Dizer que o teu direito à privacidade não importa, porque não tens
nada a esconder, é como dizer que a tua liberdade de expressão não importa,
porque não tens nada a dizer. Porque mesmo que tu não utilize os teus
direitos hoje, outros precisam disso. É como se dissesses: os outros não me
interessam.
Perfeito. Absolutamente perfeito. E ao ler estas linhas é impossível não pensar logo na quantidade de dados, públicos e privados, que costumamos entregar às empresas que fornecem serviços na internet. Serviços ditos “gratuitos” mas na realidade pagos com a venda das nossas imagens, recordações, gostos, compras, amizades e tudo quanto é possível mostrar ou carregar online.
Pensar em todas estas coisas é correcto mas limitativo: existe outro nível abrangido pelo direito à privacidade do qual abdicamos com extrema facilidade em nome do “não tenho nada a esconder”; e é algo que está a ganhar espaço não apenas no interior dos dispositivos informáticos como também nas ruas das nossas cidades.
Introduzido pela Apple no seu iPhone X, o reconhecimento facial chegou para ficar. E aprimorar-se, porque é um ponto-chave na política de vigilância e do controle dos indivíduos. A rede está a adaptar-se: Facebook exige o reconhecimento facial. E Facebook não é apenas uma rede social, é um continente com dois bilhões de habitantes: tem a sua constituição, os seus valores, a sua política exterior, os seus sonhos de expansão, as suas paixões e até famílias (anunciadas ontem por Mark Zuckerberg: Facebook para encontrar a alma gémea). Tem também um algoritmo, cujo nome é DeepFace, que pode identificar os usuários com base em qualquer foto publicada, sob o pretexto de melhorar a segurança e evitar a pirataria de contas.
Porque temos que lembrar isso: tudo é feito sempre em nome da nossa segurança.
desbloquear o telefone graças ao seu sistema de identificação facial, ou de validar os pagamentos através do rosto. “É incrível o que o teu rosto pode fazer” é o slogan amigável da marca.
Google não quer ficar atrás e acredita no FaceNet, usado para as versões não-europeias do Google Fotos, capaz de reconhecer rostos com uma precisão de 99.63%.
A China Construction Bank, um dos bancos estatais do País, permite retirar dinheiro através do reconhecimento facial. AliPay, uma subsidiária do gigante chinês AliBaba, está a testar o sistema nos seus supermercados para regular as compras, enquanto a cadeia de fast food KFC dos EUA instalou o mesmo dispositivo num dos seus restaurantes em Hangzhou. O sistema agora é capaz de nos identificar em todos os lugares, no perfil do Facebook, na conta do Instagram, nas compras mais recentes, nos sites visitados, tudo centrifugado numa espiral de desejo compulsivo onanista.
O FBI utiliza a tecnologia Next Generation Identification desde 2011. Desenvolvido pela Lockheed Martin em companhia de (entre outros) IBM e National Center for State Courts (uma organização non-profit que trata de questões judiciais nos EUA), adivinhem o que o sistema faz?) Exacto: identifica rostos.
Voltando aos computadores caseiros: nas máquinas Lenovo dotadas dos sistemas Microsoft Windows XP, Vista, 7 e Windows 8 podemos encontrar VeryFace que, obviamente, reconhece os rostos com a webcam. Em Windows 10 deixou de funcionar? Não há crise: é possível instalar KeyLemon, 100% gratuito.
O governo chinês, o rei
da vigilância com mais de 176 milhões de câmaras instaladas em todo o
País, acaba de adotar um novo software que, além de monitorizar os cidadãos, visa prever e prevenir o crime. É um sistema de reconhecimento facial como aquele instalado em mais de 50 milhões de câmaras nos Estados Unidos.
Numa entrevista ao Financial Times, o porta-voz da Cloud Walk Technology afirma: “Claro, se alguém compra uma faca de cozinha, não será suspeito”. Não, por enquanto não será. Mas o software está lá, trabalha, avaliará o risco potencial e alertará automaticamente as autoridades para que possam intervir rapidamente: “A polícia usa um sistema de classificação baseado em big data para classificar grupos de indivíduos suspeitos com base em onde eles vão e o que fazem”.
Baidu, outro gigante da internet chinesa, trabalha na questão. Em particular, os seus engenheiros desenvolveram um programa de pesquisa para crianças desaparecidas que compara fotos de pais com crianças raptadas. De acordo com a Baidu, o software alcança resultados relevantes em 99.7% dos casos. Pensamos nisso: crianças raptadas. Quem pode resistir perante um sucesso de quase 100% na procura de crianças raptadas? É ou não é “em nome da nossa segurança”? Melhor: nossa e dos nossos filhos.
Na Rússia, o aplicativo FindFace permite que uma foto encontre o perfil de alguém no Vkontakte, o equivalente russo do Facebook. FindFace permite encontrar a página no social media de uma pessoa depois de ter-lhe tirado uma foto na rua. O algoritmo subjacente está baseado numa rede neural que pode realmente ajudar a identificar qualquer pessoa em qualquer imagem ou vídeo, criando assim oportunidades ilimitadas para um sistema quase invisível de vigilância total.
Tudo isso não é ficção científica, não é futuro: é já agora. Claro, são apenas os primeiro passos, é o começo. Porque não tentar imaginar como será amanhã? Acesso negado a determinados prédios ou lojas, talvez por causa da nossas atividades online, da nossa história, das nossas amizades, das nossas opiniões políticas ou do nível da nossa conta bancária? Não podemos dizer “não, isso nunca acontecerá”. Lembramos da nossa segurança, o Cavalo de Troia que abre todas as portas da nossa vida: o que acontecerá quando a biometria será apresentada como o único baluarte contra o terrorismo ou o último recurso para garantir a incolumidade nossa e dos nossos familiares?
Negar um futuro assim significa negar o que já aconteceu. A internet original era diametralmente oposta e visava romper com o mundo real, deixar para trás a nossa identidade para
mergulhar num novo mundo que poderia finalmente quebrar o peso dos
preconceitos e de outras discriminações. Aquela internet, nascida há poucos anos, já está a ser substituída pela pesada realidade, em nome da comodidade antes e da segurança amanhã.
O risco é perder o direito à vida offline, que é a garantia de poder conduzir um vida normal fora das redes: o direito de levar uma existência desconectada. O direito de viver de forma normal e com a liberdade de escolha: poder entrar e sair da realidade virtual, até registrar-se ou não no mundo digital.
Ipse dixit.