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O camelo, a pá e o jornalista

O Estado Islâmico acaba de colapsar e por cima das ruínas ainda fumegantes eis que a máquina do regime já começa a revisão histórica. Prestamos homenagem à rapidez.

O The New York Time publica um artigo volumoso, bem polido e vergonhoso, que tenciona demonstrar como o Isis conseguiu existir e expandir-se com um meio muito simples e, todo somado, até vulgar: taxas e impostos. É explicado na primeira página, logo após o título:

Desenterramos milhares de documentos internos que ajudam a explicar como o Estado Islâmico permaneceu no poder por tanto tempo.

Coitadinhos dos jornalistas, todos empoeirados no meio do árido deserto medi-oriental, em companhia só dum camelo e duma pá. Até mete dó. Mas imaginemos a felicidade na altura da descoberta: “Encontrei, encontrei a factura nº 312/Allah/bis emitida pelo Isis em Setembro de 2016!”. O camelo regozija, a pá nem tanto.

A utilidade do trabalho do NYT poderia ser apenas duvidosa: para entender as finanças do Estado Islâmico seria mais produtivo analisar as transferências monetárias internacionais. Mas o ponto é mesmo este: o que o diário entende demonstrar é que o Isis não recebeu dinheiro nenhum do estrangeiro, tudo gravitava à volta dos impostos. Pior: segundo o NYT, quem fala de financiamentos ocultos é um conspiracionista.
Enquanto entre os comentários do artigo já aparece quem invoca o Pulitzer, quem delira com comparações entre o Isis e a Alemanha nazista e quem promete renovar a assinatura para toda a família gato incluído (e pasmem-se: nem uma crítica!), por aqui não vamos responder ponto por ponto, simplesmente porque ficaria aborrecido e porque nem é preciso tanto. Vamos mas é dar um passo atrás.
Documento de 30 de Dezembro de 2009, Hillary Clinton é Secretária de Estado e escreve aos colaboradores: 

Ainda assim, os doadores na Arábia Saudita constituem a fonte mais significativa de financiamento para grupos terroristas sunitas em todo o mundo. É necessário […] encorajar o governo saudita a tomar mais medidas para conter o fluxo de recursos desde fontes baseadas na Arábia Saudita para terroristas e extremistas em todo o mundo.

[…] A Arábia
Saudita continua a ser uma base de apoio financeiro fundamental para a
Al Qaeda, os Talebães, LeT e outros grupos terroristas, incluindo o Hamas,
que provavelmente conseguem anualmente milhões de Dólares de fontes
sauditas, muitas vezes durante o Hajj e o Ramadã.

A reter: a Arábia Saudita não é “uma” fonte de financiamento mas “a fonte mais significativa de financiamento para grupos terroristas sunitas em todo o mundo”. Há uma leve diferença entre “uma” e “a” fonte.

Mas o ano de 2009 fica muito longe, quase pré-história. Vamos espreitar algo mais recente.
Por exemplo: 2015, a Clinton prepara a campanha eleitoral enquanto já há guerra na Síria. A simpática Hillary sugere ao colaborador John Podesta recuperar os “velhos planos” para ajudar os rebeldes sírios (os moderados, claro):

Enquanto esta operação militar / para-militar está a avançar, precisamos usar os nossos recursos de intelligence e os mais tradicionais meios diplomáticos para pressionar os governos do Qatar e da Arábia Saudita, que estão a fornecer apoio financeiro e logístico clandestino ao Isis e a outros grupos sunitas radicais na região.

Portanto, e segundo quanto escreve o NYT, Hillary Clinton é uma conspiradora: ela acredita mesmo que o Isis foi uma criatura financiada pelas monarquias do Golfo. E isso apesar do diário ter encontrado os recibos de pagamento da conta da luz com o carimbo do Estado Islâmico. A lógica é: se o Isis facturava com as contas da luz, porque pedir dinheiro no estrangeiro? Um raciocínio que funciona, não há dúvida. Quase quase vou fazer uma assinatura.

Meditação final: a simpática Hillary está fora dos jogos e o establishment americano olha para frente, tentando reconstruir a sua virgindade. O que passa inevitavelmente por rescrever a História. Nisso tanto os Democratas quanto os Republicanos concordam: a experiência do Isis fracassou, é bom obrigar os cidadãos a lembrar que os EUA e todos os seus aliados sempre estiveram do lado dos bons.

O que não é verdade. Mas importa?

Ipse dixit.

Fontes: no texto.