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Da Liberdade

– Para que vieste até aqui? Tens algo para dizer? Algo que não sabemos? Duvido. Sabes, estes apelos para a liberdade deixam-me enjoado. Para que vieste aqui outra vez? Antes de ti muitos outros tinham passado. E mesmo que alguém te siga, fazemos de conta algumas centenas de pessoas…  o que achas vai acontecer ao biliões que nunca por nunca irão abandonar as cómodas vidas deles? Para quê? Em troca dos teus valores abstractos? Sabes, também eles querem ser felizes ou para ti a massa já não é feita de seres humanos?

– A liberdade é o direito de escolher.

-O quê? Que idiotice é esta? Mas consegues entender em qual altura vives tu? A liberdade hoje é poder clicar entre mil canais, descarregar porno gratuitamente ou, mais simplesmente, fazer tudo aquilo por causa do qual nada te irá acontecer. E a massa aceita isso. Tu nem entendes quanto tivemos que pagar para promover esta ideia. Mas resultou: já estão convencidos de que o homem não está livre pelo simples facto de ter nascido… nada disso: acham mesmo que tem que ganhar a sua liberdade.

– Isso é cruel.

– Cruel dizes? Nada disso: é bondade. Porque agora a vida das massas tem um sentido. Olha para eles, olha para fora da janela.

Aproximou-se da ampla janela e espreitou nas ruas. Homens, mulheres, todos de pressa mas com um percurso aparente para ser seguido. Ninguém estava parado. Formigas.

– Vês? Querem trabalhar, querem ganhar dinheiro. E ficam ainda mais felizes quando conseguem gasta-lo aquele dinheiro. Até podem comprar coisas que justificam o estilo de vida deles. E nós temos uma lista com os preços dos abomínios.

– Têm?

– Certo que temos. Espreita.

A lista era bem cumprida, mas havia lá tudo, não faltava nada.

– Há também… isso.

– Sim, há tudo. Mas continuo a não entender porque vieste. Sabes, todas aquelas mensagens, artigos, incógnitas, labirintos, emblemas, alquimias cerebrais… Já tínhamos experimentado tudo e encontrámos esta fórmula muito mais antes de ti. Portanto, a tua é uma vinda inútil…

– Quero respostas.

– Respostas… já não tens as tuas respostas? Espreita bem no palácio da tua memória, pode ser que algo encontre. Algo inútil, como é óbvio. Como por exemplo: estás tu livre?

–  Eu sei que estou livre, na consciência dos meus direitos e dos meus deveres.

– Caramba, que frase bonita… onde é que a encontraste? Deixa, não importa. O que conta é que tu estás convencido de ser livre, certo? Muito bem. Então posso fazer-te algumas perguntas? Coisas simples, só para conversar.

– Sim, podes.

– Tu achas estar livre se puderes vestir-te como quiseres?

– Sim.

– Se podes dizer o que achas estar certo?

– Sim.

– Se podes fazer o trabalho o qual gostas?

– Sim.

– Se puderes comprar coisas que te parecem melhores?

– Sim.

– Se puderes viajar pelo mundo fora da maneira que achas mais interessante?

– Sim.

– E se puderes fazer coisas divertidas, que te fazem sentir bem?

– Sim, estou livre também.

– Muito bem: aparentemente tu vives num mundo livre. Podes escolher como vestir-te, onde morar, para onde ir,  qual religião professar, qual partido votar… Mas será que esta é a verdadeira liberdade? Respondes agora a estas perguntas:
Tu podes realmente escolher como vestir-te e é apenas uma coincidência o facto de costumares vestir-te como todos os outros?
Tu podes realmente escolher qual religião seguir e não passa dum mero acaso o facto de seguires a religião que é também aquela dos teus pais e amigos?
Tu podes “livremente” escolher o que comer, então é uma coincidência o facto de comeres tudo o que os outros comem?
Tu podes escolher “livremente” o que dizer, mas como é que os outros, todos eles, dizem as mesmas coisas?
Aparentemente não é algo imposto… ou talvez sim, quem sabe? Em qualquer caso: és livre ao fazer isso? Geralmente as pessoas concentram-se em coisas que podem “fazer” e definem isso como “liberdade”. Mas será mesmo assim? Diz-me tu. Claro, podes sempre escolher de acreditar numa religião diferente daquela da tua família mas… como entraste em contacto com esta nova religião? Pensa nisso: não foi com amigos, vizinhos ou colegas? Claro que foi, é sempre isso que acontece. E sabes a razão? Porque a massa mede a sua liberdade com o “fazer”. “Faço isso porque sou livre de fazê-lo”, esta é a ideia. Qual pode ser uma verdadeira liberdade? Fazer ou escolher?

– O escolher.

Voltou a sentar-se, enconstando-se a cadeira.

-O escolher… resposta exacta. Pensa nisso: em cima da mesa há uma caixa. No quarto há também um homem, muito grande, que ameaça bater-te se pegares na caixa. Tu estás livre ou não de tomar a caixa?

– Não, não estou livre.

– E por qual razão “não”?

– Porque há um indivíduo que quer usar a violência para travar-me.

– Vês? Não entendes. Isso não significa nada: tu estás livre de pegar na caixa. Claro está: se fizeres isso, depois vais receber um murro, é verdade, mas isso não pode impedir-te de tomar a caixa. Estás livre na tua decisão. Isso porque o homem controla  a situação mas não os teus pensamentos. Não pode fazer isso. A verdade é que tu tens toda a liberdade para escolher.

– Mas o que significa isso?

– Significa que está a vigiar-te: pode controlar o teu corpo, mas não a mente. Tu continuas livre de escolher. É possível ficar livres até numa situação constrangedora. Será esta a verdadeira liberdade?

– Se assim for… então por qual razão as pessoas não utilizam a liberdade de escolha?

– Porque nós introduzimos o medo. Em parte um medo natural, em parte induzido. Porque não agarras na caixa em cima da mesa? Por medo. Por qual razão não tens comportamentos diferentes das outras pessoas? Por medo. Medo das reacções delas. Ser livre significa pagar um preço, por assim dizer. E o preço é lidar com a liberdade dos outros.

– Eu sou livre. Se todos formos livres, o respeito pela liberdade dos outros é implícito.

– “Implícito” não significa nada. Absolutamente nada. Porque tu podes fazer escolhas e cada uma delas terá consequências. E tu vais ser responsável por todas aquelas consequências. Todas, sem excepção. Podes controlar algumas delas, talvez, mas todas não. Aliás, é provável que a maior parte ficarão fora da tua gestão. Eis o medo: não podes controlar todas as consequenciais das tuas escolhas. Podes fazer uma escolha mas sabes que uma ou mais das consequências poderiam ser desagradáveis. Este é o medo natural. Depois existe aquele induzido.

– O vosso medo.

– Sim, o nosso. A perda do lugar de trabalho, da casa, das coisas que fadigosamente conseguiste obter com uma vida de sacrifício. Mas há medos ainda maiores: a dívida do nosso País, o terrorismo, a guerra, os imigrantes… tudo é medo. Este medo arrasa a capacidade de escolher. E sem escolha, não há reacção. Ficas como um veado perante os faróis do carro.

– “Não posso”.

– Exacto: “não posso”, “não consigo”, “é demasiado difícil”…  tudo isso é música para os nossos ouvidos.

– Cedo ou tarde as pessoas irão descobrir o truque. E haverá uma qualquer reacção. Haverá a escolha da reacção.

– Não. Criámos uma alternativa à escolha. O pensar de poder escolher. Já te disse: a liberdade hoje é poder clicar entre mil canais. Não há limites: podes destruir a tua família, podes ser ateu, podes seguir as religiões mais exóticas, podes mudar de sexo, podes consumir uma catálogo enorme de drogas. Com um pouco de atenção até podes ser pedófilo. São estas as necessidades animalescas, básicas, e nós proporcionamos o acesso a isso porque assim o homem consegue pensar “estou livre”.

– Estou a ver.

– Não, não estás. Ainda não entendeste o que é a liberdade. “Liberté, fraternité, egalité” e blah blah blah…

– A liberdade é poder escolher. Tu explicaste isso.

– Quase. Mas falta algo.

– Não entendo… 

– A maior de todas as liberdades é poder escolher os nossos limites, além dos quais decidimos não ir. 

– Limites…

– Isso: limites. Nós oferecemos uma sociedade onde tudo estará cada vez mais possível. E as massas gostam porque acham isso ser a verdadeira liberdade. Mas não é. Liberdade é poder desenhar um traço no chão e dizer “aí não vou”. Entendes?

– Entendo.

– Não que não entendes… ninguém entende, pois a única liberdade digna de ser vivida não é aquela onde “podes fazer tudo o que te apetecer”, mas aquela onde tu estabeleces as fronteiras de tudo. Até os limites da tua liberdade. Se alguém tivesse entendido isso, agora não estariam onde estão. Vai, vai-te embora duma vez por todas. Não há nada para ti aqui.

Ipse dixit.