permanece ainda hoje: uma guerra implacável entre o desejo da elite de dominar e as tentativas da humanidade de conseguir o que é seu. As tentativas sempre tiveram apenas um nome: as revoluções.
Até o início do século XX, as revoluções eram, no fundo e mesmo aquelas de proporções históricas, apenas incómodos incidentes de percurso do ponto de vista da elite. Podiam ser reprimidas no sangue ou permitidas durante uns tempos, mas depois seriam sequestradas para implementar novas formas de despotismo sangrento de outras elites (é o caso da Revolução Russa, que Lenin devastou o mais rapidamente possível).
Mas com o avançar da modernidade tornou-se cada vez mais difícil para as elites controlarem as massas: as comunicações eram cada vez mais rápidas, as notícias corriam dum lado até outro do planeta, as vozes espalhavam-se com uma velocidade nunca vista antes.
Poucos sabem que o Ocidente mais “marxista” no período entre os séculos XIX e XX foi o nordeste dos Estados Unidos da América e, em parte, a Irlanda. Nos EUA, o fermento dos trabalhadores (indevidamente chamados) socialista, anarco-sindicalista e libertário no verdadeiro sentido histórico do termo era tal que quase 900 jornais revolucionários eram impressos e lidos nas comunas de trabalhadoras e trabalhadores.
A elite americana do capital organizou-se para sufocar tudo isso: os 800 mil mortos da guerra civil não tinham sido suficientes e a elite não podia suprimir tudo no sangue. Foi uma “revolução” mais dura, demorou mais para ser “adormecida”. Mas foi aí que o Verdadeiro Poder entendeu algo literalmente monstruoso para silenciar as massas rebeldes: a aplicação do bem-estar mínimo.
Este é um conceito extremamente importante porque é nas suas consequências que estamos mergulhados ainda hoje, é no meio disso que serão criadas ainda mais gerações no futuro.
Como já afirmado nas partes anteriores deste artigo, a elite bem sabe que não faz sentido manter bilhões de pessoas na pobreza e no desespero: cedo ou tarde pode haver uma revolta mas, mais importante do que isso, os miseráveis não consomem porque não têm dinheiro. Tornam-se uma massa inútil. Foram dois intelectuais americanos a imaginar a solução: Edward Bernays e Walter Lippmann. E a solução é sedar as massas, com o advento da indústria dos media: cinema, publicidade e consumismo que manipulasse o consentimento para criar o desejo de possuir um bem-estar mínimo a qualquer custo. Foi uma ideia genial. Realmente genial.
Quem começa a experimentar o individualismo do seu pequeno e modesto progresso hedonista no consumo e nas pequenas comodidades, abandona os sacrifícios, a coragem e o desejo de lutar no social: deseja ter mais. Torna-se verdadeira classe média. Uma vez entrados no grande circo consumista, é muito difícil conseguir voltar atrás.
A primeira grande vaga de apatização das massas começou nos anos ’20 do século XX, nos Estados Unidos. Famosa é a declaração de Bernays e Lippmann acerca do povo: “São apenas profanos molestos”, que podem ser tornados mansos com a docilidade.
Segunda Guerra Mundial, a propagação do Socialismo e do Comunismo, o nascimento do Wellfare na Grã-Bretanha, a influência (embora breve) do economista John Maynard Keynes, o 1968, as lutas dos trabalhadores, etc.
No início da década de 1970, as elites perceberam que o plano Bernays-Lippmann de apatização tinha que ser actualizado. E é aqui que começa a segunda grande vaga de apatização. Começa com uma manhã no Verão de 1971, quando Eugene Sydnor Jr., da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, chama o advogado Lewis Powell e pede-lhe um projecto de apatização para as massas ocidentais. Powell escreveu um memorando de apenas 11 páginas:
A força reside na organização, num planeamento cuidadoso e de longo prazo, na coerência da acção por um período de tempo indefinido, no financiamento disponível apenas através de um esforço unificado e no poder político que pode ser obtido apenas com uma frente e organizações nacionais unidas (as elites).
A seguir, aparece a Comissão Trilateral, composta pelos líderes de Estados Unidos, Europa e Japão: estes chamam três intelectuais influentes, Samuel P. Huntington, Michel J. Crozier e Joji Watanuki.
Nas 227 páginas da The Crisis of Democracy, a receita letal de apatização, pode ser lido:
O funcionamento efectivo de um sistema democrático precisa de um nível de apatia por parte de indivíduos e grupos […] Isso é intrinsecamente antidemocrático, mas também foi um dos factores que permitiram que a democracia funcionasse bem. […] A história de sucesso da democracia é a assimilação de grandes sectores da população no interior de valores, atitudes e padrões de consumo da classe média.
Traduzindo: se o desejo for matar a democracia participativa dos cidadãos mantendo vivo o envelope da democracia funcional para as elites, devemos tornar todos consumidores, espectadores, pequenos investidores. Devemos criar uma classe média apática. Uma classe médio-baixa, na realidade (mas com o tempo pode tornar-se uma classe média verdadeira), com pequenas comodidades, pequenas vantagens, uma classe basicamente pobre (mas não mísera) que possa “cheirar” a riqueza para que possa surgir o desejo do “mais”.
O resultado é o que temos hoje: o triunfo do consumo absurdo, o hedonismo idiota da TV e das modas, o colapso da participação em lutas de rua, a apatia de praticamente todos, mesmo perante eventos sérios que destroem a democracia, o trabalho, os direitos, as Constituições. Com o advento de Internet, o triunfo do projecto Trilateral atingiu o orgasmo: o já moribundo activismo social foi definitivamente enterrado, substituído por um activismo do teclado no qual todos somos revolucionários mas no qual ninguém se mexe. Play Station, Fórmula 1, Big Brother, Champions, o tapete vermelho de Cannes, as raspadinhas, o Carrefour… Tudo isso é apatia.
Discurso fechado? Não. Podemos plantar uma estaca simbólica no ano de 2000. Os sinais de uma nova agitação das massas tornaram-se claros:
- os salários reais do País mais poderoso do mundo, os EUA, estavam em estagnação desde 1973, com descontentamento generalizado
- as bolhas especulativas imobiliárias e financeiras (especialmente encorajadas por Clinton) deram um sinal muito claro, a elite já sabia que teriam explodido (bolha dos Subprime, a crise financeira…) e, novamente, milhões de ocidentais irritados.
- a mão de Jeffrey Sachs na Europa Oriental pós-comunista e na Rússia dizimava os povos, com a taxa de mortalidade média na Rússia colapsada aos 56 anos para os homens, migrações em massa para Oeste das mulheres, corrupção épica em todos os lugares, com novos perigos de perturbações
- o projecto da Zona Euro já havia sido ratificado como uma catástrofe social pela Federal Reserve dos EUA e, portanto, pelos principais banqueiros de investimento do Planeta: estava no ar uma rebelião populista e o caos político
- muito claro era o perigo dum futuro conflito nuclear: não entre Rússia e EUA, mas entre China e EUA, dois projetos imperialistas inconciliáveis (na altura)
- as mudanças climáticas estavam a devorar o planeta, as massas dos imigrantes desesperados teriam mudado para invadir o Ocidente (500 mil indianos arriscam não ter água em menos de uma década).
anos. E no nosso ano (simbólico) de 2000, a elite percebeu que uma terceira imensa vaga de apatização era vital para manter este mundo em potencial rebelião sob controle.
É aqui que encontramos as raízes de Facebook-Oculus, Realidade Virtual, Blockchain, Drones, AI e 10 bilhões de humanos tech-gleba sem alternativas.
Uma Humanidade homogeneizada sem grandes diferenças de rendimentos, totalmente nas mãos dumas elites privadas que possuem todas as chaves tecnológicas para a vida. Quem será capaz de rebelar-se? Quem, mesmo após ter conseguido as chaves, será capaz de utiliza-las? Seremos prisioneiros do consumo de alta tecnologia essencial, sem qualquer fuga, e totalmente apáticos na imobilidade do mundo virtual com OLEDs, VR, A.I..
Já hoje é um drama convencer um cidadão a sair de casa para protestar contra a sua autarquia, podemos imaginar como será no futuro…
Ipse dixit.
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Tech-Gleba – Parte I
Tech-Gleba – Parte II
Fonte: Paolo Barnard