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Tech-Gleba – Parte I

Paolo Barnard

Paolo Barnard é o nome dum jornalista já conhecido pelo Leitores de Informação Incorrecta.

Pessoa “contra o sistema” por definição, é um dos poucos jornalistas de investigação ainda em actividade em Italia. Mantém uma densa correspondência com indivíduos como Noam Chomsky, Warren Mosley, insiders da City de Londres ou Silicon Valley.

O vosso blogueiro nem sempre concorda com as ideias do jornalista e já houve trocas de e-mails bem pouco simpáticas: mas com Barnard é assim, aceitar ou largar. Mas isso nada retira ao notável trabalho dele.

O que vamos apresentar é uma interessante visão dum possível futuro, elaborada nas páginas do site Paolo Barnard. Não vou traduzir literalmente o conteúdo, prefiro um resumo pormenorizado que mostre os conceitos-base da “visão”. Que seja um futuro possível, provável ou certo é uma decisão que cabe só ao Leitor. De minha parte, conhecendo o trabalho de Barnard, os seus raciocínios e as suas fontes, acho aquela que segue uma interessante oportunidade de reflexão e, provavelmente, bem mais do que isso.  

Tech-Gleba

O Socialismo é morto, o Capitalismo está em coma irreversível, mas no horizonte não aparecem alternativas. Na internet alternativa fala-se de sociedades baseadas na troca, sem crescimento, respeitas do ambiente. Tudo muito bonito, mas há um problema: não é a interent alternativa que manda, não é ela que decide qual o futuro.

Quem decide? Por enquanto o futuro é escolhido pelas mesmas pessoas que determinam o presente. Pode ser que aconteça algo, uma reviravolta, uma revolução, um meteorito, não sabemos: mas se a História continuar sem surpresas, então (e talvez) seja possível imaginar o amanhã. Afinal, as dinâmicas que gerem a nossa sociedade são conhecidas, tal como a tecnologia disponível hoje e aquela que é possível imaginar para os próximos tempos.

Se as coisas estiverem assim, então temos de assumir que o futuro está a ser decidido e construído já hoje. Mesmo nesta altura, algures, há alguém que está a trabalhar num projecto, numa ideia, numa teoria: quais consequências terá amanhã este trabalho desenvolvido hoje? Se o Leitor não tiver nada de importante para os próximos minutos, faça o favor de seguir-me.

Um salto atrás.

Lincoln e a escravidão

O que aconteceu nos Estados Unidos em meados do século XIX? Rezam os livros de História que o
País partiu-se em dois, com o Norte nacionalista empenhado numa luta sangrenta contra os separatistas do Sul ao longo de 4 anos. Os primeiros, entres outras motivações, queriam a abolição da escravidão, os segundo a defendiam. Na realidade, os EUA estavam divididos em três: a terceira força em campo era a Revolução Industrial.

O então Presidente Abraham Lincoln era um homem de inteligência incrível. Enquanto ainda se encontrava empenhado na Guerra Civil, percebeu que um monstro imensamente mais mortal ameaçava a Nação, escravos negros incluídos: era a escravidão do trabalho salarial em escala industrial.

Estranho? Nem por isso. Poucos sabem que aquele que agora é um partido de extrema direita, o Partido Republicano, nos dias de Lincoln era uma formação de verdadeiros libertários que não tinham dúvida de que o trabalho assalariado era uma forma transitória de escravidão e que tinha de ser abolido, tal como a escravidão dos negros. Para Lincoln e os republicanos, ser trabalhadores assalariados era um “ataque inaceitável à integridade pessoal”; eles desprezavam o sistema industrial porque obrigava o ser humano a ser submetido a um patrão, como acontecia ao escravo do Sul. Aliás: pior. Porque o escravo era propriedade, enquanto o trabalhador é apenas uma força “alugada” e substituível em qualquer altura.

O sofrimento de centenas de milhões de trabalhadores assalariados raramente é contado, mas foram mais de dois séculos de horror. É suficiente um olhar sobre as condições de vida dos mineiros britânicos no início dos anos 1800, pensar no número de trabalhadores assalariados mortos por causa das doenças do trabalho, dos “acidentes”, da exploração ou abatidos pela exaustão.

Apenas três exemplos: em 1869, durante a construção do Canal de Suez, morreram 150 mil trabalhadores; a construção do Canal do Panamá, em 1914, matou a metade exata de todos aqueles que trabalharam lá, ou seja, 31.000 trabalhadores; mais recentemente, em 1943, o projecto Burma-Siam Railway massacrou com a fome (literalmente) 106 mil infelizes que recebiam alguns cêntimos por semana.

Abraham Lincoln e o seu Partido Republicano tinham observado os desenvolvimentos da Revolução Industrial na Europa e queriam evitar que o mesmo voltasse a repetir-se nos Estados Unidos. Paradoxalmente, até o máximo teórico da escravidão, George Fitzhugh, tinha alertado:

O negro tornado livre ficará numa trágica guerra capitalista, preso entre proletários brancos, e será desumanizado e destruído.

Mas todos os avisos foram ignorado e a escravidão do trabalho assalariado tomou conta do Novo Mundo também.

Curta parênteses: é mesmo aqui que a história do movimento sindical rui de forma desastrosa, pois nunca (e especialmente hoje) o sindicalismo adoptou a posição pela qual o trabalho assalariado era uma forma transitória de escravidão, que tem de ser abolida. Os sindicatos lutaram pelas condições de trabalho e pelo aumento dos salários, mas nunca pela libertação do trabalhador-escravo. A razão é intuitiva: os sindicatos fazem parte deste sistema, nutrem-se dele, ganham posições de poder só se existirem trabalhadores assalariados.

O Capitalismo: um projecto ultrapassado

Voltemos ao discurso principal. O Partido Republicano (a versão original, não o actual, como é
óbvio) via na Revolução Industrial uma aberração que escravizava os homens.

Mas esta já é história do passado, porque o Capitalismo triunfou, espalhou-se pelo mundo todo e… morreu. Não é preciso muito para fazer uma comparação entre a época na qual proliferavam os meios de produção e os dias de hoje, dominados pela Finança. O Capitalismo é um projecto ultrapassado, os Poderes estão a programar um futuro diferente: vamos entender quais as razões. 

O Capitalismo desde o primeiro dia do seu nascimento até hoje sempre foi composto de três elementos necessários:

  1. os explorados
  2. a classe consumidora
  3. a elite no topo que acumula lucros.

Era assim nas primeiras décadas do século XX, é assim hoje com qualquer dispositivo digital feito por miseráveis na Tailândia, comprado pelos ocidentais e nas economias “emergentes”. Os triliões ficam nos bolsos de Apple, Samsung, etc. Mas o esquema não pode continuar por dois motivos substanciais.

O primeiro é que o Poder há muito compreendeu que não será mais possível conter bilhões de desgraçados explorados: estes irão migrar em massa ou, como na Índia e na China, começarão a exigir melhores condições económicas e ninguém poderá detê-las. Daí o inevitável crescimento exponencial dos custos de produção de qualquer bem. O Poder também percebeu que a alternativa da robotização das fábricas (despedir, cortar os custos e competir) é só uma ilusão, porque as massas de desgraçados, tanto aqui como nos Países do Terceiro ou Quarto Mundo, não têm rendimentos e não terão acesso a produtos sofisticados. Portanto, colapso dos lucros: quem venderá a quem?

Segundo: o Poder há muito compreendeu que a estrutura clássica da concorrência no mercado, num mundo com uma população crescente mas também com custos de produção que sobem, não pode mais funcionar. Centenas de corporações e multinacionais que produzem oceanos de coisas e serviços, com custos que aumentam, massas de emigrantes com rendimentos miseráveis: é um beco sem saída. Então, o Capitalismo está em coma e em breve passará à história.

Mas o Poder não dorme e, enquanto nós olhamos para as nuvens perguntado qual será o futuro, ele constrói o seu futuro. Que será o nosso também. E o futuro será Tech-gleba.

Para entender o conceito: imaginemos um planeta com dez bilhões de pessoas assalariadas, com as necessidades básicas satisfeitas e um rendimento médio. Dez biliões de pessoas indissoluvelmente ligadas à tecnologia, não por escolha mas por mera necessidade.

É disso que vamos falar. É isso que está a ser construído.

Ipse dixit.

Fonte: Paolo Barnard