Porque Wikipedia não é de confiança

Wikipedia é de confiança? Não. Sim. Depende.

No geral a resposta deveria ser “não”, mas há (poucas) excepções. Quem segue Informação Incorrecta terá notado que é comum poder ler trechos da enciclopédia online mas é mais difícil vê-la listada entre as fontes: isso deve-se em parte à natureza de Wikipedia, que não se presta muito a ser utilizada qual fonte primária, em parte ao facto de tal eventual fonte carecer isenção. Para entender melhor estes aspectos é preciso observar o funcionamento da enciclopédia online.

Wikipedia nasce como tentativa de explorar a ideia de inteligência colectiva, um conceito nascido no final do século passado mas cuja origem é bem mais antiga: de facto, apareceu pela primeira vez na obra Sur les élections et autres textes de Jean-Antoine-Nicolas de Caritat Condorcet. A ideia em si é simples: numa comunidade, o grupo de pessoas mais numeroso tem mais possibilidades de encontrar uma solução melhor. Meu avô, que não era matemático nem filósofo como Condorcet, dizia “quatro olhos veem melhor do que dois”.

Outros pensadores chegaram à mesma conclusão (Marx, por exemplo, mas também H. G. Wells e  Arthur C. Clarke), até o estabelecimento de dois princípios por parte de Pierre Lévy (1994):

  1. ninguém sabe tudo, todos sabem alguma coisa
  2. a totalidade do conhecimento reside na humanidade

E assim é.

A intenção de Wikipedia é esta: explorar os dois princípios com a partilha do conhecimento e a cultura da participação para criar uma obra monumental que seja continuamente actualizada e corrigida pelos utilizadores. Um trabalho open source, que já tem tido sucesso com os softwares (veja-se os sistemas operativos Linux, por exemplo). A ideia é boa: apresenta alguns problemas (que não vamos tratar aqui), mas o conceito de base já demonstrou ter valor.

Exemplo: eu consulto Wikipedia, da qual sou leitor, mas da qual posso também ser editor, porque tenho o meu conhecimento que posso compartilhar ou utilizar para completar as partes em falta ou ainda para corrigir noções erradas. Eu publico na Wikipedia um artigo que contém erros? Não há problema: outros leitores irão reparar no meu erro e corrigi-lo. Com o tempo, todos os erros serão emendados e o que sobrar será o conhecimento correcto e actualizado. É um mecanismo que funciona: precisa de alguns tempos, mas acaba por fornecer bons resultados.

Então, se a ideia for válida, qual o problema de Wikipedia? O problema é a estrutura desta enciclopédia online: de facto, entre os leitores e a publicação existe uma elite de super-leitores, os chamados Administradores, que têm poderes especiais. Anónimos, os Administradores protegem as páginas, movem os ficheiros, excluem e restauram páginas e ficheiros, bloqueiam e desbloqueiam usuários, atribuem funções a outros usuários, apagam o conteúdo, o objecto ou o nome dum usuário duma página publicada ou duma versão anterior da mesma.

Wikipedia assegura que a eleição dum Administrador é democrática, e nós acreditamos nisso: mas é possível supor que possam ser eleitas pessoas cujos pensamentos contrastam com os princípios ditados pelo fundador e ainda chefe de Wikipedia, Jimmy Vales? Wales é um declarado Objectivista, o que segundo a mesma Wikipedia (versão portuguesa) significa:

que a realidade existe independentemente da consciência, que o ser humano tem contato direto com a realidade através dos sentidos, que pode ter conhecimento objetivo pelo processo de formação de conceitos, da lógica dedutiva e indutiva, que o objetivo moral da vida humana é atingir a própria felicidade ou interesse racional, que o único sistema social consistente com esta moralidade é um que respeite os direitos do seres humanos à vida, liberdade, propriedade e procura da felicidade, ou seja, capitalismo.

Portanto: razão, individualismo e Capitalismo. E esta é Wikipedia. Ficam de tal forma explicados os inúmeros exemplos de “contrastes” (e este é um eufemismo) entre leitores que desejavam participar na edição da enciclopédia online e administradores cuja principal função parecia ser censurar assuntos ou pontos de vista incómodos. Internet está repleta de experiências destas.

Diz-me com quem andas…

Pelo que não admira ler a lista dos maiores financiadores do projecto:

  • Microsoft
  • Google
  • Apple
  • Bill and Melinda Gates Foundation
  • Intel
  • Adobe
  • Bank of America
  • Boeing
  • General Electric
  • Chevron
  • Hewlett Packard
  • Goldman Sachs
  • Alfred P. Sloan Foundation (General Motors)

…só para citar os nomes mais conhecidos. Que tipo de informação poderá ser viabilizada com um apoio financeiro deste tipo?

Isso explica quais principais falhas de informação podem facilmente ser encontradas no enciclopédia online: a narrativa oficial será sempre e só aquela da classe dominante, qualquer outra versão será ridicularizada ou até nem encontrada. Uma narrativa de tipo básico, agarrada ao politicamente correcto e aos ditames da ciência oficial, sem nenhuma concessão.

Wikipedia nasce dum conceito talvez em parte utópico mas válido. O sucesso do projecto é facilmente explicável: é um dos mais frequentados sites do mundo digital porque é suficientemente simples, tranquilizadora e pronta para o consumo. O ideal na nossa rápida e superficial sociedade que procura respostas rápidas e superficiais.

Infelizmente, a sua estrutura hierarquia e os seus financiamentos condicionam os resultados finais, tornando Wikipedia uma engrenagem perfeitamente integrada no mecanismo da propaganda de regime.

O caso Philip Cross

O antigo diplomata Craig Murray dedicou no passado mês de Maio um artigo ao caso de Philip Cross, “alguém” que não tem um único dia de folga para editar Wikipedia em quase cinco anos: Cross editou todos os dias desde 29 de Agosto de 2013 até 14 de Maio de 2018, incluindo cinco dias de Natal. Um total de 1.721 dias consecutivos de edição, 133.612 edições ao longo de 14 anos. São mais de 30 edições por dia, sete dias por semana.

Murray descreve qual o seu ponto de vista acerca do caso:

As ideias de “Philip Cross” são exatamente as mesmas ideias políticas declaradas por Jimmy Wales, o fundador da Wikipedia. Jimmy Wales nos últimos três dias no Twitter sempre foi duro e grosseiro contra qualquer pessoa que tenha feito perguntas sobre as actividades de Philip Cross. O seu compromisso em querer reafirmar a liberdade de Cross para operar na Wikipedia seria justificada se as intervenções de Cross não tivessem uma raiz comum com as ideias de Wales, que é activo contra Jeremy Corbyn, que apoia o bombardeamento da Síria, que apoia as políticas de israel, que é tão doente de “Blairite” ao ponto de casar-se com a secretária de Blair, e faz parte do conselho do Guardian Media Group Ltd (neoconservador e neoliberal).

O que não representa nenhuma novidade: já em 2007, a BBC tinha revelado como fosse evidente a intervenção da CIA na edição dos artigos. Na altura existia uma aplicação (Wikipedia Scannner) que permitia encontrar a verdadeira origem dos editores, embora escondido atrás de pseudónimos: e o papel da CIA tornou-se evidente (como aquele do Vaticano contra as informações acerca do líder do Sinn Fein, Gerry Adams). Obviamente, Wikipedia Scanning já não está disponível, mas pouco importa, pois a mão da CIA continua evidente.

No caso do United Airlines Flight 93, o avião que caiu em 11 de Setembro na Pensilvânia, Wikipedia recusa publicar que o vice-Presidente Dick Cheney ordenou que o avião fosse abatido, o que contradiz todas as declarações sobre a heroica resistência dos passageiros. Wikipédia recusa mudar o artigo apesar do próprio Cheney ter admitido que tinha ordenado o abate e que a ordem foi prontamente executada.

Mais recentemente, os artigos sobre o caso do voo MH17 da companhia aérea malaia nos céus da Ucrânia demonstram como os artigos de Wikipédia são propaganda que oferecem uma documentação histórica muitas vezes baseada em fontes enganosas se não falsas. Os artigos de Wikipedia sobre o assunto constituem propaganda contra a Rússia, não uma história construída

Wikipedia escreve artigos sempre filtrados, pois estes nunca podem contradizer o modelo de notícias espalhado pelos média (e a CIA).

Então: Wikipedia é útil se…?

Pelo que, voltando à pergunta inicial: Wikipedia é de confiança? Não. Sim. Depende. Pois depende das nossas espectativas.

Se a ideia for ter uma vaga noção acerca do que estamos a falar, então Wikipedia pode ajudar, lembrando sempre a falta de “profundidade” (perfeitamente compreensível no caso duma enciclopédia) e sem nunca esquecer a linha de pensamento que constitui toda a base do projecto Wikipedia e que condiciona a redação dos artigos.

Wikipedia é também útil para entender qual o ponto de vista das classes dominantes sobre inúmeros assuntos. Este é um aspecto que não devemos desconsiderar: um bom e útil exercício é pegar numa afirmação de Wikipedia, torna-la negativa e procurar os resultados com um motor de pesquisa.

Wikipedia é moderadamente útil para obter noções simples, factuais (por exemplo: “qual o número de habitantes de Portugal?”), lembrando todavia que muitas vezes não é devidamente actualizada: melhor neste aspecto The World Factbook da CIA.

Wikipedia é inútil e prejudicial no caso de opiniões, artigos de carácter histórico, visões alternativas da realidade e qualquer teoria que não esteja em linha com os dogmas da ciência oficial e da narrativa ocidental.

 

Ipse dixit.

Relacionados:

Fontes: Craig Murray, BBC, WikiMedia Annual Report 2016-2017

3 Replies to “Porque Wikipedia não é de confiança”

  1. É uma história dominante à mão, uma interpretação dominante à mão, às vezes com opiniões ligeiramente diferentes, de um país para outro, mas principalmente define o que é bom questionar e o que convém pensar ao contrário…em todo caso duvidar. Vista assim serve, mas a sua contribuição ao desconhecimento e a mentira é ser considerada pela maioria como A enciclopédia à mão para tudo.

  2. A única coisa que a propaganda dos segmentos dominantes não edita é o futuro…
    A Wikipédia tem algumas brechas. Cruzando informações de versões diferentes vc consegue identificar muitas coisas.
    Quanto a ser sintética, os currículos escolares/acadêmicos não são diferentes, exceto em temáticas que não comprometem a mentalidade burguesa em formação do futuro bom e leal servo…
    Estou envolvido com pesquisas sobre as relações históricas entre a cooptação da inteligência e processos literalmente conspiratórios que envolvem dominação e poder.

    1. Exato! E o que é uma coisa numa língua é outra literalmente diferente, às vezes o oposto na outra.
      Mas até o google maps é engraçado, use uma vpn ou outro meio e até as fronteiras mudam exemplo a expimentar a zona da Caxemira em hindi, urdu (Paquistão) ou mandarim com um ip*falso de lá. Esse é o mais óbvio mas tem mais.
      É exprimentar e ver os resultados.
      Ou para o Chaplin Israel em farsi, árabe*escolher bem, tipo Síria ou até ocidentais/orientais e aqulo muda ou até desaparece.

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