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Em Nomine Patris et Mercatoris

A proposta do Ministro do Trabalho Di Maio de fechar as lojas ao Domingo é parte daquele que talvez é o projecto mais ambicioso do programa do Movimento Cinque Stelle (“Cinco Estrelas”) e que o fundador do mesmo movimento, Beppe Grillo, chamou de “o tempo libertado”: privilegiar o valor-tempo contra o valor-trabalho. Projecto ambicioso porque vai contra um dos totens do nosso modelo de desenvolvimento: a sagrada produtividade, mãe do eterno crescimento.

Não é coincidência que essa proposta seja incluída no que os Cinco Estrelas chamaram de “Decreto Dignidade”, um conjunto de reformas em parte aprovadas durante esta semana, em parte de próxima aprovação, que abolem as normas marcadamente neoliberais introduzidas nos últimos anos (pelo Partido Democratico, o “partido dos trabalhadores”…). Algumas das medidas contempladas neste Decreto Dignidade:

Voltando à questão do tempo: não podemos sacrificar tudo em nome da produtividade, isto é, para a equação produção-consumo segundo a qual, mesmo ao Domingo, é preciso apoiar a produção. O descanso dominical significa mais tempo para a contemplação, a reflexão e até para a família. Mais tempo para nós. E o tempo é uma riqueza, uma das mais valiosas.

O projecto de Di Maio tem a oposição de alguns grupos de consumidores, pessoas que não têm vergonha em terem sido degradadas de indivíduos para consumidores; pessoas que precisam engolir, como uma água e o mais rápido possível, o que produzem com a mesma rapidez. “Ao longo da semana trabalhamos, como podemos fazer as compras?”: como sempre foi feito até poucos anos atrás, quando as lojas estavam fechadas ao Domingo. E, obviamente, tem a oposição das empresas de distribuição, que têm medo de perder aqueles 12 milhões de italianos que compram aos Domingos.

Milagrosamente, o projecto Di Maio não tem a oposição dos sindicados: a prova de que Deus existe? “Não existe o direito de fazer compras”, afirma a Secretária da CISL. E este é um grande salto na história do sindicato, que com o governo do Partido Democratico tinha aprovado o Jobs Act: mas para poder continuar a navegar (e travar a hemorragia de inscritos) é preciso adaptar-se às mudanças do vento.

No início da Revolução Industrial, o sindicato foi decisivo para conter o massacre que as empresas estavam a perpetrar contra os trabalhadores. Mesmo crianças de 6 ou 7 anos de idade eram assumidas, com ritmos de trabalho que acabavam por matar. Mas ao longo do tempo o sindicato dobrou-se perante as leis do mercado, até casar a visão do pior Capitalismo e apoiar a precarização do trabalho ao grito de “melhor trabalhar pouco que não trabalhar de todo”.

Um dos aspectos que os sindicatos descuidaram por completo foi a questão do tempo: porque além dos salários e dos ritmos de trabalho, havia a questão da qualidade do trabalho e do mundo em volta dele. Nesta qualidade existe antes de tudo a saúde, mas esta inclui também o que chamamos de nosso “tempo livre”. Se gastarmos o nosso tempo livre no consumo, então nunca paramos de trabalhar, nunca conseguimos uma pausa do sistema. Daí a razão da distinção fundamental de Grillo entre “tempo livre” e “tempo libertado”: é possível ter tempo livre e mesmo assim gasta-lo no mecanismo “produzir-consumir-morrer”. Vice-versa, o tempo libertado é tempo autenticamente nosso, aquele que existe fora do sistema da produção e do consumo: fora das lojas, fora dos hipermercados.

Aquilo que não conseguimos entender aqui no burgo é perfeitamente entendido e implementado na Coreia do Sul, onde vão ser drasticamente reduzidas as horas de trabalho para contrastar o fenómeno da karoshi: termo de dificílima tradução literal que indica a “morte por fadiga”. No Ocidente este ponto tinha sido já ultrapassado quando os próprios empresários, entre os séculos XIX e XX, descobriram que os ritmos obsessivos matavam a mão de obra que não podia mais ser substituída com as massas camponesas que já tinha abandonado os campos. Aquela massa, tendo ocupado as cidades, estava a consumir-se. Então o trabalhador tinha que ser salvo não com espírito de caridade, mas com espírito de empreendedor.

Agora na Coreia do Sul enfrentam o mesmo problema e, tal como com o governo italiano, o Presidente da Coreia do Sul explica que a nova lei é precisa para “dar mais tempo às famílias”. Escusado será dizer que as grandes corporações estão a tentar travar a lei: os trabalhadores devem sobreviver, mas apenas para uso e consumo das empresas…

Aquele sul-coreano de “dar às famílias mais tempo em si” e do novo governo italiano não são projectos de caridade mas são ideológicos: é um ponto de viragem. Hoje um centro comercial pode ficar aberto durante 12 ou até 14 horas por dia, sete dias por semana. Com o descanso ao Domingo seriam sempre 12 ou 14 horas por dia, seis dias por semana: 312 – 364 horas por mês nas quais é possível efectuar compras.

Pensamos nisso: hoje um centro comercial pode ficar aberto até 14 horas por dias durante 31 dias. São 434 horas num mês. São precisas? Todas? O que raio temos que comprar? O que há de tão precioso que tem que estar disponível também ao Domingo? Até onde chega a nossa escravidão?

 

Ipse dixit.

Fontes: Massimo Fini, Guida Fisco