Site icon

Bangladesh: o arsénico das Nações Unidas

Nos anos ’70, as Nações Unidas pediam fundos para um grande projecto: dar água aos habitantes do Bangladesh, já na altura um dos Países mais pobres do planeta. Com a ajuda também do Banco Mundial, o projecto passou do papel para a realidade: milhões de furos foram escavados e a água alcançou as populações. Começou assim o maior envenenamento na história da humanidade, cujas consequências ainda não podem ser determinadas com exatidão.

Até 20 milhões de pessoas em Bangladesh correm o risco de sofrer mortes precoces por causa do envenenamento por arsénico: é este o legado do projecto humanitário pessimamente planeado, que criou uma devastadora catástrofe de saúde pública.

Quatro décadas depois dum movimento financiado internacionalmente para cavar poços em todo o País, são milhões os que ainda permanecem em risco de contrair câncer e doenças cardíacas. O desenvolvimento intelectual das crianças também está a sofrer de atrasos por causa da contaminação da água potável e a má alimentação exacerba o risco.

A crise do arsénico em Bangladesh, como vimos, data dos anos ’70 do século passado: a ideia era
melhorar a qualidade da água potável e travar a disenteria (que foi um dos maiores assassinos de crianças no País). Por isso houve grandes investimentos internacionais: não apenas ONU e Banco Mundial, mas outras instituições concorreram, sempre sob a direcção das Nações Unidas. Acreditava-se que os poços pudessem proporcionar provisões seguras para as famílias que, em alternativa, dependiam das sujas águas superficiais que matavam até 250 mil crianças por ano.

Mas a iniciativa falhou. Embora tivessem sido realizados controlos para alguns contaminantes na água dos poços, não tinha sido testado o arsénico, que é naturalmente presente nos deltas dos rios Ganges e Brahmaputra. No início da década de 1990, quando foi descoberto que metade dos 10 milhões de poços estavam contaminados, o Bangladesh enfrentou aquela que a Organização Mundial da Saúde assim definiu:

O maior envenenamento em massa duma população na história […] A escala do desastre ambiental é maior do que qualquer outra observada antes, está além dos acidentes em Bhopal, Índia, em 1984, e de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986.

Alguns estudos preveem que, em última análise, uma pessoa em cada 10 que beba água dos poços irá morrer de câncer do pulmão, da bexiga ou da pele. Mesmo que algumas dessas patologias levem décadas para se desenvolverem, em 2004 cerca de 3.000 pessoas por ano estavam a morrer de câncer relacionado com o arsénico.

Desde a década de 1990, organizações como a Unicef ​​lideram o esforço para desenvolver e fornecer fontes alternativas de água, como a coleta de chuva ou a filtragem das águas superficiais. Lentamente, a percentagem de famílias expostas à água contaminada cai, mas uma pesquisa realizada pela mesma Unicef ​descobriu que uma faixa significativa da população ainda está a utilizar água contaminada. Yan Zheng, especialista em arsénico da Unicef:

Isso equivale a 20 milhões de pessoas. Os impactos na saúde variam. As lesões cutâneas causadas pelo arsénico são bem reconhecidas pelos moradores. Mas o câncer e as doenças cardiovasculares ainda não são totalmente reconhecidas pelos aldeões e por alguns profissionais da saúde.

Zheng afirma que um recente estudo mostrou taxas de mortalidade significativamente maiores para aqueles expostos ao arsénico e conclui: “Era como seria de esperar, quanto maior a exposição, maior o risco”.

As lesões cutâneas causadas pela substância são apenas o primeiro sinal de muitos problemas de saúde possivelmente fatais. E as lesões ainda atraem o estigma social no Bangladesh, com muitas pessoas que vêem nelas o resultado de uma maldição.

O arsénico que contamina a água do Bangladesh é presente de forma natural nos cursos de água que sustentam centenas de milhões de pessoas. Muitas fontes subterrâneas em todo o mundo sofrem com a contaminação de arsénico e tem havido problemas de saúde também em Países como a Argentina, Taiwan e a Índia. Existe também uma considerável contaminação em algumas partes dos Estados Unidos.

Mas como foi possível tamanho erro? As Nações Unidas insistem que os seus testes na altura atendiam aos padrões internacionais, outros argumentaram que deveria ter havido uma consciência mais profunda sobre a geologia e a topografia locais. Mas ainda assim, tanto a ONU quanto o Banco Mundial demoraram em reconhecer o seu papel na tragédia.

O problema, além das análises, foi a técnica utilizada nas perfurações. Milhares de lagoas foram escavadas em todo o País, o solo foi perturbado e libertou carbono orgânico, o que, por sua vez, fez com que o arsénico escapasse dos sedimentos. Solução? Segundo o MIT de Boston teria sido suficiente cavar poços mais profundos, de forma a ultrapassar os depósitos de arsénico.

Segundo a ONU, a presença do arsénico nos poços poderia ser resolvida por volta do ano de 2030, prévio um esforço por parte do governo do Bangladesh para garantir um abastecimento de água limpa e uma melhoria nas actividades de monitorização da qualidade da água. Seria preciso não apenas fechar e substituir os poços escavados sob a direcção da ONU mas também a eliminar/controlar as fontes naturais de arsénico. No entanto, seriam precisos outros 40 anos para observar uma grande redução da mortalidade relacionada com o veneno: a geração actual continuará a enfrentar os efeitos latentes da exposição ao longo da vida, mesmo depois de mudar para uma fonte de água segura.

Ipse dixit.

Fontes: World Health Organization: Arsenic – Mass poisoning on an unprecedented scale
, World Health Organizations: Arsenic in tube well water in Bangladesh – health and economic impacts and implications for arsenic mitigation, University of Columbia: Battling ‘the Largest Mass Poisoning in History’, The New York Times: The Lethal Water Wells of Bangladesh