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Estamos em guerra

Não há tropas nas ruas, não se ouvem bombas eclodir, a televisão espalha Valium em quantidades
industrias: está tudo tranquilo, não parece uma guerra.

Com o termo de “guerra” costuma-se indicar um confronto armado entre dois ou mais exércitos. Nesta altura temos uma série de guerras no planeta, mas apenas um de alta intensidade, o da Síria: pelo que seria possível afirmar que não, não há um conflito global. Mas a situação é bastante complicada.

Na Síria é possível observar um conflito que vê os Estados Unidos contra a Rússia, com a China que observa de longe; mas existem muitas outras camadas secundárias de participantes que incluem a Turquia, o Irão, o Iraque, a Arábia Saudita, o Qatar, Yemen, Israel, os Curdos, o improvável Estado Islâmico, o exército regular sírio, os “rebeldes”, as organizações terroristas aquele irregular, todos directamente ou indiretamente envolvido.

É sempre possível que os dois principais adversários (Washington e Moscovo) decidam saltar todos estes intermediários para enfrentar-se de forma directa, mas é bem pouco provável: em primeiro lugar porque teriam muitos participantes com os quais discutir antes de se envolver num conflito armado directo, em segundo lugar porque na zona há forças aéreas e navais mas não tropas de terra, o que tornaria qualquer confronto inconclusivo, em terceiro lugar porque a desforra está a ser jogada no território de outros (a Síria) e travar uma guerra nuclear para conquistar uma área que nem chega a ser metade do Texas não parece coisa tão inteligente.

No entanto, há algo que vai muito além da guerra no Médio Oriente, algo sem dúvida alarmante, algo espalhado pelo globo.

Temos a Finlândia que está a ponderar rever a sua posição historicamente neutral para aderir à Nato.
Há tropas da Aliança Atlântica nos Países bálticos e na Polónia, não tanto para fazer temer uma invasão da Rússia, mas o suficiente para accionar o Artigo 5 da Nato caso fossem os Russos a arriscar um movimento. Há mísseis na Roménia, há sempre a questão ucraniana, Ucrânia e Geórgia poderiam sempre entrar na Nato, houve o estranho golpe fracassado na Turquia, a sempre possível reintegração do Irão na lista dos “maus”, há a tensão no Mar da China do Sul, as grandes manobras da frota americana no Pacífico, há a intensificação das muitas parcerias militares norte-americanas com Austrália, Vietname, Coreia do Sul, isso enquanto no Japão está em discussão a reformulação gradual de escolha do desarmamento imposta pela Constituição pós-guerra. Basicamente há uma “faixa de contenção” (ou de “agressão”, pontos de vista) que os Estados Unidos está a espalhar em volta do eixo russo-chinês.

Objectivos: constranger a expansão chinesa (mas com a China Washington tem fortes relações de interdependência); enfraquecer a administração da Rússia tendo em vista uma mudança de regime; impedir a solidificação dum bloco euro-asiático, inimigo mortal dos Estados Unidos.

Mas não há apenas o plano militar. Há ciberataques contínuos entre China, Estados Unidos e Rússia. Alguns são conhecidos, outros são mantidos longe dos olhos da opinião pública. Provavelmente há também uma intensificação da espionagem. Há atcividades de pressão económica, tais como sanções aplicadas aos russos, ameaças de exclusões dos circuitos bancários internacionais, o colapso do preço do petróleo, ataques contra as moedas, ataques contra a estabilidade dos mercados financeiros.

Há uma enorme guerra de informação que visa mobilizar as opiniões públicas contra inimigos que apenas poucos anos atrás teria sido absurdo ver como tais. Há um exército de analistas, grupos de reflexão, comentaristas que já há tempo decidiram usar o capacete e o mosquete.

Tudo isto acontece num mundo em que a economia estagna e estagnará durante um longo período de
tempo. A globalização começou a sua espiral descendente, fala-se abertamente de retomar o protecionismo, o comércio exterior marca o terceiro ano de contracção, o crescimento global está cada vez mais anémico, entram em falência as grandes empresas de transportes marítimo. A Finança cresce sem limites, totalmente desligada da realidade, e isso cria desordem numa economia em coma. A dívida privada, a nível mundial, está a crescer a cada dia, de forma incessante, e é perfeitamente claro que nunca poderá ser paga.

A fragilidade do sistema bancário internacional, após o Armageddon de 2008 (subprimes, Lehman Bro), manifesta-se agora com um gigante como Deutsche Bank, num País considerado saudável e rico tal como deveria ser a Alemanha.

Juntamos a armada Wahhabi do islamismo manobrado pelos poços de petróleo, as crescentes dificuldades climáticas (transformadas logo em oportunidades financeiras), as vistosas assimetrias demográficas.

No plano cultural o eletroencefalograma indica zero actividade, parece não existir alternativa entre um Capitalismo que Capitalismo não é (e talvez nunca foi) e uma social-democracia que abraça os valores das Bolsas porque “o Comunismo fracassou”. Hoje a cultura de massa é Facebook, é aí que, entre gatinhos fofinhos e idiotas frases motivadoras, podemos encontrar o que se passa no planeta, devidamente confeccionado segundo a vontade do vendedor de turno (da televisão nem vale a pena falar).

Resumindo: então?
Então sim, estamos no meio dum conflito global. Não há tanques, não há bombas (não há aqui: perguntem aos habitantes da Síria, do Iraque, do Curdistão, da Palestina, da Somália, da Ucrânia, do Afeganistão o que pensam disso) mas é um conflito global. É um conflito apesar de não haver tropas no terreno, esta é a altura da guerra conduzida com meio alternativos e dos conflitos localizados. É global porque já não é a Europa único palco mas o mundo inteiro (Eurásia, Médio Oriente, África e América do Sul fazem também parte do cenário). E é de alta intensidade dado que, como já lembrado, não é apenas o plano militar o envolvido mas também os cibernético, económico, financeiro, demográfico, cultural, religioso, político e ambiental. É a primeira vez que é possível encontrar um fenómeno como este, um conflito tão extenso e tão multifacetado.

Esta primeira vez explica bem por qual razão seja difícil dar-lhe um nome e até percebe-la: não é guerra tradicional, as tropas irão aparecer só na última fase do conflito, por enquanto joga-se com outras armas. É a primeira ocasião em que um mundo de 7.5 bilhões de pessoas, cada vez mais interligadas e interdependentes, marcha empurrado por uma única ordem económica, com uma única partição política, sem alternativas no horizonte. É o canto do cisne, por assim dizer, duma sociedade doente que não tem mais nada par dar: invisível, ainda desconhecido, aproxima-se o futuro e com ele uma sociedade que será diferente, não por escolha mas por necessidade.

De facto, os Estados Unidos da América, estragados pela recente condição de única super-potência, é
o agente que mais tem a perder do presente conflito. Washington não pode perder o essencial domínio da Europa porque este é o extremo promontório oriental dos Países ocidentais e porque são o único ponto de acesso americano ao colosso Eurásia. Esta é a maior massa continental do planeta, com mais de 5 biliões de habitantes, e mecanismos euroasiáticos activados poderiam tornar os Estados Unidos um subúrbio: e nos arredores vive-se mal. Portanto, Washington fará tudo, até o extremo, para impedir um eixo Europa-Rússia-China.

George F. Kennan, um dos maiores estrategistas norte-americanos da Guerra Fria, no fim dos anos ’40, comentou:

Temos cerca de 50% da riqueza do mundo, mas apenas 6.3% da população. Neste contexto, só podemos ser objecto de inveja e ressentimento. A nossa verdadeira tarefa no futuro imediato é identificar um padrão de relações que permita manter esta posição de disparidade.

Hoje, os norte-americanos são apenas 4,4% da população mundial e a sua percentagem do PIB é de 24%, continuando a cair. Há um limite nesta descida, ultrapassado o qual o sistema americano (economia, sociologia, cultura, contrato social, mentalidade, heterogeneidade étnica e pirâmide das classes) fica desintegrado: Washington não desaparecerá sem um último grande golpe de cauda, custe o que custar.

Estas são as razões do actual primeiro conflito global que irá durar bastante tempo, será mau, confuso e desordenado (a não ser que os EUA implodam nos próximos tempos). Caso contrário, poderia ser curto, mas não é uma boa hipótese, por razões que é possível facilmente adivinhar.
Mas já começou.

Ipse dixit.

Fonte: Facciamo Sinistra!