Myanmar e Rohingya: a história de sempre

As décadas passam, mas certas coisas nunca mudam: divisões religiosas, minorias étnicas, rotas de comunicação… Petróleo. Ou gás.

É claro que os actores nem sempre são os mesmos, mas o palco sofre poucas mudanças: é suficiente ver o que acontece no passado para entender o presente e antecipar o futuro.

O ano é de 1942: o império japonês está no seu topo, desde a Manchúria até as Ilhas Salomão, passando pela estratégica Singapura que protege o Estreito de Malaca e separa o Oceano Pacífico do Índico. A China fica ao lado dos Aliados, pelo que recebe armas através duma específica rota: é a Burma Road, a “Estrada da Birmânia”, que permite que os bens anglo-americanos viajem desde o Oceano Índico para a China continental através da Birmânia, ainda sob o controle britânico. O desejo de cortar esta rota estratégica, combinado com a sede de matérias-primas, empurra Tóquio a invadir a Birmânia.

Em Março de 1942 a capital Rangoon cai, forçando os britânicos a se retirarem para a vizinha Índia. Os japoneses podem apoiar-se no seu avanço em alguns estratos da população birmanesa: jovens budistas nacionalistas recebem muito bem o ocupante asiático que promete a libertação do jugo inglês. Pelo contrário, a minoria muçulmana permanece fiel à coroa inglesa e recebe armas e equipamentos de Londres para impedir a marcha dos japoneses e dos seus aliados locais. A região de Arkan, hoje Rakhine, é o cenário de sangrentos confrontos étnicos entre os budistas-pro-japoneses e os anglófilos muçulmanos. Estes, concentrados na costa do Norte perto do Bangladesh, são chamados de Rohingya.

Após mais de 70 anos, os ingredientes são ainda os mesmos: uma rota estratégica que une a China com o Oceano Índico, a presença de hidrocarbonetos, uma maioria budista em posições nacionalistas-militaristas, uma minoria muçulmana com posições anglófilas. Tudo como antes, só que agora Pequim não está do lado dos anglo-americanos.

Sujeito a um golpe de inspiração socialista em 1962, este País grande como o Afeganistão e com 55 milhões de habitantes (dado de 2014) permanece à margem da Guerra Fria. Após a revolta de Praça da Tiananmen e a queda do Muro de Berlim, também a Birmânia é encaminhada pelos anglo-americanos em direção à “democracia”.

Aung San Suu Kyi

Em Maio de 1990 são realizadas as primeiras eleições livres e a vencedora é Aung San Suu Kyi: filha do “pai da pátria” (que contratou com os britânicos a independência de 1947), educada na Inglaterra, um passado nas Nações Unidas, casada com um cidadão britânico, Aung San tem todas as credenciais para transportar a Birmânia até uma economia baseada no livre mercado. Mas a junta militar então no poder, consciente das tentações centrífugas que atravessam o País, não tem intenção de abdicar: rejeita o resultado das eleições, dissolve o Parlamento e prende os líderes da oposição.

Em Washington e Londres é escândalo: atribuir o Prémio Nobel da Paz a Aung San Suu Kyi (1991) é uma contramedida com pouca eficácia. Também porque a Birmânia (que entretanto adopta a menos simpática denominação de Pyidaunzu Thanmăda Myăma Nainngandaw ou Myanmar) é outra vez esquecida. Bill Clinton tem que expandir a Nato para o Oriente e redesenhar os Balcãs, George W. Bush sonha em redesenhar o Médio Oriente e plantar a bandeira no Afeganistão: não sobra muito tempo para a Birmânia.

Mas entretanto a China cresce, até representar uma ameaça. Barack Obama decide concentrar-se no Oceano Pacífico e em Pequim: portanto, a Birmânia volta a ser uma prioridade. Em 2015 realizam-se novas eleições legislativas e Aung San Suu Kyi ganha outra vez. Todavia, por causa do passaporte britânico do falecido marido e dos filhos a impede de assumir oficialmente a Presidência, ficando com uma função equivalente a de “Conselheiro de Mianmar”. Barack Obama fica contente, em Novembro de 2016 recebe Aung San Suu Kyi na Casa Branca e afirma que chegou o momento de revogar as sanções económicas contra a Birmânia.

Pena que o projecto de “democratização” da Birmânia contemple também o esmagamento do País, através a secessão de importantes áreas onde residem minorias étnicas e linguísticas. A instalação no topo da Birmânia de Aung San Suu Kyi deveria, de facto, facilitar a secessão do Arkan muçulmano: não acaso, sempre em 2016 surge do nada o Arakan Rohingya Salvation Army (“Exército de Salvação Rohingya de Arkan”), formação militar com fortes laços com a Arábia Saudita. Este desencadeia a violência na região e a reação imediata do Estado central. As tensões explodem e, como nos tempos da ocupação japonesa, o País fica polarizado: a junta militar, uma expressão da maioria nacionalista budista, procura o apoio do poder asiático emergente (a China), a minoria muçulmana, os Rohingyas, é apoiada pelos anglo-americanos.

O interesse de Pequim na Birmânia é ditada pelas mesmas razões que levaram Tóquio a ampliar a sua esfera de influência para o actual Myanmar. Matérias-primas (a Birmânia é um importante produtor de gás natural e de petróleo) e rotas de comunicação. Tal como os britânicos construíram a Burma Road para chegar à China a partir do Oceano Índico, sem atravessar o Estreito de Malaca, hoje os chineses planeiam chegar ao Oceano Índico através da Birmânia, evitando assim Singapura e um eventual bloqueio anglo-americano do Estreito. A moderna “Estrada da Birmânia” corre, naturalmente, nas trilhas dos comboios de alta velocidade e é parte integrante da “Nova Estrada da Seda”, o plano de infra-estruturas ferroviária/marítima/aeroportuária com a qual a China quer alcançar a toda.

A minoria muçulmana Rohingya é útil aos anglo-americanos como em 1942. Este grupo étnico de fé islâmica, sempre hostil aos nacionalistas budistas, está concentrados na região de Arkan (hoje Rakhine), onde os caminhos-de-ferro e os oleodutos chineses devem passar para chegar até o Oceano Índico. A separação da região muçulmana, além de enterrar o actual Estado birmanês, anularia a estratégia de Pequim para contornar o Estreito de Malaca.

Os anglo-americanos esperavam que Aung San Suu Kyi tomasse uma postura pública em favor da insurreição muçulmana, primeiro passo para a independência: no entanto a Conselheiro de Mianmar, consciente de que tal mudança significaria a sua deposição pela junta militar que ainda controla de facto o País, até agora ficou em silêncio, atraindo pesadas críticas.

A defesa dos Rohingya até agora é feita pela Amnesty Internacional de Londres e pela American Human Rights Watch: obviamente fala-se de “massacres militares”, de “limpeza étnica”, mas é difícil conhecer ao certo a realidade pois sabemos como operam estas ONGs.

Perante o aumento da violência interna e dos assaltos dos media, a junta militar reagiu com um fortalecimento do diálogo com a China: o comandante em chefe das forças armadas birmaneses, o general Min Aung Hlaing, realizou recentemente uma reunião de seis dias em Pequim com o Presidente Xi Jinping e o seu homólogo chinês. Mais interessante ainda: uma visita semelhante deve ser realizada em breve por Aung San Suu Kyi, testemunhando como o Prémio Nobel da Paz, que enfrenta o risco de balcanização do seu País, esteja a afastar-se dos antigos aliados ocidentais.

No horizonte da Birmânia, portanto, é provável que apareçam os pratos fortes dos anglo-americanos: sanções económicas e ataques de radicais islâmicos.

Ipse dixit.

Fontes: BBC (1 e 2), Reuters, Ramree, Amnesty International, China Daily, Federico Dezzani

11 Replies to “Myanmar e Rohingya: a história de sempre”

  1. How Do Theravada Buddhists View Extremism Within Theravada?

    In media reports on religious violence in Sri Lanka and Myanmar, the perspectives of moderate and progressive Buddhists are often invisible. Khin Mai Aung talks to six Theravada Buddhists about extremism in their religion.

    https://www.lionsroar.com/how-do-theravada-buddhists-view-extremism-within-theravada/

    At the same time, some Theravada Buddhists fear that there is an intentional, coordinated effort by politically motivated groups to foment religious conflict for political gain. Allegations have surfaced that authorities in both Sri Lanka and Myanmar have stoked religious tensions and spread extremist narratives to scapegoat minorities for political purposes. Htuu Lou Rae Den is the founder and acting director of Coexist Myanmar, which seeks to promote a common national identity and sense of belonging among ethnic and religious communities in Myanmar. He says that extremists use hate speech to “alarm the public into believing race and religion are under threat” and “create a siege mentality” in order to “distract the public from issues of public interest.” Extremists see themselves as “guardians of race and religion.”

    https://translate.google.com.br/

  2. Myanmar Court Issues Arrest Warrant for Firebrand Buddhist Monk Wirathu

    https://www.buddhistdoor.net/news/myanmar-court-issues-arrest-warrant-for-firebrand-buddhist-monk-wirathu

    um comentario na internet..

    Ele serviu seu propósito. Hora de trancar o pote de crack. A minoria muçulmana foi removida dos campos de petróleo de Shwe até Kunming, na China. Oleodutos, ferrovias, rodovias, pontes e portos de contêineres foram todos construídos. A área é irreconhecível. Não há nada para retornar. Isso agora será varrido para debaixo do tapete como o considerável genocídio dos budistas em Bangladesh nos anos 70.

    tradução do google..

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