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Os seres humanos do futuro – Parte I

É possível prever como será o Homem do futuro? Até poucas décadas atrás esta teria sido uma
pergunta sem sentido, pois a espécie humana sempre evoluiu de forma natural. Hoje já não é assim: o ambiente molda cada vez mais os seres humanos e no horizonte aparecem possibilidades nunca antes imaginadas, como modificar o DNA para obter seres “à medida”. Mas nem é preciso olhar para um futuro tão distante: as modificações já estão entre nós.

Por exemplo: em 15 anos o número de escolares no Reino Unido que utiliza o Ritalin (um estimulante nascido para ajudar os estudantes com transtorno de deficit de atenção, o TDAH) passou de 92.000 em 1997 para 786.000 em 2012. Nos Estados Unidos, já em 2011, este número ultrapassou 3,5 milhões e, de acordo com os relatórios da revista especializada Neuropharmacology (no número 64 de 2013), uma percentagem entre 5 e 15% dos estudantes universitários usa Ritalin para melhorar o seu desempenho.
São aumentos que não são causados por uma epidemia de deficit de atenção, mas pela transformação dos objectivos para os quais o medicamento é usado. Como explica o professor Yuval Noah Harari no seu livro Homo Deus: “O propósito original era tratar a desordem da atenção, mas hoje indivíduos saudáveis ​​assumem essas drogas para acompanhar as crescentes expectativas de pais e professores”.

A principal razão para usar Ritalin parece ser atender às necessidades da sociedade e ajudar os alunos a estarem mais preparados e capazes de enfrentar com sucesso um mercado de trabalho caracterizado pela extrema concorrência.

Não se trata dum caso isolado pois observando de perto os desenvolvimentos tecnológicos (e também biotecnológicos e neurofarmacológicos) não é difícil ver como todas as inovações (do passado também) parecem ter apenas um objectivo: tornar o ser humano mais rápido e mais produtivo. Em uma palavra: mais eficiente. O símbolo de tudo isso, é claro, é o smartphone: de acordo com uma pesquisa do Center for Creative Leadership, aqueles que usam o smartphone como ferramenta profissional ficam conectados ao trabalho por 13.5 horas por dia. Mais ou menos o tempo todo durante o qual estão acordados, excluindo as refeições: um excesso de trabalho causado pelo rio de notificações (correio, Messenger, WhatsApp, Trello, Slack, etc.) que nos inunda desde que acordamos até o final da noite, chegando a invadir também os fins de semana.

Tudo isso, além das implicações sociais, torna os seres humanos mais produtivos, ou pelo menos está é a sensação, aumentando as horas dedicadas ao trabalho. Quando o iPhone apareceu em 2007, entre os vários slogans desenvolvidos por Steve Jobs e colegas nunca houve “agora vocês vão trabalhar muito mais”, mas foi isso que se passou. E não foi um caso único mas uma tendência que, com o advento das novas tecnologias, se consolidará ainda mais e atingirá o pico quando forem realizados os experimentos em curso no campo da estimulação elétrica e da edição genética do cérebro.

Mas antes de chegar às fronteiras mais futuristas, vamos observar as consequências duma inovação muito mais próxima: a realidade aumentada (AR), a tecnologia que sobrepõe o digital ao real, cancelando definitivamente a distinção entre as duas áreas e permitindo viver num mundo cada vez maior.

AR: a eficiência da realidade aumentada

O protótipo apresentado recentemente pela Magic Leap levantou bastante ironia: um par de óculos extremamente volumosos, que obrigam a circular com um minicomputador ligado à cintura e com uma espécie de controle remoto sempre na mão. Se alguém hoje fosse para a rua dessa forma seria bastante ridículo, mas isso é apenas o começo: com o passar do tempo (anos? Meses?) os óculos se tornarão cada vez mais “normais”, o minicomputador caberá numa mão e o controle remoto pode até desaparecer completamente (comandos gestuais). Foi o caminho dos telemóveis: desde os primeiros, com uma bateria grande como uma pasta, até aqueles que medem poucos centímetros.

A maioria dos analistas acredita que esta será a próxima “grande coisa” destinada a substituir o smartphone: o que parece confirmado pelo facto de que todos os gigantes do setor (Apple, Facebook, Google, Microsoft) estão a investir fortemente nesta área. O aspecto provavelmente mais importante dos óculos de realidade aumentada é que conseguem a união entre o real e o digital sem atrito: em outras palavras, é eliminada a fricção entre os dois ambientes que distingue as aplicações dos smartphones. Com Magic Leap e os outros, os dois planos ficarão definitivamente juntos.

Pensamos no potencial da AR no campo dos videogames, das compras (Ikea está a trabalhar num programa que permitirá, usando os óculos, pré-visualizar os móveis na nossa casa), do turismo (as informações aparecerão diretamente “nos” monumentos), da navegação rodoviária (as instruções serão incorporadas diretamente “nas” estradas onde viajamos).

Stop, parem: um salto atrás. Vamos ler outra vez: “Quando o iPhone apareceu em 2007, entre os vários slogans desenvolvidos
por Steve Jobs e colegas nunca houve “agora vocês vão trabalhar muito
mais”, mas foi isso que se passou”. E por qual razão com a AR deveria ser diferente?

Muito menos se fala deste aspecto, de como os óculos de AR forçarão as pessoas a ser ainda mais produtivas e eficientes. Mas não é difícil imaginar isso: e-mails, chamadas telefónicas, notificações, compromissos já não estarão no nosso smartphone mas aparecerão diretamente diante dos nossos olhos, aumentando ainda mais a nossa capacidade de gerir em tempo real qualquer atividade que esteja a ocorrer. E se agora temos que decidir se pegar no smartphone para conecta-lo, no futuro (que está a chegar) teremos que tirar os óculos para conseguir desconectar-nos de vez em quando. É uma diferença fundamental: a nossa condição básica será conectada à rede e ao rio das actividades ligadas ao trabalho.

Cenário preocupante? Tranquilos, será apenas um passo intermediário. Várias empresas (a Samsung
em primeiro lugar) estão a patentear lentes de contacto inteligentes. Uma perspectiva que ainda é afastada, mas que irá integrar o digital no corpo humano de forma quase definitiva. Uma altura que em será possível ficar desconectados apenas para dormir: o resto do nosso tempo sempre estará imerso na rede.

As repercussões de trabalho são óbvias: a nossa disponibilidade constante e imediata será dada ainda mais como certa; bem como a capacidade de monitorizar sem parar tudo o que aparece nos monitores que, nesse ponto, estarão literalmente diante dos nossos olhos. Mas aqui surge um problema.

Tempo

O problema é que tudo pode aumentar: produtividade, trabalho, consumo. O que não pode aumentar é a duração do dia: na era da abundância (das sociedades avançadas) o bem mais escasso, a commoditie mais valiosa. é o tempo.

Uma pesquisa da Harvard Business School, realizada entre mil profissionais, mostra como 94% deles trabalham pelo menos 50 horas por semana; e quase 50% trabalha mais de 65 horas. São 13 horas por dia desde Segunda até Sexta-feira. Outras pesquisas mostram que a percentagem de licenciados nos EUA que trabalham mais de 50 horas por semana aumentou de 24% em 1979 para 28% em 2006. E pensar que na década de 1930, o economista John Maynard Keynes imaginava que no final do último milénio o trabalho teria ocupado três horas por dia.

A verdade é que, apesar do tempo livre em geral ter crescido nas últimas décadas, a maior parte do
aumento foi alcançado entre os anos sessenta e oitenta; depois disso, os economistas notaram como criou-se um fosso crescente, no qual a maior parte do tempo livre é desfrutado por pessoas com baixo nível de educação. Nos Estados Unidos, aqueles que não terminaram o ensino médio aumentaram o tempo de lazer de oito horas semanais de 1985 a 2005. Os homens com pós-graduação, no mesmo período de tempo, viram o tempo de lazer reduzido de seis horas.

Mas também aqui há um problema: o trabalho actualmente considerado de nível médio-baixo será realizado em breve por máquinas e inteligências artificiais, deixando à nossa disposição apenas as profissões que exigem habilidades em que o homem é (por enquanto) melhor; empregos não repetitivos, que exigem habilidades específicas como criatividade, gestão e supervisão de grupos, relações humanas e assim por diante. A redução do número de empregos não significa apenas que a concorrência será cada vez mais implacável (forçando as pessoas a alcançar novos níveis de educação, produtividade e eficiência: Ritalin) mas acima de tudo, para acompanhar o progresso da AI, teremos que nos melhorar continuamente para poder ficar mais rápidos e eficientes.

Como disse recentemente Elon Musk (Tesla), os homens terão que “aumentar a si mesmos” com o único objectivo de manter o ritmos das máquinas. Para ter sucesso numa empresa, não será suficiente um visualizador AR capaz de aumentar a nossa produtividade. A ciência (aquela com “c” pequena, ao serviço das corporações) sabe disso e está a trabalhar neste sentido. É o que veremos na segunda e última parte do artigo.

Ipse dixit.

Relacionados:
Tech-Gleba – Parte I
Tech-Gleba – Parte II
Tech-Gleba – Parte III
Skills

Fontes: Yuval Noah Harari: Homo Deus: Uma breve história do amanhã (Portugal: Elsinore, 2017, Brasil: Companhia das Letras, 2016), Center for Creative Leadership: Always On, Never Done? (ficheiro Pdf, inglês), Business Insider: How augmented reality is changing the way we work, The smartphone is eventually going to die, and then things are going to get really crazy, The Verge, Mashable, Harvard Business Review: Making Time Off Predictable—and Required, ISG: The Rise of Artificial Intelligence,White Hutchinson: The rise of leisure time inequality, The Guardian