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Breve história do Neoliberalismo – Parte I

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Vivemos numa sociedade capitalista ou liberalista? Vivemos nas duas.

Mas então qual a diferença? Bom, simplificando podemos dizer que o Capitalismo é uma sociedade onde domina a propriedade privada, enquanto o Liberalismo é algo um pouco mais específico, é uma teoria económica.

O Capitalismo não é uma teoria económica? Na verdade não: é um termo muito vago onde cabe de tudo um pouco: propriedade privada, livre mercado, trabalho assalariado, capitais, meios de produção… Por exemplo: a economia de 1800 era capitalista mas não era liberalista. A nossa sociedade é diferente daquela de 1800, não apenas do ponto de vista político e social, também do ponto de vista económico: o que mudou entretanto? Mudou a teoria económica que governa o nosso mundo: chegou o Liberalismo.

Então vamos fazer assim: vamos espreitar este Liberalismo: onde nasceu, quando, o que é, o que não é… abram asas para a História do Liberalismo. Dividida em duas partes, porque é comprida. Vamos? Vamos.

O Liberalismo clássico

Assim: vivemos num mundo Liberalista, correcto? Errado: vivemos num mundo neoliberal. Isso porque o Neoliberalismo de hoje é o herdeiro do Liberalismo. Podemos ver as coisas desta forma: o Liberalismo já é mau, o Neoliberalismo consegue ser ainda pior. Mas como começou tudo?

Começou com algumas ideias que iniciaram a circular… na Antiga Grécia. Nada menos. porque o Liberalismo nasceu como atitude filosófica, com pessoas como Platão ou mais tarde com Marsilio da Padova. Isso não significa que Platão ou Marsílio fossem Liberalistas, longe disso: mas é aí que alguns filósofos e economistas, mais tarde, encontraram algumas das ideias que serviram como bases para o Liberalismo.

O Liberalismo nasceu por volta do 1600, com pensadores como John Locke, David Hume, Adam Smith, Montesquieu, Voltaire, Kant, Verri, Beccaria, Thomas Jefferson, George Mason. Das ideias deles nasceram os pilares do Liberalismo:

Este, em extrema síntese, é o Liberalismo clássico. Mas como chegamos ao nosso Liberalismo, conhecido também como Neoliberalismo?

A origem do Neoliberalismo

A história começa com a Grande Crise da década de 1930, consequência do que os economistas chamam de “crise de superprodução”. O Capitalismo tinha-se desenvolvido aumentando a produtividade e diminuindo os salários, mas isso gerou profundas desigualdades, desgastou a capacidade de consumo das pessoas e criou um excesso de bens que não encontravam mercado. Para resolver essas crises e impedi-las no futuro, os economistas da época (liderados por John Maynard Keynes) sugeriram que o Estado deveria se empenhar na regulação do Capitalismo. A tese era que, diminuindo o desemprego, aumentando os salários e estimulando a procura dos consumidores, o Estado poderia garantir o crescimento económico e o bem-estar social, uma espécie de compromisso de classe entre capital e trabalho.

O Capitalismo embutido

Estava bem visto: o Capitalismo ficava “embutido” na sociedade, limitado por opções políticas e voltado para o bem-estar social. Tratava-se de garantir um salário decente em troca de uma força de trabalho produtiva, proporcionando à classe média os meios para consumir bens essenciais e favorecer o crescimento. Havia formas de “protecção” para as classes mais desfavorecidas, eliminando o desemprego e implementando ajudas do Estado: o Capitalismo deixava de ser uma selva na qual mandava a lei do mais forte mas cuidava da sociedade tentando não deixar ninguém para trás, também porque todos podem contribuir para a prosperidade do Capitalismo.

Esses princípios foram amplamente aplicados após a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos e na Europa. Os políticos pensavam que, aplicando os princípios keynesianos, a estabilidade económica e o bem-estar social poderiam ser garantidos em todo o mundo, evitando assim uma nova guerra mundial. Para isso, foram criadas as instituições de Bretton Woods (que mais tarde se tornariam o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio), a fim de solucionar problemas de orçamentos, de pagamentos, e promover a reconstrução e o desenvolvimento numa Europa dilacerada pela guerra e num mundo que desejava enfrentar uma nova era.

Este “Capitalismo embutido” funcionou: trouxe altas taxas de crescimento nos anos ’50 e ’60, especialmente no Ocidente industrializado, mas também em muitas nações pós-coloniais.

A crise dos anos ’70

No início dos anos 1970, porém, o “Capitalismo embutido” enfrentou uma situação de “estagflação”, uma combinação de alta inflação e estagnação económica. Nos Estados Unidos e na Europa, as taxas de inflação subiram de cerca de 3% em 1965 para cerca de 12% dez anos depois. Os economistas discutiram as razões da estagflação. Hoje, estudiosos como Paul Krugman indicam dois fatores:

O último argumento foi bem recebido pelos ricos, que a estavam à procura duma maneira de restaurar o poder da sua classe após o “Capitalismo embutido”. Nos Estados Unidos, a quota do rendimento nacional recebida pelos famoso 1% (a classe mais rica) tinha caído de 16% para 8% nas primeiras décadas do pós-guerra. Enquanto o crescimento económico tinha permanecido elevado, a classe mais rica não tinha sido muito prejudicada porque continuava a ter uma fatia muito grande de um bolo que continuava a crescer: mas quando o crescimento parou e a inflação explodiu, nos anos ’70, a sua riqueza começou a declinar de uma maneira muito mais óbvia. Como reação, tentaram não apenas reverter os efeitos da estagflação mas também explorar a crise como uma desculpa para desmantelar o mecanismo do “Capitalismo embutido”.

O Neoliberalismo

A solução apareceu na forma do Volcker Shock. Paul Volcker tornou-se Presidente da Federal Reserve dos Estados Unidos em 1979, nomeado pelo presidente Jimmy Carter. Seguindo as recomendações dos economistas da Escola de Chicago (como Milton Friedman), Volcker argumentou que a única maneira de parar a crise era acalmar a inflação aumentando as taxas de juros. A ideia era limitar a disponibilidade de dinheiro, estimular a poupança e, assim, aumentar o valor da moeda. Quando Reagan foi eleito como novo Presidente, em 1981, Volcker foi reconfirmado e continuou a elevar as taxas de juros até 20%. Isso provocou uma maciça recessão, taxas de desemprego de mais de 10% e, consequentemente, dizimou o poder dos sindicatos e dos trabalhadores que, no sistema do “Capitalismo embutido”, tinham conseguido “controlar” os excessos capitalistas. O Choque Volcker teve efeitos devastadores sobre a classe trabalhadora; mas foi eficiente reduzir a inflação.

Se a política monetária de rigor foi o primeiro componente do neoliberalismo a ser implementado no início dos anos ’80, o segundo foi a teoria económica sobre a oferta. Ronald Reagan acreditava que dar mais dinheiro aos que já eram ricos era uma maneira de estimular o crescimento económico, partindo da hipótese de que eles teriam investido em maior capacidade produtiva, criando assim lucros que seriam gradualmente espalhados para o resto da sociedade. Para isso, os impostos sobre a classe mais elevada diminuiu de 70% para 28% e o imposto sobre os capitais desceu para 20%, o nível mais baixo desde a Grande Depressão. Uma medida menos conhecida é que Reagan também aumentou os impostos sobre os salários da classe trabalhadora, pois o objetivo republicano era aquele dum “imposto fixo” generalizado.

Um terceiro componente do plano de Reagan consistia em desregulamentar o sector financeiro. Dado Volcker recusou apoiar essa política, Reagan nomeou Alan Greenspan como novo chefe da Federal Reserve em 1987. Greenspan, um monetarista que promoveu cortes de impostos e privatizou a previdência social, foi reeleito por vários presidentes republicanos e democratas até 2006: a desregulamentação que iniciou acabou por desencadear a crise financeira global de 2008.

No geral, estas políticas (que durante o mesmo período foram simetricamente aplicadas por Margaret Thatcher no Reino Unido, juntamente com a privatização selvagem) trouxeram a desigualdade social para níveis sem precedentes. A produtividade continuou a aumentar constantemente, enquanto os salários precipitaram com o Volcker Shock de 1973, mudando uma significativa percentagem de dinheiro dos trabalhadores para o capital. Mais tarde, os salários dos CEOs aumentaram em média 400% durante a década de 1990, enquanto os salários dos trabalhadores aumentaram menos de 5% e o salário mínimo federal diminuiu em mais de 9%.

Salário em 1973: 15.72 Dólares. Salário em 2000: 14.15 Dólares (em Dólares de 2001) – Fonte: R. Pollin, Contours of Descent (New York, Verso, 2005).

A maior quota do rendimento nacional foi assim capturada pelos estratos mais altos da sociedade e este fenómeno tem aumentado segundo um ritmo alarmante: o “estrato” mais elevado duplicou as entradas desde 1980, de 8% para 18% (o mesmo aconteceu na Grã-Bretanha, com um salto de 6,5% para 13% durante este período), restaurando níveis que não eram vistos desde a Época Vitoriana. De acordo com os dados do censo, os 5% dos lares americanos mais ricos viram o seu rendimento aumentar em 72.7% desde 1980, enquanto o rendimento médio nacional estava a estagnada ou a diminuir.

Em Dólares de 2007 – Fonte: Congressional Budget Office

Um “efeito cascata” que tornar os ricos mais ricos e não torna os outro mais ricos. E que também não estimula o crescimento económico, que seria a única justificação para este tipo de política económica. De facto, é verdade o contrário: desde o início do Neoliberalismo, a taxa média de crescimento per capita dos Países industrializados caiu de 3.2% para 2.1%. Portanto, o Neoliberalismo fracassou totalmente como uma ferramenta para o desenvolvimento económico, mas funcionou brilhantemente como uma maneira de restaurar o poder dos ricos, da elite.

Se o Neoliberalismo foi tão destrutivo para a maioria da sociedade, como é que os políticos conseguiram impor-lo? Em parte, isso tem a ver com a derrota das organizações dos trabalhadores após o Volcker Shock, a demonização dos sindicatos como “‘sufocantes” e “burocráticos”, as tentativas da Esquerda para abandonar o Socialismo depois do colapso da União Soviética e o abraço ao livre mercado, a ascensão do “consumidor” como uma figura chave da cidadania, particularmente na América. Poderíamos também indicar a crescente influência das lobbies corporativas (legais no sistema político dos EUA, camufladas em outros Países) e os conflitos de interesse (e este é um eufemismo) dos economistas académicos financiados por Wall Street.

Mas talvez, mais importante no nível ideológico, o Neoliberalismo tenha sido “vendido” com sucesso à sombra do valor tipicamente americano da “liberdade individual”, de ápice da “liberdade” (e também de Democracia!) nos outros Países.[6]. Voltando para os Estados Unidos, think tank conservadores como a Mont Pelerin Society, a Fundação Heritage e o Business Roundtable têm dedicado os últimos quarenta anos a vender a ideia de que a liberdade individual só pode ser verdadeiramente alcançada através da “liberdade” do mercado. Para eles, qualquer forma de intervenção estatal implica o perigo do totalitarismo. Em Europa, a Esquerda tem sido vítima dos seus próprios medos e, na tentativa de fugir do rotulo de “totalitarista”, abraçou de forma acrítica não apenas o livre mercado mas também o “pacote” completo com o Neoliberalismo incluído.

Uma visão, aquela neoliberal, que ganhou mais força quando os dois ícones da teoria, Frederich Von Hayek e Milton Friedman, ganharam o Prémio Sveriges Riksbank nos anos 70, um prémio normalmente referido como “‘o Nobel de Economia”, embora seja concedido pelos banqueiros suecos e não pela Fundação Nobel.

 

Ipse dixit.

Imagem de abertura: Medium

Fontes: na segunda e última parte.