Site icon

E o vento apita

E’ uma daquelas noites estranhas, onde o tempo não corre, passadas com a janela aberta sobre uma
noite ventosa e uma garrafa de vinho ao lado.

Os últimos meses tem sido um inferno e, para complicar ainda mais, o teclado nem fala português. Quando temos que ver uma pessoa que amamos apagar-se dias após dia, sem para poder fazer, perguntamos qual o sentido de tudo isso. Inútil esperar pela resposta, outros perguntaram o mesmo mil e mil vezes antes de nós e ninguém alguma vez respondeu. Talvez porque não há resposta, talvez porque mesmo a pergunta é estúpida.

Passei pelas ruas onde cresci e senti-me estrangeiro na minha terra: uma sensação nova que não estava à espera de experimentar, algo que atingiu-me em cheio. Os tempos mudaram, ou talvez, mais simplesmente, eu estou mais velho e não consigo entender. Vejo caras estranhas, que falam idiomas esquisitos, com roupa diferente, olhos que te fixam como fosses uma alienígena. Eu não entendo mas, no fundo, sinto que algo não bate certo, algo destoa em todo isso. Porque não é possível construir o novo Paraíso partindo do desespero e do ódio.

Um passo atrás. Viagem de ida, Espanha, no meio da meseta. Uma aldeia da qual ninguém lembrará o nome: num canto duma praça, debaixo dum céu de cor do chumbo, um africano com as suas misérias em mostra para ser vendidas. E’ tudo o que tem para oferecer, mas é isso tudo o que nos temos para oferecer-lhe? Mais: temos mesmo que oferecer-lhe alguma coisa?

Genova, encontro um amigo: está farto destes imigrantes, não trabalham, só pedem dinheiro, quando conseguem roubam. E cheiram mal. E’ verdade, é mesmo assim. Sinto algo no peito, a sensação de que algo está a ser-me roubado: é o direito de percorrer as ruas e encontrar as minhas recordações, numa esquina agora ocupada por vendedores do Equador, numa loja agora equivoco bar de africanos. Qual a razão?

Molare, baixo Piemonte, terra de vinho, avelãs e corças. Oito imigrantes trabalham de forma voluntaria na autarquia. Limpam o cemitério onde acabei de enterrar a minha mãe. Outra vez: não bate certo. Deixaram o lugar onde morriam de fome para trabalhar grátis em Italia? Decido informar-me. A historia é um pouco diferente: há uma empresa que “ajuda” os imigrantes: recebe 35 Euros por dia por cada imigrantes. Para eles, os africanos, apenas uma esmola. Ainda estou na rua, pego no telemóvel e faço as contas: 35 euros vezes 8 imigrantes vezes 22 dias de trabalho “voluntario”, são mais de 6 mil euros por mês. Nada mal, nada mal mesmo.

Lembro duma reportagem na televisão. Um autocarro que leva os imigrantes até a fronteira, depois volta atrás. Alguns dias depois carrega outros imigrantes, destino a mesma fronteira. Mas, que surpresa!, são os mesmos imigrantes transportados antes. “Sim, até conheço os nomes deles, cada vez são os mesmos” diz o condutor. A empresa ganha milhares de Euro por cada viagem. E’ uma cooperativa “vermelha”, tal como a empresa de Molare.

“Vermelho” aqui significa progressista, do lado dos pobres, dos desfavorecidos. Ganham milhares de Euros por dia com estes mortos de fome. E explicam que temos de ser bons, não podemos deixa-los morrer de fome. Seriamos egoístas, seriamos racistas, suprema ofensa por qualquer ser humano. E é verdade, não podemos deixa-los morrer: valem milhares de Euros por mês.

Mas será que importa? E depois, a garrafa esvaziou-se…

Ipse dixit.