Nietzsche, eram diametralmente opostos um ao outro. Enquanto Marx procurava “a razão”, Nietzsche favorecia “a paixão”.
O primeiro acreditava no coletivo, o segundo no indivíduo. Marx foi o campeão das massas e dos oprimidos, enquanto Nietzsche odiava “o rebanho” e acreditava que o nível mais baixo da escala social deveria ser mantido sob controle. Marx era pela igualdade, Nietzsche pela hierarquia.
No entanto, os dois tinham muitas coisas em comum. Ambos eram alemães (Marx de origem hebraica por parte do pai, Nietzsche filho duma família luterana de remotas origens polacas) e ambos viveram em exílio na Inglaterra, na Suíça e na Itália. Ambos tinham problemas de dinheiro e de saúde, e ambos eram portadores de cicatrizes, consequências de duelos. Ambos eram indivíduos polémicos, pungentes, e nunca acabaram o que acreditavam serem as suas obras-primas: O Capital e A vontade de poder.
Amplamente ignorados na vida, alcançaram a fama após a morte. O amigo mais fiel de Nietzsche, o compositor Peter Gast, disse no funeral, em 28 de Agosto de 1900: “Santificado seja o vosso nome para todas as gerações futuras”. Da mesma forma, Friedrich Engels declarou no funeral de Marx, em 17 de Março de 1883: “O seu nome durará séculos”.
Mas o que verdadeiramente une Marx e Nietzsche é a tragédia: não da vida deles, mas da utilização que foi feita dos seus pensamentos, fruto das obras de discípulos muito menos inteligentes. Hoje citamos Marx e o pensamento vai para o “Comunismo” da União Soviética; citamos Nietzsche e as ideias correm para o Nazismo do Terceiro Reich. No mês em que se comemora o 200º aniversário do nascimento de Marx, vale a pena reconsiderar este último aspecto: a distância entre os homens e os seus seguidores.
Marx nunca usou o termo “falsa consciência” e não tinha a obsessão da
“luta de classes” ou do “coletivo”: Marx acreditava no desenvolvimento
do indivíduo. A sua filosofia comunista era apoiada pela crença de que
somente em tal sociedade os indivíduos poderiam alcançar a liberdade e a
auto-realização.
Ele e Engels escreveram, no livro de 1846 The German Ideology, que “somente na comunidade os indivíduos têm os meios para cultivar os seus dons em todas as direções. Portanto, a liberdade pessoal é possível apenas na comunidade”. Reparamos: “liberdade pessoal”, era este o fim último de Marx, não o “coletivo”.
Ainda mais importante, Marx não era “anticapitalista” na forma como o termo é usado hoje por certos ativistas políticos dignos do McDonald’s: Marx acreditava que o capitalismo produzia progresso e prosperidade indescritíveis. No Manifesto do Partido Comunista (1848), ele e Engels escreveram que o capitalismo tinha mostrado “tudo o que a atividade humana pode criar”, e que tinha também “realizado maravilhas que superam as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais góticas. Possibilitou expedições que ofuscam todas as do passado e as próprias cruzadas”.
O que Marx tinha entendido é que o tempo do capitalismo estava prestes a expirar e que era imperativo que a sociedade passasse para o próximo nível, o comunismo. Mas Marx nunca deu indicações para a realização duma sociedade comunista: o que Marx deu foi um excepcional instrumento de análises, não o manual do pequeno revolucionário.
A maioria dos académicos marxistas conhece muito bem a diferença entre o que Marx disse e o que foi feito sob a bandeira do marxismo. Totalitarismo, campos de trabalho, deportações e limpeza étnica nada têm a ver com os escritos e a filosofia de Karl Marx: ele ficaria chocado pelos crimes cometidos em seu nome. Nada daquilo que foi (e ainda mais é hoje) apresentado como “comunismo” (como a União Soviética) reflecte o que Marx pensou ou escreveu.
Nietzsche, acima de tudo, detestava os anti-semitas nos quais via a personificação dos espíritos malignos do ressentimento e da inveja. O anti-semitismo era o sentimento das pessoas fracas e inferiores, para as quais “alguém deve ser culpado pelo facto de eu não estar a sentir-me bem”.
Em Humano, Demasiado Humano (1878), Nietzsche escreveu sobre o quanto as pessoas odiavam os judeus por causa “da sua energia e da sua inteligência superior, a excelência do seu espírito e a sua força de vontade, acumulados de geração em geração na escola dos seus sofrimentos”; e ainda, que o sucesso deste povo superior “provoca inveja e ódio tornando os judeus os bodes expiatórios para todas as calamidades possíveis, públicas e privadas”. Ele chegou mesmo a apoiar os judeus contra os seus compatriotas cristãos: “Que bênção a presença de um judeu entre os alemães! Olhem para o tédio, o cabelo loiro, os olhos azuis e a falta de inteligência no rosto, na linguagem e na atitude dos alemães. Vejam os seus hábitos preguiçosos e a necessidade de descanso que eles têm”.
Nietzsche odiava, além dos seus compatriotas, também o militarismo alemão. Este foi o tema de um dos seus ensaios de 1876, Considerações Extemporâneas, no qual previu corretamente que a vitória da Alemanha na guerra contra a França teria levado ao aumento do militarismo no seu País, e também o declínio cultural. Como é possível ler no livro do inglês Abraham Wolf, A Filosofia de Nietzsche (1915), “a teutomania estava muito longe do coração e da alma de Nietzsche. Era apenas o chauvinismo prussiano envolto em pele de Nietzsche”.
Quando Nietzsche utilizava a palavra Kampf, não significava a luta armada e muito menos a guerra, mas a luta pessoal para subir acima da opinião opressiva dos outros, para tornar-se uma versão melhor de si mesmos. Nietzsche era um individualista que teria sido rejeitado pelos comícios dos nazistas porque estes encarnavam exatamente a “mentalidade da manada”, o comportamento coletivo imprudente que deplorava.
Embora nenhum dos dois apoiasse a guerra ou invocasse os campos de concentração, pode-se argumentar que eram irresponsáveis e ingénuos.
Nietzsche usava uma linguagem marcial, os seus escritos são embutidos de metáforas militares e de retóricas batalhas de sobrevivência. Fala de “mestres” e da sua constante batalha contra os “degenerados”, os “escravos” e os “fracos”. Puro néctar para racistas, eugenistas e fascistas adoradores do poder. Mas muitas destas passagens podem ser encontradas numa obra póstuma, A vontade de poder, baseada em considerações e pensamentos inacabados dos quais o mesmo Nietzsche não estava feliz (e que foram amplamente editados pela irmã, curadora da publicação). Este livro foi uma verdadeira tragédia e, não acaso, tornou-se um dos mais lidos entre os fascistas nos anos ’20 e ’30.
Também Marx não pode escapar à crítica. Como Edmund Burke tinha dito sobre a Revolução Francesa, quando uma nova sociedade for baseada na ilusão de que a natureza humana é essencialmente benévola e que, perante a oportunidade, as pessoas vão cooperar e ser altruístas, então serão as piores pessoas que tomarão o poder. Analogamente, Marx sofria do falso mito de que a liberdade e a igualdade podem ir em frente em conjunto, quando na verdade estão de frente e em competição: quanto mais tivermos uma, menos poderá ser conseguida a outra. Numa sociedade livre, na qual as pessoas são deixadas em paz, algumas se afirmarão e consequentemente ficarão mais ricas do que outras. Por outro lado, a única maneira de impedir que isto aconteça e manter assim a igualdade, é que o Estado force a redistribuir as riquezas, o que limita a liberdade.
Irresponsáveis e / ou ingénuos, talvez sim. Mas culpar Marx por causa dos crimes do Comunismo e Nietzsche por aqueles do Nazismo é um erro grave, uma caricatura da realidade. Em vez disso, devemos culpar os seus seguidores, os discípulos. Se Marx e Nietzsche podem ser culpados de algo, a única falha que pode ser apontada é de não ter levado em conta o facto de que antes deles muitos mestres já tinham sido deliberadamente reinterpretados.
A moral? Simples: não sejam discípulos. O próprio Nietzsche tinha afirmado:
Não tenho utilidade para os discípulos. Que todos sejam o verdadeiro seguidor de si mesmo.
Ipse dixit.
Fonte: Spiked