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Os seres humanos do futuro – Parte II

Nos últimos anos, vários ambiciosos projectos entraram em funções, sobretudo no campo da
neurociência, com um único objectivo: aumentar as
habilidades humanas.

Elon Musk é o criador de um desses:
Neuralink, a empresa dedicada à criação de uma interface homem-máquina
que, através de um “lasso neural”, visa aumentar as capacidades do
cérebro humano. As primeiras aplicações possíveis são médicas: pessoas
que sofrem de doenças neurológicas, como Parkinson ou Alzheimer,
poderiam beneficiar enormemente do desenvolvimento duma tecnologia
desse tipo, como já acontece graças a técnicas experimentais que
envolvem a inserção de elétrodos sem fio no cérebro, âmbito no qual
foram alcançados sucessos notáveis.
Mas para o futuro a esperança é utilizar a tecnologia para aumentar a memória, poder aprender de forma mais rápida e
talvez desbloquear o segredo da telepatia. As experimentações médicas
neste sector estão a multiplicar-se; mas representam apenas a ponta do icebergue, a nobre justificação para continuar o desenvolvimento
de dispositivos que, no futuro, possam fazer com que todos nós possamos
controlar as máquinas, receber informações dos computadores e
comunicar usando apenas o cérebro.

Até outros projectos mais realistas parecem perseguir os mesmos
objetivos: a equipa da Universidade de Oxford liderada por Roi Cohen
Kadosh está a estudar como a estimulação elétrica do cérebro se realiza
através do TRNS (Transcranial Tandom Noise Stimulation), algo que poderia
permitir aprender a matemática muito mais rapidamente. Pessoas submetidas a
esses estímulos eléctricos durante as sessões de teste aprenderam com uma
velocidade superior em duas ou até cinco vezes, mantendo 30 a 40% deste desempenho após seis meses.

A humanidade geneticamente modificada

Parar aqui? Nem pensar. Passando dos sistemas tecnológicos para o estudo dos
genes e dos modelos preditivos baseados no DNA, empresas startups como Genomic
Prediction
, 23andMe e outras poderiam identificar os genes responsáveis 
​​pela nossa inteligência e, portanto, reconhecer embriões humanos
destinados a ter um QI mais ou menos elevado. Também neste caso, as
explicações oficiais são apenas médicas: “Vamos revelar
apenas as possíveis condições gravemente negativas; nunca diremos que
o seu filho se tornará um jogador da NBA ou um génio da física” explica
o fundador da Genomic Prediction, Stephen Hsu no MIT Tech Review.

Mas
não será fácil monitorizar os desenvolvimentos: já em 2013, 23andMe causou
escândalos criando uma patente que, ao permitir que os pais
selecionassem os doadores de gâmetas através de cálculos genéticos, parecia
ser o primeiro passo para a eugenia. O mesmo Stephen Hsu (que confirmou repetidamente que a sua empresa destina-se exclusivamente a prevenir o nascimento de crianças com doenças
graves, o que levanta vários problemas éticos de qualquer maneira) é também o autor de um relatório publicado na revista Nautilus com o título ” Os seres humanos super-inteligentes estão a chegar “, no qual explica como, através da edição genética e técnicas como o Crispr (que permite editar o DNA, cortando e colando os genes), poderia
tornar-se possível dentro de alguns anos aumentar o QI dos filhos
em 15 pontos sem muita dificuldade, com a perspectiva de chegar, um dia, até valores hoje nem imaginados. No ensaio, Hsu explica que a edição genética com o o propósito de aumentar o nosso QI
poderia fornecer uma memória visual quase perfeita, um pensamento
super-rápido, uma visualização geométrica extremamente poderosa, a
capacidade de formular mais pensamentos ao mesmo tempo.

Dúvida: mas por qual razão devemos querer tudo isso? De acordo com Bryan Johnson, fundador da empresa Kernel, a razão é simples:

O mundo tornou-se muito complexo; o
sistema financeiro é imprevisível, a idade da população, os robôs
querem nosso trabalho, a inteligência artificial está a nos alcançar e
as mudanças climáticas não parecem parar. Tudo parece estar fora de controle.
Então, porque não devemos decidir em que direção evoluir? Porque
não devemos fazer tudo o que pudermos para nos adaptar mais rapidamente?

Portanto, perante as dificuldades duma sociedade mal projectada e ainda pior conduzida, o remédio não é mudar a sociedade mas os homens. Bastante doentio. Sobretudo porque continua a existir algo que parece não pode ser discutido, como se fosse um tabu: a nosso sistema económico.

O culpado do costume

É o Capitalismo (ou aquela coisa que tomou o lugar dele) cada vez mais rápido que dita os ritmos da
evolução humana: forçará no curto prazo a adoptar dispositivos tecnológicos que parecem ter o objectivo de aumentar tanto a produtividade quanto os os consumos, ao mesmo tempo que fornecem
cada vez mais dados; as máquinas, com a sombra da AI, obrigam a estudar as técnicas
no médio prazo para poder aumentar de maneira drástica as nossas habilidades
intelectuais; a crescente complexidade do mundo obriga a evoluir
e forma artificial.

Os primeiros sinais da direção que estamos
a seguir já podem ser encontrados hoje na disseminação da economia
on demand, possibilitada pela tecnologia, que deve empregar 10
milhões de americanos até 2021. Um sistema hiper-liberal que obriga a tornar-se “capitalistas de nós mesmos”, recompensando apenas
aqueles que são capazes de participar com sucesso num mercado de
trabalho cada vez mais competitivo e que exige um grau cada vez maior de
preparação e dedicação (abandonando todos os outros). Numa sociedade desse tipo, os primeiros seres humanos que podem aumentar
artificialmente a sua eficiência gozarão duma grande vantagem sobre
todos os outros, enquanto os primeiros capazes de selecionar embriões oferecerão
uma vantagem estratégica aos seus filhos.

Mas quem pode pagar isso? Segundo o MIT Tech Review:

Os
primeiros a adoptar tecnologias de seleção de embriões serão bilionários e indivíduos de Silicon Valley. No momento em que
começam a produzir menos crianças doentes e mais crianças excepcionais, o
resto da sociedade só seguirá.

O próprio Stephen Hsu ecoa estas
palavras:

Como acontece com a maioria das tecnologias, os ricos e os poderosos
serão os primeiros a beneficiar.

Isso, é claro, não será válido apenas para
a edição genética, mas
também para a possibilidade de explorar os desenvolvimentos concretos da
estimulação cerebral, de projetos como o de Neuralink e outros ainda. E assim, os
“ricos e poderosos” terão nas mãos uma ferramenta adicional, ainda mais
potente daquelas que já possuem para explorar (e
transmitir ) os seus privilégios e aumentar ainda mais a já crescente desigualdade.

AI? Não é o verdadeiro problema

Assim como cava-se cada vez mais fundo para encontrar petróleo, da mesma forma o homem é
forçado a tornar-se cada
vez mais produtivo e capaz de satisfazer a sede do crescimento do nosso
sistema económico. Em tudo isso, as inovações tecnológicas e biomédicas
desempenham um papel fundamental, tornando-nos mais integrados ao
digital e, portanto, mais eficientes: no futuro será possível até selecionar cuidadosamente os seres humanos, ficando assim mais
racionais, mais inteligentes, mais capazes de tomar decisões, mais rápidos.

Realça o escritor Hugh Howey:

Os computadores são dispositivos muito bem
projectados. Todos os vários bits
foram projectados ao mesmo tempo e com os mesmos objectivos, e foram
projectados para trabalhar harmoniosamente uns com os outros. Nada disso,
de qualquer forma, lembra a mente humana. Algumas
funções cerebrais foram construídas há centenas de milhões de anos, como
as que fornecem energia às células. Outras foram construídas há milhões
de anos, como aquelas que disparam os neurónios e se certificam de que o
sangue é bombeado e o oxigénio inalado. Em direção ao lobo frontal,
encontramos os módulos que controlam o comportamento dos mamíferos.

As
diferentes necessidades das diferentes épocas às quais lentamente a evolução humana
se adaptou fazem com que o homem ainda hoje responda a
necessidades ancestrais que a nossa sociedade há muito abandonou: não é
um exemplo brilhante de racionalidade e de eficiência. Porque, então,
todos esses medos sobre o risco dos cientistas criarem AI igual ao
homem?
Explica Howey:

O objectivo não deveria ser esse.
O objectivo deveria ser ir na direção oposta. Depois de milhões de anos de
competição pelos recursos, o algoritmo do cérebro humano hoje causa mais
problemas de quantos consiga resolver.

E de facto é assim: o problema não é criar inteligências artificiais iguais ao Homem, porque a direção que
tomamos é a oposta. Para garantir que a nossa sociedade continue a perseguir o
mito do crescimento, somos nós que estamos a tentar ficar cada vez mais eficientes, mais racionais e
produtivos, tal como a melhor das AI. Mas isso às custas da nossa humanidade e, provavelmente, do nosso
bem-estar.

As inteligências artificiais não são o problema: pelo contrário, se bem utilizadas representariam uma enorme mais valia e poderiam garantir um imenso salto qualitativo na vida de todos. O verdadeiro problema reside nos cérebros de que gere o percurso que levará até as AI e nas intenções que determinarão a sua implementação e utilização.

Ipse dixit.

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Skills

Fontes: Wait But Why, Kurzweil, Le Macchine Volanti, Wired, MIT Technology Review, Nautilus, Harvard Business Review, Hugh Howey: How to build a self-coscious machine, Il Tascabile