notícia. Mas temos que abdicar do papel de “donos disso tudo” e deixar de seguir os flautistas mágicos do progresso infinito e ilimitado. A revolução passa inevitavelmente para um banho de humildade.

 

Ipse dixit.