O relacionamento entre sionismo e Arábia Saudita – Parte I

Ao falar da actual situação do Médio Oriente, há algumas perguntas às quais não é simples responder,
a mais importante das quais é a seguinte: por qual razão a Arábia Saudita não apoia e ajuda de forma concreta a resistência palestiniana na luta contra israel?

Sabemos que o mundo árabe não é algo monolítico: há fracturas interiores, principalmente entre  a corrente sunita e a xiita. É esta a principal razão oficial do choque entre a Arábia (sunita) e o Irão (xiita). Todavia, os palestinianos são maioritariamente sunitas: não deveria a casa de Saud suportar de forma muito mais concreta o desejo de criação dum Estado autónomo contra o “odiado inimigo” israelita?

E mesmo que a Palestina fosse xiita: não faria mais sentido apoiar os irmãos islâmicos em vez de aliar-se com as forças “infiéis” americanas e hebraicas de israel?  

Podemos dar uma simples resposta pragmática: ao apoiar a causa da Palestina, os sauditas perderiam o apoio de Washington, o principal cliente do petróleo árabe, a verdadeira fonte de riqueza deles. Uma explicação que faz todo o sentido. Mas há uma outra também.

As Memórias de Hempher

No final do século XVIII, no auge das conquistas coloniais, os imperialistas britânicos criaram duas forças destrutivas aparentemente antagónicas: o sionismo por um lado e o wahhabismo (ou o salafismo) por outro. O lema do costume: divide et impera.

O Departamento de Defesa dos EUA publicou há poucos anos alguns documentos antes na posse dos serviços secretos iraquianos do regime de Saddam Hussein, onde eram catalogados como Top Secret. Os
documentos estão baseados nas memórias de Hempher, espião britânico activo no Médio Oriente, que estava em contacto com Abdul Wahhab para a criação duma versão subversiva do
islamismo, o wahhabismo. As Mémórias de Hempher descrevem a tentativa inglesa de promover entre os muçulmanos racismo, nacionalismo, álcool, jogos de azar, luxúria (todos vícios que podem ser
encontrados nos actuais emirados); mas a estratégia mais importante era “espalhar a heresia entre os crentes e criticar o Islão
por ser uma religião de terroristas”.

Hempher tinha encontrado em Muhammad Ibn Abdul Wahhab um
indivíduo particularmente receptivo: foi o começo do wahhabismo, a vertente islâmica que ainda
hoje podemos encontrar na Península arábica. Abdul Wahhab foi o
instrumento com o qual os britânicos conseguiram insinuar entre os
muçulmanos da península arábica a ideia segundo a qual é
permitido matar outros muçulmanos sob o pretexto da apostasia: bastava
publicar uma fatwa nesse sentido. Com base nisso, Wahhab apoiou a ideia
de que os irmãos turcos muçulmanos, oferecendo orações aos santos,
tinham traído a fé e que, portanto, era legal matá-los e escravizar as suas esposas e
filhos.

Em 1744 Abdul Wahhab foi convidado a estabelecer-se na localidade de Diriyah pelo governante Muhammad bin Saud. Depois de algum tempo em Diriyah, Wahhab e Muhammad bin Saud concordaram que, juntos, teriam trazido a península árabe de volta aos princípios “verdadeiros” do Islão. O acordo
foi confirmado com um juramento de mútua lealdade, o bay’ah: Wahhab era responsável por
assuntos religiosos enquanto Ibn Saud era o encarregado das questões políticas e
militares. Nasceu assim a aliança entre o wahhabismo e a casa Saud.

O wahhabismo foi temporariamente derrotado pelo exército otomano em
meados do século XIX. Mas em 1914 começa a Primeira Guerra Mundial que
terá um impacto decisivo no sucesso do sionismo e do wahhabismo.

Os otomanos entraram em guerra ao lado da Alemanha e da Áustria-Hungria contra França, Reino Unido, Itália e Rússia czarista: cada um desses quatro poderes tinha ambições territoriais em relação ao Império Otomano. Em 1915, o líder sionista britânico Chaim Weizmann conseguiu convencer a administração britânica acerca das vantagens em apoiar a causa sionista; em 1916, o acordo secreto de Sykes-Picot dividiu o Império Otomano entre França e Reino Unido, em caso de vitória, atribuindo aos britânicos amplos territórios: em 1917, Lord Balfour, representante do governo britânico, enviou uma carta a Lord Lionel Walter Rothschild, a “Declaração de Balfour”, na qual afirmou que o Reino Unido era favorável à criação de uma “casa nacional judaica” na Palestina.

O Império Otomano  (1299 – 1923). Mais claro: máxima extensão (1683), mais escuro: extensão no começo da Primeira Guerra Mundial (1914).

Por ocasião da Conferência de Paz de Paris de 1919, o acordo Faisal-Weizmann foi assinado em 3 de Janeiro de 1919 entre o emir Feisal ibn Hussein (xerife de Meca e rei de Hijaz) e Chaim Weizmann (mais tarde, em 1949, primeiro presidente de israel). Graças a este acordo, Faisal ibn Hussein aceitou, em nome dos árabes, os termos da Declaração Balfour. Esta declaração é considerada de facto uma das primeiras etapas para a criação do Estado de israel. Em Março de 1919, o Emir Faisal enviou a seguinte carta a Felix Frankfurter, juiz sionista do Supremo Tribunal dos Estados Unidos:

O movimento judaico é nacional e não imperialista e o nosso movimento [o wahhabismo, ndt] é nacional e não imperialista. Na Palestina há espaço suficiente para ambos os povos. Eu acho que cada povo precisa do apoio do outro para ter sucesso. (…) Estou ansioso por um futuro de ajuda recíproca, para que todos os países que nos interessam possam mais uma vez encontrar os seus lugares na comunidade das nações civilizadas do mundo.

Com a ajuda dos
britânicos, os Wahhabis sauditas voltaram ao poder em 1932. Desde então,
os sauditas trabalharam em estreita colaboração com os americano: os primeiros fornecem petróleo, os segundos enchem os cofres árabes. Mais tarde, depois dos acordos de Camp David, a Arábia Saudita foi um dos primeiros Países árabes a importar produtos israelitas. A Arábia Saudita importou de israel até o equipamento necessário para a extração de petróleo.

Portanto, desde as suas origens o wahhabismo esteve fortemente ligado ao mundo anglo-saxónico, ao qual deve o poder e a riqueza. E sabemos quão forte é a pressão sionista nos Estados Unidos.
Mas há mais.

Wahhab, o Donmeh

O escritor, D. Mustafa Turan, escreveu no livro Os hebreus Donmeh que Muhammad ibn Abdul
Wahhab era descendente de uma família de judeus turcos. A família wahhabista seria afinal uma emanação hebraica?

Segundo a reconstrução, os donmeh eram os descendente dos seguidores do auto-proclamado messias judaico Shabbatai Zevi, que 1666 converteu-se falsamente ao Islão para salvar a vida após uma tentativa para derrubar o Sultão turco. Os seguidores de Zevi imitaram a falsa conversão dele, mantendo em secreto as tradicionais doutrinas cabalísticas.

Turan afirma que o avô de Abdul Wahhab, Sulayman, pertencia à comunidade judaica turca de Bursa. A seguir mudou-se para Damasco, onde fingiu ser muçulmano, mas foi expulso por praticar a magia cabalística. Então fugiu para o Egipto e de novo enfrentou outra condenação. Finalmente, emigrou para Hijaz (Arábia) onde casou-se e onde o filho Abdul Wahhab nasceu.

De acordo com os serviços secretos iraquianos, a linhagem é confirmada em outro documento intitulado Os judeus e a origem dos sauditas wahhabis, escrito por Salim Qabar Rifaat. De acordo com Said Nasir, embaixador saudita no Cairo, no seu livro História da Família Saud afirma que Abdullah bin Ibrahim al-Mufaddal deu a Muhammad al-Tamimi 35.000 junayh (Libras), em 1943, para inventar as árvores genealógicas da família saudita, de Abdul Wahhab, e juntá-las numa única árvore que remonta ao Profeta Muhammad.

Sionismo e Saud

Portanto, ao seguir estas duas teorias a casa real dos Saud seria uma criação britânica, nas cujas origens é possível encontrar um descendente hebraico. Umas teorias “excessivas”? Pode ser.

As Memórias de Hempher são bem conhecidas e gozam duma relativa difusão no mundo árabe mas, tal como acontece no caso dos Protocolos de Sion, por muitos são vistos como um documento apócrifo (final de 1800) e, em qualquer caso, falso. E, segundo o Professor Bernard Haykel do Harvard’s Olin Institute for Strategic Studies, o principal suspeito seria Sabri Pasha, escritor otomano que estudou na academia naval e ganhou o cargo de oficial da marinha, autor de obras históricas sobre a dinastia saudita.

Tal como no caso dos Protocolos de Sion, a questão permanece em aberto porque não há provas definitivas, nem num sentido nem no outro. O que há é a aparentemente incompreensível atitude saudita que, como vimos, perante a possibilidade de ajudar os irmãos islâmicos da região, prefere apoiar tanto o inimigo histórico de israel quanto o “grande Satã” americano.

Rei Faisal al-Saud

Acerca disso, eis duas intervenções interessante.
A primeira é do Rei Faisal al-Saud, proferida em 17 de Setembro de 1969 ao Washington Post:

Nós, a família saudita, somos primos dos judeus: não concordamos absolutamente com as autoridades árabes ou muçulmanas que demonstram antagonismo com os judeus, devemos viver em paz com eles. O nosso País [a Arábia Saudita, ndt] é a primeira fonte a partir da qual o primeiro judeu veio, cujos descendentes se espalharam por todo o mundo.

A segunda é bem mais recentes, sendo do Julho de 2017.
O Grande Mufti da Arábia Saudita, Abdelaziz al-Cheikh (um mufti é um académico islâmico a quem é reconhecida a capacidade de interpretar a lei islâmica e a capacidade de emitir uma fatwa), disse a uma rádio saudita que não era permitido desde um ponto de vista religioso lutar contra os israelitas e o Estado judeu. Segundo ele, “os muçulmanos devem aliar-se com estes para combater o Hamas e o Hezbollah”.

De acordo com o Mufti, os muçulmanos têm permissão para pedir ajuda de israel para combater Hamas, que é na sua opinião uma “organização terrorista”, pedindo também que os muçulmanos que protestam contra as últimas violências cometidas pelo exército israelita na Esplanada da Mesquita parem de fazer um “ruído” inútil e contraproducente.

O xeque também decretou, baseando-se numa opinião do teólogo Ibn Taymiyya do século XIII, que a aliança com o Estado judeu é legal, especialmente quando se trata de combater organizações como o Hezbollah.

Há mais além das Memórias de Hempher e das “incautas” declarações de exponentes sauditas?
Afinal as Memórias podem não ser autênticas (duvidar é obrigatório por causa da falta de provas) e as declarações podem ser apenas desagradáveis “acidentes”. Para responder é necessário procurar fontes históricas, acima de qualquer suspeita. E estas existem. Sim, há mais acerca do papel sionista no nascimento da moderna Arábia Saudita wahhabista. E será este o assunto da segunda e última parte do artigo.
Ipse dixit.

Fontes: Intelligence Colonel Sa’id Mahrnud Najrn AI-‘Arniri – The Birth of AI-Wahabi Movement And it’s Historic Roots (ficheiro Pdf, inglês), M.Sıddık Gümüş – Confessions of a British Spy and British Enmity against Islam (ficheiro Pdf, inglês), Bet Magazine Mosaico, Middle East Strategy at Harvard – Anti-Wahhabism: a footnote, L’interferenza, Aurora

3 Replies to “O relacionamento entre sionismo e Arábia Saudita – Parte I”

  1. Parabéns pela abordagem. Judeus são blindados/escondidos de várias formas pela dita historiografia oficial/acadêmica (e creditícia) ocidental, até pq eles próprios controlam todos processos que envolvem imprensa/propaganda no ocidente, desde sempre. Achei engraçado qdo dizes "Weizmann conseguiu convencer a administração britânica" em favorecer o projeto Israel. Esqueces que o sionismo, apesar de ser o segmento dominante no mundo, é uma vertente da alta elite burguesa judaica internacionalista/mercantilista. Após séculos de expulsão, quando foram autorizados a voltarem a Inglaterra, então necessitada economicamente, fizeram acordos secretos (são mestres na arte de conspirar) com a alta realeza/nobreza britânica, onde a Ilha passaria a ser "vendida" ao povo como a Nova Jerusalém (uma das tantas ao longo da história), e cuja missão maior era com que o mundo fosse sua mera extensão, baseado no "princípio divino de povo escolhido a povoar e dominar o mundo",justificando assim, inúmeros processos de subjugação de povos. Só pra lembrar, hebreus não existem mais…

  2. Beleza, Max!! Este e outros últimos posts vem descrevendo como as coisas chegaram a ser COMO são. Esta pergunta fundamental da história arqueológica é o que falta na historiografia oficial. Pessoalmente, esta e a história genealógica, a que responde PORQUE as coisas chegaram a ser como é o discurso historiográfico que me deixa acordada, com vontade de saber. Abraços e parabéns.

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