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Judaísmo? Duas respostas

Dois comentários, duas respostas.
Por uma questão de cavalheirismo, começamos com Maria.

Pergunta a Sempre Muy Nobre Maria:

Dúvida crucial Max: existem dois Torah, um dos judeus ortodoxos e outro dos judeus sionistas? Nunca li Torah algum. mas sempre recebi informações que o dito cujo era um livro de ódio racista que tratava pejorativamente os outros (não judeus, o povo eleito) como gentios a serem exterminados, escravizados e outros privilégios. Estou tão enganada assim? Por favor, alguns esclarecimentos seriam bem vindos e agradeço antecipadamente.

(e vi agora que a mesma pergunta é posta por Nuno)
Posso responder-te com uma pergunta: mas tu conheces uma religião que não seja intolerante?

O ponto de partida de quase todas as religiões é que existe um Deus e que este decidiu falar contigo, não com os outros, mas só contigo. Portanto: tu és o escolhido, o detentor da verdade absoluta. Isso já por si coloca-te na posição de poder avaliar o resto da humanidade e julga-la, na melhor das hipóteses, como um bando de pobrezitos que não conhece a verdade.

Como se não fosse suficiente, a maioria das religiões sugere o proselitismo, o que significa fazer que o resto da humanidade mude de ideia, sempre partindo do princípio de que tu estás certo e enquanto os outros erram. Poucas (se é que existem) são as religiões que convidam a um confronto de valores, uma troca de informação para estabelecer uma verdade superior. E não poderia ser de forma diferente porque as religiões têm antes a tarefa de proporcionar um sentido à vida das pessoas para depois passar a regulamentar a sociedade secular, criando novas castas, influenciando as escolhas políticas. O judaísmo não é uma excepção.

Do ponto de vista literário, os textos da religião judaica são a Torah, o Talmud e o Midrash.

  • A Torah indica os primeiros cinco livros da Bíblia, a mesma utilizada entre os cristãos.
  • O Talmud é uma recolha de discussões entre sábios
  • O Midrash é uma forma de interpretação dos dois anteriores textos sagrados.
Dos três, é o Talmud a ser acusado de ser o livro mais racista, que prega o desprezo por todos aqueles que não são judeus. Eu acho que o Talmud é de facto intolerante e racista, mas na medida em que são intolerantes e racistas as outras religiões também. Como muitas vezes acontece, o problema é a interpretação.
Tolerância e Guerra Santa

Para entende-lo melhor podemos fazer uma comparação com a “nossa” Bíblia: é esta intolerante ou racista? Qualquer pessoa pode responder “não”. Mas será a resposta correcta? Falamos de “tolerância”: 

Se um homem ou uma mulher que vive numa das cidades que o Senhor dá a
vocês for encontrado fazendo o que o Senhor, o seu Deus, reprova,
violando a sua aliança
e, desobedecendo ao meu mandamento, estiver adorando outros deuses,
prostrando-se diante deles, ou diante do sol, ou diante da lua, ou
diante das estrelas do céu,
e vocês ficarem sabendo disso, investiguem o caso a fundo. Se for
verdade e ficar comprovado que se fez tal abominação em Israel levem o homem ou a mulher que tiver praticado esse pecado à porta da sua cidade e apedreje-o até morrer. (Deuteronômio, 17:2)
Uma ode à tolerância, sem dúvida.
Mudamos de assunto: a Guerra Santa é o espírito do Alcorão? E na Bíblia, como é?

Proclamai isto entre os povos: chamem para a guerra santa, incitem os bravos, venham, todos os guerreiros subam. Com as suas enxadas, façam espadas e lanças com as suas foices; até o mais fraco diz: sou um guerreiro! (Joel, 4:9).

Como curiosidade, procurem o Livro 4 de Joel nalgumas Bíblias online: nesta ou nesta (ambas anónimas), numa das versões fornecidas pela Sociedade Bíblica do Brasil, em Bíblia.com ou ainda na versão oferecida pela Paróquias de Portugal. E mais não digo.
Ainda acerca da guerra santa:
Comecem a santa batalha contra ela [Jerusalém, ndt]; força, vamos assaltá-la no meio do dia. (Jeremias 6:4)

Nota: na versão portuguesa desaparece o adjectivo “santa”.
Voltemos ao discurso “tolerância”:

Como
havia feito em Betel, Josias tirou e profanou todos os santuários
idólatras que os reis de Israel haviam construído nas cidades de Samaria
e que provocaram a ira do Senhor. Josias também mandou sacrificar todos os sacerdotes daqueles altares
idólatras e queimou ossos humanos sobre os altares. Depois voltou a
Jerusalém.(Reis 2, 23:19)
Então
Moisés disse aos juízes de Israel: “Cada um de vocês terá que matar
aqueles que dentre os seus homens se juntaram à adoração a Baal-Peor”.
Um israelita trouxe para casa uma mulher midianita, na presença de
Moisés e de toda a comunidade de Israel, que choravam à entrada da Tenda
do Encontro. Quando Fineias, filho de Eleazar, neto do sacerdote Arão, viu isso, apanhou uma lança,
seguiu o israelita até o interior da tenda e atravessou os dois com a
lança; atravessou o corpo do israelita e o da mulher. Então cessou a
praga contra os israelitas.(Números 25:5)
Ao pegar nestes passos, como em muitos outros, seria possível concluir que a Bíblia é uma espécie de manual do aprendiz ditador, um livro que promove a guerra santa (a Jihad!) e explica como massacrar alegremente todos os fieis de religiões e Países diferentes. Mas a Bíblia é também o livro que afirma “ama o teu próximo como a ti mesmo” ou “não matar”. Então, em que ficamos?
Ficamos assim: as três grandes religiões atravessaram uma fase de expansão na qual ainda eram vulneráveis. Foi naquelas alturas que houve um “serrar as fileiras” também como forma de preservar-se dos ataques exteriores. É nesta fase que encontramos os preceitos mais “crus”, quando os Deuses pegam na espada e conduzem os fieis à vitória.

Uma vez ganha a estabilidade, as atitudes mais fortes foram progressivamente abandonadas em prol de algo que fosse mais facilmente aceitável por parte das grandes massas. Esta é a altura em que os Deuses repõem a espada e oferecem rosas (com espinhos no caso do Cristianismo porque tem sempre que haver um pouco de sofrimento).

As lutas de Maomé no Alcorão (na alvorada do Islão) são a versão islâmica das batalhas das doze tribos de israel (a parte mais antiga do Antigo testamento), assim como os preceitos “hediondos” do Talmud reflectem a perseguição dos Romanos e dos seus aliados.

Judaísmo ortodoxo e judaísmo ortodoxo moderno
O problema nasce no momento em que houver indivíduos que não entendem que a guerra acabou. É por causa disso que se fala dum sionismo religioso, que podemos identificar (apesar de não serem a mesma coisa) com o judaísmo ortodoxo moderno: esta vertente religiosa se reconhece no Estado de israel, põe no centro do mundo o povo de israel e o resto é secundário (e dispensável). É aqui que encontramos a interpretação (e a consequente instrumentalização) mais negativa do Talmud.

O judaísmo ortodoxo moderno atribui um papel central ao “povo de israel”, colocando um elevado grau de nacionalismo na interpretação dos textos sagrados. Isso provoca um paradoxo: apesar de ser , no nome e nos factos, uma variante mais moderna do judaísmo (as raízes podem ser encontradas no final do 1800) e de rogar a aceitação da modernidade, a colagem ao Sionismo determina que a interpretação dos textos sagrados seja menos tolerante em relação aos gentios. Pelo que: um judaísmo mais moderno na forma e nos preceitos oficiais mas mais caracterizado por um nacionalismo exasperado e retrógrado do ponto de vista dos gentios. 

Diferente é o judaísmo ortodoxo, que permanece fiel aos livros sagrados interpretados à luz dos rabinos sobretudo da Idade Média. Naquela altura, o judaísmo ortodoxo conheceu uma forte evolução em particular com a obra de Moshe ben Maimon, mais conhecido como Maimónides: foi ele que “racionalizou” o judaísmo, que introduziu o conceito de “humildade”, que depurou (por assim dizer) o carácter mais “violento” do Talmud. É por isso que o judaísmo ortodoxo não pode reconhecer o Estado de israel, porque o homem não tem a autoridade para reverter as acções de Deus: se Deus mandou a diáspora, os judeus têm que ficar dispersados até Deus assim entender. Na verdade, o judaísmo ortodoxo é mais retrógrado nas formas mas mais moderno em relação aos gentios.

No geral, as principais diferenças entre judaísmo ortodoxo e judaísmo ortodoxo moderno são:
  • o grau em que um judeu ortodoxo deve ser integrado ou separado da sociedade secular
  • definição judaica do moderno Estado de israel
  • a abordagem espiritual da Torah
  • a validade do conhecimento secular
  • a centralidade do yeshivot (instituição religiosa) como lugar de estudo pessoal da Torah
  • a validade autorizada da orientação espiritual em áreas fora do campo das decisões haláhicas (Da’as Torá)
  • a importância de observar os costumes como vestuário, linguagem e música
  • o papel das mulheres na sociedade religiosa
  • a natureza das relações com os gentios
Além de aspectos mais formais (como a importância de observar os costumes típicos), há pontos de grande fractura entre as duas correntes: a já citada legitimidade do Estado de israel (questão central para o Sionismo), a natureza das relações com os gentios (gentios dispensáveis do ponto de vista sionista), a integração do judeu na sociedade (mais restrita no judaísmo ortodoxo).

Fica assim mais clara a razão pela qual o judaísmo ortodoxo moderno é intolerante em relação ao judaísmo ortodoxo “clássico”. Não há muitas Torah, há uma assim como há um só Talmud: o que muda é a interpretação.  

A Nação hebraica

E agora Chaplin, o qual afirma:

O próprio Max se deixa levar… O Hebreu não existe mais enquanto povo
há milhares de anos… Suas miscigenações transformaram-no numa
verdadeira rede supranacional, que não enxerga países, mas territórios a
serem explorados…e dominaram o mundo.

Neste caso não concordo. Existe um povo e existe uma nação hebraica. Portanto, existem legitimamente hebreus. O que não confere, de todo, uma qualquer autoridade ao actual Estado de israel. Mas vamos ver.

A palavra “povo”, no seu sentido mais específico, é um termo legal que indica a totalidade das pessoas que estão numa relação de cidadania com um Estado, como sendo portadores de soberania.

Portanto, ponto de vista legal, existe o povo de israel. Mas isso não interessa muito: o que interessa é a ideia de “nação”.

A nação hebraica, depois da Diáspora, ficou espalmada no resto do planeta. Aí misturou-se com outros povos, pelo que é possível perguntar: mas ainda existe uma nação hebraica? Para responder temos que perceber o significado de nação. Este indica um grupo específico de seres humanos unidos por um sentimento duradouro de pertença a este grupo, porque possuem no todo ou em parte características comuns da linguagem, cultura, religião, costumes e tradições.


A nação não é a etnia. Muitas vezes, na realidade, as duas coisas podem ser sobrepostas mas não necessariamente. Por exemplo: ao juntar um povo da mesma etnia numa determinada área, teremos uma nação? Não: a ideia de nação amadurece só com o tempo, podemos ter um povo com a mesma etnia mas sem ser nação. Foi o caso da Italia: unificada em 1861, começou a tornar-se nação apenas na altura da Primeira Guerra Mundial.

Dado que nação e etnia são duas coisas distintas, se ao longo dos séculos várias etnias decidiram aderir à nação judaica, compartilhando o mesmo espírito, valores, tradições etc., aquelas etnias constituem agora a nação judaica. Hoje, a principal etnia da nação hebraica no Estado de israel é a etnia kazara, um povo de origem turcomana que dominou a região centro-asiática.

Hebreus e muçulmanos juntos

Claro: apenas poucos podem hoje afirmar de ser descendente directos da linhagem de Moisés. Na
prática, são os hebreus que continuaram a viver na Palestina após a Diáspora: grupos pequenos em Gaza, Hebron, Jerusalém, Nablus, Haifa, Shafer Am, Tiberias e, acima de tudo, em Safed e nos arredores.

São estes os lugares onde podem ser encontrados núcleos de judeus continuadamente desde pelo menos o século XIII, que é desde o tempo imediatamente após o fim do cruzadas. Poderá haver hebreus residentes na Palestina há ainda mais tempo, em particular desde a altura de Cristo? E eu como posso saber isso? Sou italiano e de ascendência alemã, não judeu. Seja como for, fazer estimativas é complicado, mas em 1800 os hebreus na Palestina eram mais ou menos 10.000, que viviam em boa harmonia com a população árabe e não pensavam em criar um seu Estado.

Vale a pena aqui lembrar que se dum lado os hebreus decidiram portar-se bem em relação aos muçulmanos ao longo de séculos, aconteceu o inverso também: o então Império Otomano manteve-se fiel à atitude liberal em relação aos descendentes de Moisés, de forma que os judeus não tinham razões de queixas nem com governo nem com a população muçulmana.


Um precioso testemunho é dado por uma correspondência diplomática do Ministro dos EUA em Constantinopla, Horace Maynard. Em 1877, Maynard ordenou que os cônsules dos Estados Unidos no Império Otomano “observassem cuidadosamente a condição dos judeus dentro dos seus distritos consulares e informasse sem demora a embaixada de todos os casos de perseguição ou outros maus-tratos.

Com um despacho de 27 de Junho à Secretária de Estado William Evarts, Maynard fazia uma descrição precisa da situação dos judeus na Turquia, antes da Primeira Guerra Mundial:

A justiça para com os turcos querem que eu diga que eles têm tratado os judeus muito melhor do que têm feito algumas potências ocidentais da Europa. […] Eles são reconhecidos como uma comunidade religiosa independente, com o privilégio de ter as suas próprias leis da igreja e o rabino chefe goza, graças às suas funções, duma grande influência.

Para ter as primeiras primeiras significativas manifestações de hostilidade anti-judaica (ou mais precisamente, anti-sionista), é preciso esperar o final de 1800, quando teve início a imigração sionista no País. Até aquela data, os judeus sofreram quase exclusivamente o assédio dos muitos missionários de várias confissões cristãs que, estando proibidos por lei de fazer proselitismo entre os muçulmanos, tinham escolhido como campo de evangelização a comunidade dos judaicos.

Pelo que: judaísmo e Islão conviveram durante séculos nas mesmas terras, sem nenhum tipo de problema, perturbados só pelos aborrecidos missionários cristãos. Depois chegou o Sionismo…

Ipse dixit.