Caso Novichok: a sardinha russa

Imaginem o Leitor estar num mercado e encontrar uma sardinha no chão. O que pensaria? Pensaria “Olha, deve ter caído de alguém que foi comprar na banca do peixe” ou “Olha, enquanto abasteciam o banco do peixe deixaram cair uma sardinha”. De certeza não pensaria “Alguém veio da Rússia de avião e deixou propositadamente uma sardinha no chão”.

No mundo dos media ocidentais é absolutamente normal pensar que a banca do peixe ao nosso lado não esteja minimamente relacionada com a sardinha; que esta ficou no chão após uma viagem de milhares de quilómetros; e que o responsável seja uma banca de peixe que fica no mercado dum outro País.

É isso que acontece no caso da aldeia de Amesbury, cerca de dez quilómetros de distância de Salisbury. Na segunda, em Março, um ex-espião russo, Serghei Skripal, e a filha dele foram envenenados com um gás nervoso russo, o Novichok. Agora, em Amesbury, outras duas pessoas foram hospitalizadas em condições muito graves, também afectadas pelo mesmo gás. Se o Novichok for a sardinha, a Rússia é a banca do peixe mais afastada: mas onde fica a mais próxima? Aí ao lado, em Porton Down.

A localidade é assim descrita pela sábia Wikipedia:

Porton Down é um parque científico, situado a nordeste da vila de Porton, perto de Salisbury, no Wiltshire, Inglaterra. É a sede de duas instalações do governo britânico: o Laboratório de Ciência e Tecnologia de Defesa do Ministério da Defesa (Dstl) – conhecido há mais de 100 anos como uma das instalações de investigação militar mais secretas e controversas do Reino Unido, que ocupa 7.000 acres – e um local do Public Health England.

Na verdade, Porton Down é um pouco mais duma simples “instalação militar”: é a principal estrutura inglesa de pesquisas relacionadas com armas bioquímicas. Era originário de Porton Down  o antrax com o qual em 1942 foi pulverizada a Ilha Gruinard durante um teste. Entre 1963 e 1975 outros testes interessaram Lyme Bay (bactérias vivas pulverizadas na atmosfera para simular um ataque de antrax). Porton Down também esteve envolvida em testes em humanos, até 20.000 pessoas participaram em vários ensaios desde 1949 até 1989. Em 2006, 500 veteranos afirmaram ter sofrido com experimentos, um dos quais tinha provocado a morte de Ronald Maddison, engenheiro da RAF, submetido ao teste do gás sarin em 1953.

Em Fevereiro de 2006, três ex-militares receberam uma indemnização extrajudicial depois de alegarem ter recebido LSD sem o seu consentimento, enquanto em 2008, 360 veteranos receberam 3 milhões de Libras.

A maior parte do trabalho realizado em Porton Down até hoje permaneceu em segredo. Bruce George, membro do parlamento e presidente do Comitê de Defesa, disse à BBC News em 20 de agosto de 1999:

Eu não diria que o Comitê de Defesa está a gerir Porton Down. Nós o visitamos, mas, com onze membros do Parlamento e cinco funcionários num departamento labiríntico como o Ministério da Defesa e as Forças Armadas, seria completamente errado e enganoso para mim dizer que sabemos tudo o que está a acontecer em Porton Down. É muito grande para nós sabermos, e em segundo lugar, há muitas coisas que acontecem lá que eu nem tenho certeza que os Ministros estão plenamente cientes, muito menos os parlamentares.

E onde fica Porton Down em relação às duas localidades palcos dos acidentes, Salisbury (o casal Skripal) e Amesbury (o último casal)? Eis o mapa:

Esta localização, no mínimo suspeita, é alegremente ignorada pelos media e até pelos especialistas. Exemplo: Stefano Piazza, especialista de segurança e terrorismo, entrevistado pelo site Il Sussidiario:

Está provado que o gás usado [no caso Skipal, ndt] veio diretamente da Rússia num frasco de perfume escondido na mala da filha do ex-espião.

Como é possível que o mesmo gás apareça agora numa outra localidade perto de Porton Down? Outro frasco de perfume oriundo da Rússia?

Pode ser, como já foi dito, que existam figuras em Moscovo que agem sem Putin estar ciente disso?

Existem várias teorias, a de vingança transversal entre espiões, há o chamado Druzya, um grupo de velhos amigos de Putin, um grande grupo de pessoas próximas ao Kremlin que decidem como acto de benevolência para Putin resolver contas pendentes sem que ele saiba disso. Resta que na Rússia os jornalistas desapareçam e morrem [também no Ocidente, ndt], oponentes e ex-agentes ligados à Rússia têm problemas com substâncias tóxicas. Esta é a foto.

Será que Londres mantém a verdade escondida?

Certamente todos os serviços de inteligência escondem algo ou dizem o que querem. Nesta história, é difícil entender o que realmente está a acontecer. A verdade é que esta substância usada para envenenar pessoas provou vir da Rússia. Nós podemos fazer todo o raciocínio que queremos, mas a pista está a apontar para Moscovo, não há dúvida. É muito estranho que, com o nível de contraterrorismo existente no Reino Unido, ainda não tenha havido um traço concreto por parte dos agentes britânicos.

Nesta história não conseguem encaixar-se as duas últimas vítimas, Dawn Sturgess e o marido dela, Charlie Rowley: até agora parecem um casal normal, com uma vida tranquila na pacata aldeia de Amesbury, sem nenhuma ligação ao mundo de espionagem ou do terrorismo. É difícil imaginar que em Moscovo alguém tenha desejado envenenar um anónimo casal inglês como “acto de benevolência para Putin”. E acerca das instalações de Porton Down nem uma palavra. O facto de ter quatro pessoas vítimas de substâncias tóxicas perto do maior centro inglês de investigação sobre substâncias tóxicas não levanta nenhuma suspeita.

Mas há algo interessante: contrariamente ao primeiro caso, o da dupla Skripal, este segundo episódio de envenenamento está a ser abafado. O Guardian de hoje, por exemplo, não dedica uma linha sequer ao caso; no Telegraph a última notícia é de dois dias atrás, enquanto no conceituado Times, Amesbury fica bem longe das primeiras páginas. É evidente que o governo inglês não tem nenhum interesse em realçar o acontecimento. Provavelmente porque um envenenamento perto de Porton Down pode ser suspeito, dois começam a ser demais: pode ser difícil convencer todos de que as sardinhas só chegam da Rússia.

 

Ipse dixit.

Fontes: Wikipedia (versão inglesa), Il Sussidiario

2 Replies to “Caso Novichok: a sardinha russa”

  1. Faz uns quinhentos anos, nós (digo nós porque ainda somos amigos) lecionávamos para crianças de escola, e lá houve alguém inesquecível: Cleópatra Amapoula: um tisco de gente preta, miserável, miudinha, carapinha desgrenhada, poucos dentinhos escuros e careados, mas ainda assim alegre e agitada, mais parecendo uma formiguinha, que a qualquer solicitação saía-se com esta: “profe, a Sra não vai me tirar para courinho, né?!” (talvez porque o pai trabalhava num curtume, batendo couro).
    No mundo dos adultos tem gente tirada para courinho no nosso querido ocidente, sejam interessantes ou desinteressantes, ou as duas coisas, dependendo da circunstância e do momento: Putin, Gadafi, Lula, Assad, Hitler (o campeão do courinho). Até tudo virar anedota, porque nada é o que parece e aparece.

  2. Isso não é Novichok, ou os Skrypal já a muito tinha morrido, é outra coisa. Agora Porton Down (tem um historial enorme, queixas de civis e militares é procurar na net de a décadas) graças ao bloguer volta a aparecer e com o mapa a coisa faz desconfiar entre as 2 pequenas cidades Porton Down.
    As sardinhas são de quem a imprenssa disser (ou quem nela manda)
    Se bem que no UK em próprio parlamento (camera dos comuns) e não só já vários disseram para acabar com “essas palermices”.
    E se antes era história mal contada agora é muito mal contada.
    Não sei qual o intuito do Boris Johnson(o historial diz muito) e de quem com ele colabora, mas que é um figura interessante lá isso é.

    Existem muitos interesses e para desviar atenções das lutas de poder, arranja-se isso como podia ser outra coisa.

    Em inglês it’s all smoke and mirrors.

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