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Da guerra das Corporações contra o Estado

…e assim partiu o primeiro foguete privado. Enquanto na Flórida os aplausos eram mais barulhentos do que os motores, o Falcon Heavy atirava-se para o espaço com destino Marte. Lá chegado, irá pôr na orbita do planeta vermelho um automóvel, um Tesla Roadster.

Uma cópia da Monnalisa, uma fotografia de Einstein, uma pedra das Pirâmides? Não: um automóvel, o que melhor consegue representar a nossa sociedade. Pena não haver mais espaço a bordo, porque um smartphone também teria ficado bem.

Mas voltemos ao princípio: um foguete privado. Estamos a entender isso? Não é a Nasa, não é a europeia Esa, nem são os chineses ou os indianos: é Elon Musk, empreendedor sul-africano-canadense-americano-hebraico, fundador e CEO da SpaceX (empresas espacial), co-fundador e CEO da Tesla Motors (automóveis eléctricos); vice-presidente da OpenAI (pesquisas sobre inteligência artificial); fundador e CEO da Neuralink (neurotecnologias); e co-fundador e presidente da SolarCity (energia renovável).

A nova Gilded Age

Enquanto o Falcon Heavy se levantava, Casey Dreier da think tank non-profit Planetary Society, declarava o seguinte:

A novidade deste lançamento é que as ambições das Corporações para ultrapassar o poder dos governos hoje mostram o seu verdadeiro rosto. […] Estamos numa nova Gilded Age, com multi bilionários que querem redesenhar o futuro humano.

A história da Gilded Age (“Idade Dourada”) mereceria um capitulo à parte, aqui vale a pena lembrar que foi o período dos Estados Unidos entre os anos de 1865 e 1910: décadas que testemunharam uma expansão económica, industrial e populacional sem precedentes. A rápida expansão da industrialização levou ao crescimento dos salários reais em 60% entre 1860 e 1890, distribuídos entre uma força de trabalho cada vez maior. No entanto, foi também uma era de pobreza e desigualdade, já que milhões de imigrantes chegaram nos Estados Unidos e a alta concentração da riqueza em poucas mãos tornou-se mais visível e controversa.

O sentido da frase de Dreier é simples de entender: estamos no começo (simbólico) da corrida das Corporações para ultrapassar o Estado.

Os Estados têm o poder único no mundo de fazer as leis de maneira democrática e de regular a vida dos seres humanos, tudo no interesse público. Podemos discutir acerca dos efeitos reais desta teoria, porque é óbvio que as coisas não funciona tão lindamente. Mas o que importante reter é que aos menos hoje há a ideia de Estados democrático, algo que para nós é “normal” mas que na verdade existe há cerca de setenta anos, e nem em todos os Países. Antes disso, a ideia dum Estado que democraticamente escolhesse as suas leis existia apenas nos livros que tratavam da história da Antiga Grécia.

O Estado: leis, regulamentação e impostos 

Elon Musk com um Tesla Roadster

O Estado regulamenta. Por exemplo: há quem produza fármacos (as empresas farmacêuticas) e há
quem diga “este medicamento é bom, podes vende-lo” ou “este medicamento é prejudicial, estás proibido de comercializa-lo”. Funciona mal? Não há dúvida, funciona mal: mas no entanto existe, algo faz e é melhor do que nada. O mesmo acontece com alimentos, automóveis, casas, tecnologia, cultura, comércio, energia, finanças, empregos… com tudo. O Estado democrático moderno é um sistema de leis que representa uma barreira, no interesse público, entre o lucro do poder privado e nós cidadãos.

É esta a razão pela qual o sector privado (o grande Capital) tenta corrompe-lo e limitar a sua actuação. É desde o aparecimento das democracias que as empresas tentam condicionar as escolhas dos Estados, é para isso que foram introduzidas criadas as lobbies, o financiamento aos partidos, a corrupção e até mesmo uma inteira ideologia económica chamada Neoliberalismo cujo lema é “menos Estado!”. Às vezes o Capital conseguiu impor-se, outras vezes não: mas até hoje os Estados existem e, mais ou menos, continuam em funções.

Continuam a existir os impostos de Estado: poucos sabem que uma das razões fundamentais para a invenção dos impostos foi precisamente impedir que uma oligarquia privada assumisse demasiado poder económico, ou seja dinheiro, para tornar-se mais poderoso do que o próprio Estado (antes dos Estados democráticos existiam os impostos nas monarquias, mas uma das funções era sempre esta: impedir que alguém se tornasse uma ameaça económica contra o Rei). Os impostos do Estado põem um travão à riqueza, mínimo mas sempre travão é: e o grande Capital sabe isso.

A guerra entre o poder privado e os Estados está longe de acabar, mas o lançamento do Falcon Heavy marca uma nova fase: a fase em que as Corporações (o novo rosto do grande Capital) tenta ultrapassar duma vez por todas o Estado. E aqui, pela primeira, o poder privado vê no horizonte objectivo tangível da destruição dos Estados. Esses alta tecnologia, essa inteligência artificial, esses algoritmos são muito complexos para serem regulados pelos Estados, e por um simples motivo: os Estados e os seus tecnocratas não entendem nada sobre isso. Mas, ao mesmo tempo, os Estados e os seus tecnocratas já não podem livrar-se disso. E nem têm os meios financeiros para contrariar as Corporações.

Os boosters da Nasa

Consideramos a exploração espacial: desde 1957 tudo tinha ficado nas mãos da Nasa, ente público americano. “Espaço” no Ocidente rimava com “Nasa” e com mais ninguém. Hoje Elon Musk da Tesla com SpaceX, Jeff Bezos da Amazon com Blue Origin e Richard Branson da Virgin com a Virgin Galactic suplantam completamente todo o domínio da exploração espacial da Nasa. E não se limitam a lançar foguetes: fazem muito mais.


Um exemplo. Lembram o Space Shuttle, o vaivém espacial da Nasa? Lembram os dois grandes foguetes laterais (os boosters) que forneciam impulso e carburante na fase do lançamento? Uma vez que o Space Shuttle alcançava os 46 quilómetros de altitude, os boosters separavam-se e precipitavam no mar, donde eram recuperados. No entanto, o impacto com a água era violento e, em vista da reutilização, tinham que ser fortemente reparados, quase reconstruidos, com enormes despesas.

Hoje Jeff Bezos da Amazon apresenta os boosters que, depois de cumprir o seu dever, voltam à atmosfera e aterram intactos, prontos para serem reutilizados. Um problema que a Nasa nunca tinha conseguido resolver, apesar do seu exercito de cientistas, foi resolvido em pouco tempo pelos privados. Como? Com a força do dinheiro: os donos destas multinacionais não precisam de exércitos, simplesmente compram o que de melhor estiver disponível no mercado, sempre. É assim no caso dos foguetes mas o mesmo acontece com medicina, engenharia, finanças, comunicações, transportes, tudo: o Estado não pode competir e começa a ser visto como obsoleto.

John Logsdon, professor da Universidade George Washington e fundador do Space Policy Institute:

De facto, tanto o Congresso, tanto Obama quanto o Trump têm diluído bastante as leis que regulam a experimentação espacial. A verdade é que hoje, se o poder privado tiver dinheiro suficiente para enviar um humano para a Lua, faz isso ignorando as regras públicas, muito rígidas, em vigor na Nasa.

O Congresso, Obama, Trump… com a corrupção, as Corporações têm começado a corroer o Estado a partir do interior e hoje podem dar-se ao luxo de fazer uma coisa tão estúpida como enviar um carro para Marte. O limite é o céu? Não, as Corporações parecem não ter limites.

Ipse dixit.

Fonte: Paolo Barnard